sexta-feira, 29 de julho de 2016

tato

Lanço-me
leitura em braile
as ranhuras de teus lábios
com a língua.

Delineio teu corpo
com a boca,
aquecer teus vales
fazer florir orquídeas
exalar o perfume dos lírios
entrelaçar palavras
formando frases multifacetadas
de uma mesma narrativa

desenhar uma paisagem leve
sonhos encaixados à realidade
contemplação e tempo
que passa e leva-nos
nus
sós


...

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Beija-flor

 
 
O clichê flor e beija-flor, a rima que atravessa poemas, fábulas e fotografias. Canções e emoções estruturadas no gesto natural de retirar da flor o néctar, deixar nela pouco de si (saliva) e prosseguir em um livre voo de precisão. A harmonia das asas no ritmo dos pensamentos; o tempo que transcorre as dimensões de um observador, de um semelhante, de si mesmo refletido no espelho d'água.
 
Suas aparições quase que sincronizadas. Seus olhares quase coincidências, evidências de uma harmonia que precede nossa percepção, nossa intenção e sentimento. A flor, com a textura de suas pétalas, os contornos de seus órgãos, a intensidade de seu perfume, a composição de seu encanto. O vento mensageiro indica a localização, o beija-flor encontra, reencontra e leva na sua liberdade o que o alimenta; o que o faz ser especialmente único; para ela, para si.

Seu voo tem pausas como as mais belas canções. Seu canto encanta pela sutileza. A presença dele em um jardim traz paz e admiriação. Se borboletas são flores com asas, o beija-flor se faz um poema em movimento, no jardim do secreto imaginário de cada um.

Semelhante a tantos; às vezes sinto falta de um tempo. Um tempo em que a brisa fazia mais efeito do que sentido. Muitos se sentem como Léolo, ou seu irmão. Assim é a vida tal como o tempo; ora imponente, ora sutil. Hora que passa, séculos que se sobrepõem, minutos sorrateiros, segundos que não cabem o sentimento que implode no peito.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Espório


Não percebia o peso das frases lançadas, pois o som no ambiente a fazia sentir o tempo em uma cadência especial. Era como se ela tivesse encontrado um espaço entre as membranas da realidade, onde a sanidade não a podia alcançar, tampouco os devaneios de um coração inquieto. E todo trapo, todo guardanapo com poemas e sorrisos virou uma canção de ninar, que toca intermitentemente durante o dia e na sublime madrugada.

Seus clichês caminhavam silenciosamente pelos becos de cidades históricas, pelas ruas movimentadas de seres impessoais, por trilhas que desaguavam no sossego e por rugas de sua infância. Atordoada pelas peculiaridades do ser humano, ela não se preocupava mais com as perguntas, ou com as respostas. Apenas se concentrava em como as reticências poderiam mudar sua vida. Mudança é algo constante, até mesmo no tédio. Entretanto, mudança não era o que cativava seus suspiros. As repetições das relações e passos humanos. Os ciclos não a perturbavam. Ela estava fascinada pela sutileza das flores; pela textura das pétalas, o contorno, o sabor do aroma e o potencial de encantamento.

Ela estava inerte na realidade. Como se encontrasse um lugar especial entremeio a tudo, interligado, intocável. Em um momento em que buscava nada, nem compreensão, nem paixão, nem dor ou gozo.

Era injusto ela não ter um abraço e um colo para ser recebida. Pior ainda era não se sentir bem no colo e braços que possuía. Ser ingenuamente meiga e espontaneamente cruel era sua credencial do amor.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

ritmo



Sãos os passos, não as pegadas, que carregam um pouco do que somos. À beira do desfiladeiro, as pegadas dizem que irei voar, os passos fazem-me contornar as nuances do abismo, ouvindo o eco, sentindo a brisa insinuar a impossibilidade, tentar me empurrar ao eterno retorno das pegadas; mas não me pertence a volta, nem o voo, pois estou imerso nos rumos, sou refém e algoz dos passos. Meu corpo pulsa meu desejo de sucumbir às mazelas humanas e em ser o melhor de mim para os outros.
É a suavidade do seu olhar; a inocência da sua face semeando em mim as melhores características do ser. Assim nascem meus passos, nas intermitências dos meus pensamentos, das consequências das escolhas e de como as escolhas dos outros.

É a terra entre meus dedos; sinto a textura do chão e a temperatura do solo que não me aceita como semente, que me repele e impulsiona a caminhar. E essa caminhada me liberta e aprisiona aos passos.