quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Soro - 6 ml


 O corpo pesado, o sorriso dificilmente reluzia em sua face, pois a maneira como as pessoas ao redor o tratavam foi pouco a pouco sufocando-o, ferindo-o no silêncio dos dias comuns. As lembranças batiam nas paredes e só depois de o ferir, desfazem-se como bolhas de sabão.


  • Hoje a tristeza me alcançou. Cansa. A insistência das pessoas em manter abertas as feridas dos outros, simplesmente para estampar um falso sorriso social. Tanto sentimento conturbado, tanta sensação que precisa de freio, de silêncio, de tempo; mas esse já não passa. Parece ter sido enterrado.


A terra desmorona, escorre como leite com achocolatado. Desfaz a fina malha asfáltica, desce com sonhos, frustrações, dívidas, suor, concreto armado. Desfaz o que parecia ser duradouro, abre uma cratera na percepção da realidade, na consciência da vulnerabilidade da vida, das posses, dos status. Desmorona a terra e a chuva não para. Ele observou a paisagem mudar de longe. Ali, perto, tudo permanecia; até mesmo a chuva.

Sua tristeza não era compaixão, tampouco desdém. Ele se desdobrou durante anos, dispersando no universo uma energia para tornar o ambiente mais sereno. No entanto, agora, ele apenas seguia a canção, como tantos dizem. Entretanto, ninguém fala sobre o que fica e o que vem, quando a canção acaba.


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Soro - 5 ml

 


O controle ineficaz do corpo à madrugada.

Nem sono, nem sonho. Nem liberdade, nem prisão. A tecedura de uma rotina de esmurrar o vento, no pensamento, buscando paz. Pingava a gota no equipo. Uma caiu do teto, em sua testa. Outra emergiu de seus poros. Uma derradeira escorreu pela janela do quarto. O ato de observar funcionava como um ponteiro. Era como se o tempo passasse, em inércia, dentro de um gota que não trouxe cura, nem alívio. Ela o observava de longe, esgueirando à porta; a Realidade. Ele nem mais a ignorava, nem a percebia. Talvez fosse a doença, pensava ela.


Papel hario v60, alvo, à espera da água. Noventa e dois graus sobre o pó moído minutos atrás. Eram grãos colhidos nas Gerais. Ele preparou uma bela xícara, foi até o quintal para tomar seu café. No pires, biscoitos de nata recheados com goiabada. A sensação da grama aos pés descalços, o aroma do café, o sabor do biscoito e os pensamentos que giravam em carrossel em sua mente cansada.


Não tinha como saber a maneira que trascorreriam suas lágrimas depois que partiam do coração, preciptavam pelos olhos e desciam pelo rosto rumo ao chão. Se densa, infiltra no solo, nutre raízes e ainda assim penetra os lençóis freáticos e flui pelas entrelinhas. Se leve, ainda na superfície evapora, não desaparece, muda de forma.


Anuviado céu das expectativas e correria urbana. Com o sopro de uma ideia se desfaz a tempestade, embora fique aquele vento.


Ele se levantou; pronto; caminhou até o trabalho. As ruas apresentavam uma paleta de cores emocionais, o embate delas ao invés de formar um arco-íris, causava confusão. Ele estava cansado. Chegou ao trabalho e com a mesma intensidade de todos os dias foi assertivo e ciente dos riscos e dos resultados. Não ficou nenhuma pendência. Ela se espantava.


Apenas ela sabia da doença. A Realidade. Talvez por ter percebido ele se afastar dela, não por loucura, desespero, mas outra coisa, que ela entendeu ser uma doença. Ele não se importava com ela, dissociou-se.


Ela deixou de fazer sentido no seu dia a dia, ele nem a percebia mais; não a via. Ele observou a borboleta errante, certa de si, voando de forma a pincelar no céu cores de encanto e esperança. No fundo o azul céu e a certeza de que os rumos mudaram. Ele ainda podia sentir. Talvez tamanha fosse a intensidade dos seus sentimentos, que o dia a dia ali naquele escritório fosse percebido de forma diferente.


Com sorriso nos olhos, perpassou a brisa rumo à cafeteria dos fins de tarde. O cheiro de livros junto aos aromas de café eram seu predileto clichê. Ela o perseguiu até a porta, mas não entrou, não se sabia se era por causa da doença dele.


O expediente terminou e ele se permitiu a caminhos diferentes. Subiu a rua que fazia arder a panturrilha. Desviou-se dos ombros na estreita calçada. Escolheu um caminho diferente.


A chuva vinha sempre do mesmo lado do céu. Dos montes verdes, ao longe, atrás da sua casa. Ele sempre gostou de observar a formação das nuvens e esperar pela precipitação após os ventos. Era este sempre um momento de contemplação, de acessar lembranças e de esvaziar-se. Neste dia lembrou de como a conheceu. Passava de carro pela rua em horário tranquilo quando a viu desfilando na calçada. Ela, de pele alva, ou era jambo, de cabelos loiros ou morena flor, passava despercebida pelos beija-flores. Ele chegou bem perto com o carro, diminuiu a velocidade, abriu o vidro de foi categórico:


  • Bom Dia! Entre. Venha ser a co-piloto de todos os meus dias, permitindo a mim ser o seu. Você será a flor que em si é o próprio jardim, o elixir do sentimento que mantém a vida, a esperança, a paz.



Ela olhou com estranhamento. Ele possivelmente diz a todas, pensou. E se com o passar do tempo, diante das aparas de um relacionamento ele o mesmo fizer em outra rua qualquer? Ela titubeou. Entretanto, quanta sinceridade no olhar, ela se encantou. Ele insistiu. Ela entrou.


A maneira como ela saiu o marcou de uma forma tão peculiar, a ponto de não ser percebido pelos tantos personagens do seu dia a dia. Ele sabia das mudanças, pois sabia olhar pela janela. Acontece que pouco a pouco ele perdeu a prática de voar no olhar, de pousar no pensamento. Talvez fosse a doença; entretanto apenas a Realidade parecia saber.


Ele às vezes tinha espasmos de recordação de sensações de outrora. Seus dedos transformando a massa, sua mente se desvencilhando de qualquer pensamento que causasse dor. Ali, de pé na cozinha, enquanto de forma calma manejava a faca, cortava a massa já temperada, formando pequenos travesseiros. Via-os emergir da fervente água e os dava um choque na água gelada. Ponderadamente, dispunha a massa no refratário e por cima colocava o molho, temperado com parcimônia. Comeu à mesa, sozinho, olhando para o gramado lá de fora. Anotações perdidas iam com o vento pelo chão. Nem se importava mais em colocar no papel tudo o que pela cabeça passava. Não que não visse propósito, mas que já não tinha o mesmo sabor.


Os dias de trabalho eram mais uma das tantas contagens regressivas. Ele terminava o serviço diário mais uma vez sem deixar pendências. Saiu sem perceber ambas.


Comma. Invariável. O poder dos lábios dela sobre o vento ao balbuciar algo em direção a ele. Entretanto as palavras de Comma já não passavam pelos ouvidos dele. De longe, impiedosa, a Realidade observava o esmaecer da expectativa, mas a persistência de um sentimento. 


O toque involuntário de seus corpos em um corredor, no disputar desatento por uma folha na máquina de fotocópia, por um copo descartável na copa, por um lugar no elevador. Era mais do que o esbarrar, eram lampejos de esperança. Entretanto, ele não alimentou. Talvez fosse a doença, e só a Realidade percebia.


A Realidade a afasta dele. O escritório era uma sucursal de uma dimensão onde a humanidade era sensível, vulnerável, desesperadamente carente e cruel.


  • Ninguém me vê. Não me sentem ou me conhecem. Não se trata de fama, ou máscara, é outro reconhecimento. Ninguém vê a ninguém. Quando precisamos de nos agarrar em algo, quando lançamos o olhar em busca de um afago que nos proporcione respiro, muitas vezes desfalecemos dentro do crescente poço dentro de nós. [Comma encontrou um ponto final]


Ele não se tocou. Não percebia os sentimentos que orbitavam sua pele, tampouco tinha ciência das lágrimas que ainda corriam de seus olhos à noite. Ele não conseguia nem mesmo se sentir. Paulatinamente perdeu o contato consigo mesmo. O que poderia o retirar do automatismo modo de abster-se? Nem mesmo a Realidade o alcançava. A doença beirava seu estágio final.


Doença? Seria a apatia controlada um sintoma? Desprender-se da realidade de forma a nada, intensamente, fazer algum sentido, sentimento, importunar, pressionar ou encantar. Ele, exilado de si e do outro, seguia na silenciosa e sem lamúria marcação de versos, dia, noite, tardes, manhãs e madrugadas. A Realidade não concebia como normal alguém se dissociar dela; seja de perto ou longe. Rotulando anomalias, transformando-as em doenças. Contudo, a ele nada mais tinha assim tanta importância. Era como se ele não estivesse fora, mas completamente dentro e sem amarras.



quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Soro - 4 ml

 


A expectativa. Poderia ser o título daquele dia.

Ele saiu de casa, mas já na esquina teve de retornar, esqueceu de algo sem saber o que era. Tocou os bolsos, como todos o fazem, não sentiu falta de nada, mas sabia que faltava algo. Dentro de casa percorreu os cômodos à procura do que não sabia. Comeu maçã, bebeu suco, coçou a cabeça, olhou tudo e foi para o quintal. Lá no fundo, sentou-se no banco de madeira, daqueles de praça, mas confortáveis. Estava em uma posição privilegiada, no aclive. Encontrou. Era a paz. Gostava de sentar ali e observar a paisagem, ouvir as poesias gritadas pelas suas lembranças. Retendo momentaneamente o tempo que não mais passa. Os pés descalços trocavam energia com o solo. Às vezes, o piscar dos olhos nos apresenta tudo em um timelapse especial, tão particular, que só faz sentido enquanto os olhos estão fechados. E este universo, em expansão, é inacessível até mesmo para si, quando as pálpebras se recolhem. Seus olhos brilhavam regendo o silêncio. Saiu de casa novamente. Todavia, o piscar de olhos a conta-gotas, permeia todos os seus instantes.


A pasta feita de papel pardo às mãos quase pendia ao chão. Seus passos firmes sempre paravam nos setenta e sete degraus. Ele habitava aquela estação de trabalho durante a semana. 


Os poetas na estante não o avisaram, tampouco o prepararam. Hoje ela estava diferente. Arredia, traiçoeira, firme, às vezes afável, outrora cruel; a Realidade fazia questão de o lembrar do que ele não esquecia. 


Sem tropeços ou soluços ele foi assertivo em cumprir todas as atividades daquele dia. Nenhuma pendência ficou para outro tempo. Sem deflagrar dos poros suor, sem ter a derme rasgada por mais uma ruga, ele planava pelo dia.


Comma, este era o nome dela. Sempre o recebia com um olhar de ternura. 


  • Difícil a tentativa de dar conta do universo de realização de alguém. Tão complexo e complicado. Quase não tenho a capacidade de cuidar do meu universo, das minhas coisas. Enquanto no rádio escuto “everybody is gonna learn sometimes”; no umbral o pássaro negro repete “never more”. Fico entre os silêncios, o eco, a canção e o retrato.

  • Não se prenda.


Embaraçada nos conceitos, distanciando-se dos clichês, compreendeu não de imediato, sobre o que ele a disse. Ela se via nos olhos dele. Sentia paz na respiração dele tão perto de seu rosto, o calor de suas mãos quando as tocava despretensiosamente, a maneira dele beber café, o modo como escrevia nos livros e deixava-os para ela ler. Ele ampliava as obras. Contudo não sabia ela que se tratava de um testamento. Ele não falava da doença, ninguém a percebia. A gota do soro pingava como uma maçaneta de bumbo, soava dentro dele a dança do tempo com a esperança. Enquanto o enquadramento de como ele via o gotejar lembrava um filme de Ritchie, a trilha sonora tinha o som de Tom Yorke e Bjork, tendo ao fundo as risadas de uma mulher de branco, batom vermelho, estilo Almodóvar.

 

Se breve delírio, ou o quadro real, o silêncio acobertava a certeza, e ele a carregava todos os dias, indo trabalhar sem transparecer, ou falar sobre a doença. Se solução, se espontânea estratégia, se peripécia do destino, ou livre desatino, importa menos do que as interrelações que ele passou naqueles dias.


Nem mesmo seus passos tinham ciência de sua caminhada solitária, cheio de animais e pessoas ao redor, repleto de emoções, pensamentos e silêncio dentro. As tardes em seu fim sempre tinham algo diferente no vento, nas cores do céu e no cheiro do ar. Há tempos foi acolhido. O filhote amadureceu. Chopin vinha com suas patas, como se no chão tocasse piano. Era o nobre escudeiro, acompanharia ele durante toda a doença e além dela. Madrugadas de luar e sem luar, sentado em seu universo particular, com o escudeiro ao lado, com o caderno nas mãos. Seu renovar estava fora dos padrões, seu anseio por reconhecimento não seguia o clichê. Talvez fosse a doença.


Quando o dia estava para dar vírgula; quando suas pálpebras pesaram; ela ligou. Ele não entendeu. Estava tão perto. Os diálogos passaram a ser apenas bites e bytes. Vocalizar era fruto de garimpo, ainda assim, ele se levantou e foi, mas nunca chegou. Talvez fosse a doença.


Ela não entendia como ele insistia em viver sozinho naquela casa vazia. Não compreendia a energia dele para trabalhar sem deixar pendências, sem fazer laços, sem estender o expediente, sem reclamar, sem falar das lembranças, sem amontoar bitucas no corredor. Ela não sabia, mas talvez fosse a doença.



quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Soro - 3ml

 



Embora... As frases são castradas pelos instantes em que o sentimento se apodera dos pensamentos. Embora não fosse um problema, a solidão não poderia perdurar mais, ele sabia. Todavia, como trazer alguém para seu prisma, seu mundo e modo? Como ir para o mundo de outro, como integrar-se, no processo entre ceder e avançar, ouvir e também falar. Ele perdeu o ritmo; ou apenas mudou.


A manhã de chuva já ao chão não o assustou. Com o tempo à terra enterrado, ele permanecia desprendido da membrana social. Envolto das amenidades sociais, mas sem delas ser refém. Seus pés pisaram sobre o tapete de flores vermelhas, flores rosas, folhas secas. O noticiário insistia em o fazer não ouvir os pássaros. Quando o líder religioso não interpreta as escrituras como agrada os indivíduos, ou como socialmente se aceita, criam-se outras doutrinas, estabelecem-se outras igrejas; se o partido político se racha e passa as rédeas a outras mãos, ou restringem a voz, criam-se partidos para chamar inteiramente de "seu"... que essência perigosa, essa do controle, pensava ele.


Algumas pessoas se identificavam tanto com ele; talvez por isso o ignoravam, e não conseguiam o entender. Poucos suportam ver a si mesmo todo o tempo, ainda mais ver-se em outra pessoa. Ele não mais com isso se preocupava. 


O espinho na carne. Clichê da ostra. A impureza  no meio equilibrado, evoca reações; às vezes tem-se a pérola. O espinho na carne. Parece doer mais quando se está a retirá-lo; mas ele tinha a sensação de libertar-se do emaranhado que para muitos era socialmente comum, mas para ele, tratava-se de um arcabouço que o castrava como ser, tornando-o humano por demasia.


Ele, de certa forma, teve a leve sensação do que chegava junto ao vento. Ele não estava preocupado. A rua em hipérbole guardava o lar de suas mais profundas elucubrações. Ele via crescer e se formar a residência de sua paz. Na incerteza, a paz.