quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Entre a falta e a culpa


Algumas narrativas brotam semelhantes a cogumelos no gramado. São tantas texturas e contrastes além do risco. Os arquétipos se alternam em contínuo processo de sobreposição, deterioração. Perpetuam ilusões no cerne da sociedade. As análises, as tomadas de decisão, os sentimentos perseguem e o balançar na rede funciona como fuga em um dia de chuva. Os pensamentos escapolem pelos dedos quando o pote dos sentimentos é desastradamente despejado, derrubado. Tudo se espalha e ninguém vê. 

E a humilhação que passo é tão sutil que parece até namoro com a realidade. Sucumbi a desfazer-me de quem sou e a aguentar fazerem de mim o que cabe nas circunstâncias. O erro está na expectativa criada. Esse clichê que ainda executa pessoas e relacionamentos. Em uma sociedade líquida, as pessoas se divertem na ignorância sobre o impacto de suas ações. Um festival de suposições a maltratar o outro. Sou o bobo já cansado dos rótulos carregados. Cansado dos sentimentos que me rasgam e também dos que me trazem paz e aquele sorriso espontâneo. No cansaço me situo na impossibilidade de ser amado como sempre sonhei. Culpa das canções, dos versos, dos filmes, dos luares. Culpa de um sistema criador da falta. A falta. 

O de repente é a carta na manga do destino. Como traz a chuva que lava e leva e nos desperta. Na madrugada, o som da água lá fora fica ritmado às lágrimas do meu silêncio. Não há filme, livro, ou enredo especial. Trata-se da vida comum de quem vivencia o refletir a vida que leva ao invés de só apenas a deixar fluir como fazem tantos.

Não escondo minhas falhas, tampouco delas me permito ser refém. Exerço no íntimo minha liberdade de pensar e escolher, sem ter de submeter a uma moral da qual não comungo. 

Não imagina a ferida exposta que já não consigo estancar. Não é falta de sabedoria. É dor mesmo. Dor genuína, assimilada pelo cérebro, manifestada em todo o corpo.  Dor crônica do ferro em brasa da realidade cravando na alma os conceitos ainda sem palavras, sem significantes. Dor que se estabiliza na apatia de perpassar núcleos sociais e pessoas em busca da iluminação; do fim. Sem continuações, nem reescritas. Aprofundar em Dahl e assim temperar a própria existência. Encantador e esquecido como Ostrum. Ir além das oito semanas de cegueira.  Uma mancha na lembrança de uma pessoa senil.