segunda-feira, 17 de julho de 2023

denso



O tempo não cabe nos ponteiros. Assunto recorrente aqui, e não apenas aqui. Ele passa sem se desgastar, mas arrasta a vitalidade da carne, abrindo sulcos, despetalando a pele. Um texto denso e enigmático; corpo.

O espelho devolve coisas que não foram a ele entregues. Inclusive o atordoante silêncio. Se eu não lembrasse quem fui, talvez aceitaria melhor quem sou agora e onde estou. Se não lembrasse de cada erro, talvez me aconchegasse no agora. Mas o talvez tem mãos largas ao redor do meu pescoço. Enquanto cada um está em seu celular, assistindo a vida dos outros, nossa vida é esquecida. Antes, pelo menos as novelas tinham fim, e as tvs eram desligadas. Hoje as redes sociais escravizam o olhar, o julgamento, a comparação, o alívio, 24 horas. Todo dia. Se eu fosse um canalha, talvez não me importasse com o próximo, com os sentimentos e comportamentos. A crueldade velada dos cristãos é absurda. Todos se julgam certos e melhores. Os dias tornam-se desoladores, lembram momentos de outrora. Todavia, uma força estranha me mantém. Uma misteriosa chama que em silêncio traz paz e energia. Me pergunto como há tanto prazer nas pessoas em ferir. A paz incomoda. A felicidade atordoa. Não entendo. Seres individualistas insistindo em se fazer de sociais. Soprando sobre o outro todo rancor que trouxe. 


As pessoas se apegaram ao dinheiro, poder e status de uma forma absurda. É fácil amar quando se tem muito dinheiro, na manifestação das qualidades. Difícil amar no estresse, na falta de grana, na prevalência dos defeitos e das diferenças. Então, Tudo passou a acabar tão rápido. A instância do descartável. 


Sinto que meu tempo está no fim. Mas esse fim não me é certeza. 10, 20, 50; décadas, anos, segundos. Não aprendi a desistir, mas a persistir até a última gota a ser derramada. "Nunca guardei fôlego para a volta", por isso a intensidade da ida. Reuni no alforje todas minhas culpas. Agarrei a esperança em continuar. Amadurecer rasga o corpo. Torna sólido o que não há de dissipar no ar. 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

houve





Houve perda. Dor. Ruptura; perda. Dor. Deixou de ser quem realmente era em virtude do ambiente o maltratar tanto a ponto de empoeirar seu sorriso, silenciar seus assobios e suspiros, rasgar seu rosto com rugas e marcas de expressão. 

Então uma reconfiguração. Ele trabalhava na fábrica de calculadoras. Calculadora de realidade outra, as contas eram outras para o mesmo resultado. Cansado. Pesquisou bastante para se distrair. Tentou de tudo, de erros a acertos. Tristeza e culpa. Sentiu que era necessário e possível respirar de outra maneira. Alterou programação e redefiniu os rumos, fez uma calculadora diferente.  

Para se obter 2, não tinha como somar um mais um. Mas retirar um de três, ou dois de quatro e assim por diante. Alguns resultados apenas pela subtração. As operações parecem simples, como o bater asas da borboleta. Escutava de longe o cantar do colibri, corria para vê-lo no bebedouro de néctar. Pensou que alguma esperança pudesse ter ali significado naquele ato natural do voo, equilíbrio e ritmo. Voltou para a fábrica, a fazer mais calculadoras.

As pessoas continuam sem entender o que digo. Não porque falo eloquente ou sou melhor que outrem. Mas por alguma razão, não entendem. Escolhem se espremer na tela vendo redes sociais ou se acorrentar a boletos circunstanciais. Ignoram o óbvio e vivem dele. Abandonam o sobrenatural. Então palavras se tornam apenas letras bem colocadas. Estão ligados ao poder, valor, riqueza. Estão firmados nos dogmas do que entendem ser as regras de plena convivência. O corpo perece. A mente pertence ao corpo. 

Já dispunha de uma caixa de calculadoras alteradas. Era então momento de espalhá-las pela sociedade. Para se obter 3 era necessário somar um mais um; mas dependia da idade dos números. Pois às vezes era preciso somar mais ou dividir, ou subtrair. 

Queremos a bonança. Momentos bons. As coisas boas. As sensações agradáveis, as palavras e sabores que fazem bem. Queremos a felicidade, tanto em instantes agitados quanto na calmaria. Nada há de errado nisso. Mas a busca está firmada em ações controversas.

A narrativa plastificada das redes sociais não atende, as mídias tradicionais estacionaram, o convívio social emperrou como a agulha que não avança no vinil. Outrossim, quando o beija-flor perpassa o pergolado em busca de néctar, ele deixa poesia, ele entrega esperança, ele catapulta sutilmente o espírito e o olhar de quem reaprendeu a ver.

A vida. O que lembramos. O que lembramos da vida. A cada dia, nas tomadas de decisões, buscamos o quê? Que necessidade de legado, de lembrança gerada a partir de valor? Ajudar os outros... ajudar a quê? A ter as necessidades básicas de subsistência física, moral, social, espiritual e emocional? e depois? Como evitar ou compreender o rosto que ao espelho te questiona. O que lembramos? O que há de se esquecer?

Os rumos estão sufocantes. O embate certo e errado, bem e mal estacionou no óbvio ao desconsiderar a complexidade que há dentro do indivíduo. As caixas com as novas calculadoras foram distribuídas, juntamente com os novos dicionários. A paisagem começou a mudar, ou continuou a mudança gradativa, até que, ao longo prazo, esteja reconfigurada com o diferente. Nem melhor, nem pior, diferente. "As narrativas se aprimoram" disse ele observando o vento varrer e apertando o sinal de igualdade.