quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Soro - 24ml

 


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O sol atravessou a brecha na cortina acordando-a. Sua pele delicada protegida pela fina camisola confortável, até os pés. Sorriu ao se espreguiçar. Ela sabia onde estava. Olhou-se com serenidade no espelho; lavou o rosto, escovou os dentes e desceu seguindo o cheiro de café, e de canela (provavelmente eram aqueles deliciosos biscoitos). Cada degrau recebia seus pés descalços com a energia de um belo dia. Quando virou, rumo aos últimos degraus, ela o viu. Aquele sorriso aqueceu o peito dela. Aquele olhar era a confirmação. O café da manhã a dois. Os porta-retratos estavam vívidos, receberam o registro para o qual foram criados para eternizar.

Suas mãos se tocaram novamente.


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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Soro - 23ml

 


Acordar sem a sensação de estar atrasado era magnífica. Na fila do pão, achou triste, porém irônico, a mulher se preocupar mais com os problemas pessoais das blogueiras que ela seguia pelo celular, do que o conflito existencial do marido ao seu lado.

Cada qual fazia tremular a bandeira dos argumentos. Todos querendo estar certos, ninguém queria a solução, pois ela poderia significar estar errado por um momento. Escolheu o pão. Geleia de morango. Queijo provolone. Caminhou devagar até que viu ao longe o carteiro dobrar a rua. Deixou ele alguma carta? Não apressou os passos, mas foi com aquela inquietação na barriga, digna de quem sabe estar próximo a receber um presente. A carta estava à sua espera.

A letra dela era um convite a passear por traços de encanto; fascinação. Ela descreveu para ele sobre as novas canções, o repertório para ler, correr, meditar. Sobre os momentos de leitura deitada à rede que tinha na sala. Eles tinham o semelhante gosto musical, sem forçar; espontâneo encontro de almas. Ela contou como era trabalhar com a mente humana, esse ser nevoeiro; enigmático. O modo como ela caminhava com leveza pelos momentos de tensão era encantador. Um anjo. Ela falou de filmes, e da vontade de assistir uma boa peça de teatro. Ele tinha no peito uma pequena dor de não ter sido mais corajoso. O compasso. Quando estava pronto, não a encontrava, quando a via um entrave havia. Quando tinha sede, nem uma gota. Tremendo de frio, a chuva o mirava do alto. Quando recitava a poesia certa ninguém ouvia. Quando escrevia ninguém lia. Ao tropeçar, todos apontavam o dedo. Quando novo, desencanto; ao estar pronto para amar, apenas amarras. Até aquele momento, ele não tinha entendido o compasso e o seu lugar. Afora o desejo, a certeza que traz paz. Ele leu com amor cada curva da escrita. Reduzia o ritmo com medo de que acabasse logo. Apressava-se pois era o seu instante no universo. E quando acabasse aquela, iniciaria a espera pela próxima carta.

Reparou em como ela pingava os is. Percebeu as palavras que se repetiam, marcando o repertório, enaltecendo a mensagem. Os momentos de respiro e até breves arrepios. Estavam íntimos de uma maneira que não havia ainda sido possível, por causa da distância, da realidade e do tempo. Entre uma página e outra da carta ele respirava. Sentia o fresco ar pelas suas narinas trazerem o refrigério ao corpo. Alguém ainda lê cartas assim? Ele re-aprendeu a ler. Não eram as cartas que ele lia, mas Paca; seus traços, curvas, pausas e voos. Embora a trajetória canse o corpo, a alma, a mente se renova diante de tanta ternura, verdade e entrega mútua.

No jornal leu o artigo sensato de uma gestora de comunicação ícone nacional, a respeito das intempéries transformarem os modelos de comunicação e as pessoas, propiciando que todos se tornem mais humanos, no que concerne à empatia. Um texto sem agressões, certa soberba nas entrelinhas, mas humildade na pontuação. "Seja sua própria audiência." Repetiu mentalmente até alcançar os diversos desdobramentos do sentido da frase, ressignificando-a. Semelhante às ondas subsequentes ao jogar um limão na água. Ele sorriu, pagou o jornal e voltou.

Não precisamos de muitas palavras. Ele passou o dia sem as perturbações das pessoas que de tão determinadas em alimentar o ego, esquecem de respirar, de reduzir o ritmo, de falar baixo, degustar com calma. Evitar incomodar. Caminhando pelas tranquilas ruas do bairro ele foi ao Sebo. A essência do sebo não estava na guarda, mas na brevidade da estadia.  O ritmo marítimo do ir e vir de ondas. Os livros deveriam continuar a chegar para assim, permanecerem a partir. Ele circulava pelos corredores, sentindo o cheiro de cânfora, de papel envelhecido e histórias à espreita. Sem o nariz coçar, sem as mãos sujar. Folheava as obras imaginando não a história em si, mas o quanto do escritor estava revelado ali. Um sonho lúcido.

Paca de manhã, refastelando-se no lençol e na preguiça. Bowie lá atrás na parede mandava não a incomodarem. Ela era aquela sensação boa que vem do nada e transforma o seu dia.  Talvez ela não soubesse. Docemente elegante, fora de rótulos. Ela não precisa de um. Uma pessoa que ama o próximo e só quer o bem, só faz o bem; mesmo sem perceber. Ele só tinha bons pensamentos em relação a ela, pensamento de paz e ternura. Desejava que ela fosse feliz. Sem grandes justificativas e desdobramentos. Que ela pudesse do abrir ao fechar os olhos, ter o peito aconchegado pela paz de ser. Que ela além de vivenciar cada instante, soubesse a maravilha que é sua vida e trajetória. Ele fechava os olhos e conseguia ver Paca flutuando pelo turbilhão urbano daquela cidade avião de onde decolam sonhos, mazelas, vibrações e esperança. Ele percebia que ela encontrava aconchego em meio a tanto concreto. O colibri pousado no fio alçou voo, abriu os olhos fechando o envelope com mais uma carta. Decidiu fazer gnocchi. 

A virtuose da espera. Enquanto à volta tudo acontece. Enquanto todos correm, paredes golpeadas, nomes gritados ao vento, difamados em portas de banheiro. Enquanto números atravessam o tempo todo pela cidade, sem respeitar sinais e faixas. A espera in natura, sem traumas ou amarras. A lágrima se precipita mas não escorre. O indivíduo grato tem visão melhor sobre as texturas da realidade, sobre os instantes da espera. A gratidão, a compaixão, não fraquezas do modo em que Nietzsche aborda; mas fraquezas  do sujeito social, que fortalecem o indivíduo. E no fim, há o indivíduo; mesmo que compartilhando experiências, vivendo junto, cada um sendo o "outro" uns dos outros. O legado não é gritado ao longo das gerações. Ele é acolhido espontaneamente, sem metalinguagem, sem prolixidade. Aprendeu a esperar. O silêncio é um universo à parte no qual ele aprendeu a habitar. Degustava cada ausência entendendo o que há de presença no silêncio. A profusão de ideias, rimas e ideais.

Café forte, sem rodeios. Amargo sem comprometer o paladar. Bolo de queijo com goiabada. Fofinho, cremoso, doce sem ser enjoativo. Novamente em uma casa de ecos. No alto do vale, longe das barragens. O lugar tinha nome de símio. Povoado vazio. Pontos de emergência por toda a parte. Mas nenhum ponto para ele. Pegou a cafeteira moka, sem cabo. Fazia café utilizando um pano de prato para se servir. Era possível tocar a névoa da manhã, por instantes, até o sol a dissipar com sua forte luz que não aquece, mas ilumina. Ele estava feliz. Seu desejo era permanecer ali, naquele ambiente, naquele povoado e naquela rotina. Contudo, sua estadia era momentânea. Estava de passagem. A Realidade não tinha fôlego para o alcançar naquela altitude. Ele nem se lembrava dela. Aproveitou a os dias ali, pois seriam os últimos. Retornou para a cidade na certeza de mais uma carta o esperar para ser lida. Ele faria tapioca no lanche. Café forte. 

A gratidão faz florescer uma sensação maravilhosa. Mesmo que em silêncio, ou isolado, de forma que ninguém perceba. Estar grato é revigorante. Atenua a maneira como sentimos bater o próprio coração, o modo como a respiração nos mantém na dinâmica mecânica do corpo em movimento. Ele transpirava gratidão. Seus poros exalam o perfume da paz. Estava ciente do chão que pisava. Piscava os olhos com parcimônia. Sentou-se para ler mais uma carta. Esta demorou para chegar.

Paca também tinha seus momentos de preguiça. Não apenas a correria na lagoa, o ioga e a mágica no trabalho. Ela tinha momentos reflexivos, de cansaço e também os de preguiça. Nestes, a letra revelava. Havia a preguiça diante do turbilhão da sociedade que se devora; porém pairava o sentimento arrastado do dia que estaciona, ou que segue, mas ficamos fincados no instante. Às vezes, o prazer de ter um livro para ler e não o fazer. Tal qual como disse pessoa. 

Sentado, limpando o restante de canela e açúcar do canto dos lábios, ele deixava a xícara sobre a mesa. No guardanapo respingado de ristretto, ele arriscava.


Penso no quanto escorro do tempo, a rima torpe que conduz meu coração. Passo ao largo do que se curva o horizonte; sentindo golpear-me as nuances de uma Realidade nua. Estabeleço comigo o anti-pacto para drenar a poça do não escorre mais. Águas turvas escondem minhas frustrações e despertam energia aos meus sonhos.


Nas manhãs frias, gostava de ler Fiódor, com café e vodka. A xícara de café. O mergulhar em uma manhã fria. Ouviu que a carteiro passou, ao escutar o barulho da bolsa. Mordiscou do biscoito de canela antes de ler a próxima carta.

Enquanto alguns engoliam o pôr do sol, ele os soprava com o olhar até se encontrar com ela. No luar, lançava facetas de esperança, captada pelo brilho refletido, na expectativa de tocá-la. Os desencontros foram massivamente a harmonia, regida pela distância, controlada pela realidade.

A carta tinha um cor diferente. A caneta acabou ou fora outra. Uma emprestada ou uma nova dedicada àquelas letras? Fato é que conseguiu ver a mão de Paca sobre o papel, debruçada sobre si, registrando nos traços o que não cabe no som. Ela contou do seu dia de trabalho, da visita aos pais, dos quitutes típicos do encontro de família. Ele lia duas vezes cada frase, como quem escreve forte sobre o papel, marcando a folha de trás. 

Não pensava em mais nada. Sabia de sua interferência na vida dos outros. Mas sabia também que com  o tempo ele vira poeira que se vai ao vento ou que gruda e ninguém vê. Pensava em nada enquanto soltou as amarras do olhar. Aquela carta era demasiadamente íntima; fez de sua pele papel carbono, sentiu as palavras entrarem pelos seus poros, seguirem pelo corpo todo, percorrendo becos, ruas, alamedas, avenidas, vias expressas, rodovias, inundando o coração, seguindo rumo ao cérebro, irrigando-o de uma sensação veemente especial.

Passo o dia como pássaro molhado na chuva, pousado; observando entre as gotas. Se aquecendo internamente.


Suntuosas curvas da paisagem. A montanha com rocha exposta, gramíneas rompendo a alvorada, sobrevivendo ao frio. Pássaros sem rota de voo, só verso e estrofe no céu que está sobre todos. Ele estava paralisado naquela manhã. Sem grandes gestos que pudesse mudar aquela encantadora paisagem. Na mesa de centro da varanda ainda estava o envelope e a última carta. Uma nova estava no assento. Havia mais volume, a letra estava ainda mais natural. 

O vínculo com a história muitos dizem. Enquanto a história é escrita nem nos damos conta. Tanto escapa pelos dedos de tal forma que fica registrado não a totalidade, mas o que desponta; seja pela relevância, seja pela irreverência, ou pelo poder de intervenção em quem está com a pena nas mãos diante do papiro. Os mesmos atributos naturais marcam o tempo. Não era ele o cansaço, ou o silêncio. Ele era pessoa, com marcas, mas sem amarras.


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Soro - 22ml

 

Seus pés, do frio chão ao gelado da grama, até a madeira seca, aquecida. Com o olhar fixado no horizonte de dentro. Sentado na varanda superior, no quintal. A xícara na mesa de centro. Envelopes perfumados abertos no canto, gotículas de café na borda. Ele começou a ler com a sensação não de surpresa, mas de aconchego. Não de ilusão, mas do que há além de parâmetros, expectativa e automatismos sociais. Era outra dimensão ali alcançada.

Eram palavras libertadoras. Elas saíram do papel, iam letra a letra, entrando no íntimo dele, correndo por suas veias, irrigando seu cérebro. Eram as palavras verdadeiras de Paca. Não a projeção que ele fizera, não a expectativa humana do reconhecimento pelo outro, não a poesia em fragmentada linha reta do amor, da vida. Eram as puras e plenas palavras de Paca para ele. Não se tratava de correspondência extraviada, o nome dele estava nos envelopes, no texto, onde ele ganhou até mesmo um apelido. Ela se lembrava dele. Ele nunca a esqueceu. 

Seu corpo formigava na sensação agradável do lacrar dos poros. O arrepio que ao passar traz um relaxamento. Estava em paz, o sol o alcançava sem algazarra. O vento não atrapalhou sua leitura, mas era uma mão a fazer afagos em sua face encantada pelas palavras de Paca. A Realidade se contorceu lá fora; ela não sabia das cartas, nem de quem eram, nem o que continham, mas percebeu que algo mudou.

No final da primeira carta ele parou. Tocou com delicadeza o papel e o cheirou. Se espreguiçou ao sol, sentado na confortável poltrona. Estava pronto para ler as próximas. A segunda era ainda mais intensa, então a conta-gotas ele a lia. Cada frase, uma dose do elixir imensurável, inominável, inesquecível. Sentia irradiar de energia em seus meridianos. Finalmente a cura, para o que não era doença.

Nem percebeu que cochilou ali mesmo na varanda. De pior os pesadelos e sonhos têm o momento em que parecem ser realidade.  Não se concebe quando acabará e assim angústia-se quem sobrevive às madornas. Enfrentando as ondas com a jangada rachada. Indo de encontro à lua. Sem notas, sem desafinar, o silêncio que conduz a alma pelos ambientes e prova da sensação de paz que é não se conectar aos padrões sociais, às vãs expectativas. Uma nova taça. Um brigadeiro de café, um pedaço de parmesão. Retornou à leitura. Cada carta lida era a certeza de sua liberdade, do novo instante que o revigora, o transforma. Paca mostrou o conhecer, mesmo no que ela nem imaginou. Ela sabia que ele não conhecia o mundo, que não cruzou tantas fronteiras; então, contou para ele de cada viagem, cada experiência, cada show de rock, cada café que provou, os sorrisos que colheu, os girassóis que viu se curvarem no horizonte em direção a ela. Tão modesta, vivia além da gravidade. Ela trazia equilíbrio ao dia, conforto a noite. Sua existência tinha bem definida e percebida vocação. Na quinta carta ela o levou à Europa.  Ele se encantou, pelas ruas de Paris à meia noite; pelos campos de vinícolas tão humanas, poéticas. Circularam por lugares especiais pela simplicidade de ser. Foi mágico.

Na sexta carta caminhou com ela em Santiago. Em silêncio. Reflexivo. Foi intensa a maneira que se integrou à ela. Casa frase um trecho. Cada palavra um passo. Cada letra um respiro. Ele compreendeu o quão profundo e irreversível é olhar para dentro.

A sétima carta ele guardou para ler depois do jantar. Ficou inspirado a voltar a cozinhar como água para chocolate. Cardápio adaptado. Alho-poró, dente de alho, pétalas de rosas, filé de salmão. Vinho tinto. Luz centralizada. Cozinha ritmada, colher de pau. O azeite na frigideira perfumou com alecrim o alho que perdia alvura e exalava um aroma encantador. O peixe. Cantava na frigideira espalhando o suspense do vir a ser; do alcançar o ponto certo. Gradativamente ele corou em camadas, mantendo suculência e elegância. Na frigideira ao lado, as pétalas e o alho-poró, uma folha de manjericão. Reduzido, encorpado, equilibrado. A frase perfeita, lançada sobre o peixe ao prato. O vinho já havia respirado, agora deu vazão a poesias. A sétima carta era a sobremesa e já avisava que outras iriam chegar.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Soro - 21ml

 

Vasto mundo de coisas belas. Ele aprendeu a destinar mais atenção, sem tensão, às belas paisagens, detalhes, sabores e sensações. Aspectos naturais que independem do ser humano. E que por diversas vezes é atrapalhado ou até mesmo extinto, pela manifestação da vontade social. Alimentados por picuinhas. Seres humanos se amontoam fazendo da insatisfação do outro o seu gozo. Ele se desvinculou por completo. Não havia mais preço. Estavam separados os hábitos de convívio social para subsistência e o que perpassa seu íntimo. Seu processo de limpeza, de elucidação, não se baseia em religião, doutrina, ou receita. Foi um processo natural.

Uma prisão. O Sol era forte e estridente o grito das expectativas. Um prisioneiro das ansiedades, das amenidades, da dependência que tinham dele. Prisioneiro calado, com frases prontas para equilibrar o convívio social. cansado. Torrava sua liberdade ao sol. Queima a pele, ofusca a visão; calor que atordoa, ilumina os poros de forma desnecessária. Aprisionado sem sinal, sem bateria, sem ter fechadas as feridas. Uma prisão, a narrativa dos outros, a vistoria que faziam nas redes sociais. Sem a devida leitura, Ele estava com a alma cansada, não o corpo. Tampouco a mente. Ele estava com a alma cansada. Uma ferida aberta; as risadas esganiçadas dos outros ecoavam pelas celas. A Realidade carcereira doutrinava sonhadores e necessidades.

As pessoas não percebem. Talvez ele perceba pois estava na sobrevida. Naquela parte que é a mais. Em que reconhece a beleza e maravilha da vida, mas não se agarra à vida, às mazelas, às vaidades, aos vitimistas como os que erguem o estandarte de tais aspectos meramentes sociais. A vida começa e termina todos os dias, em cada instante. Debruçada no orgulho, na vontade, na necessidade;com aquele hálito matinal de frustração. “Eu não sei na verdade quem eu sou” e nem isso o incomodava. A mente como um pássaro, vai longe e trás alimento. Carregava nas asas a possibilidade, e assim sobrepunha-se a mais um dia. Aconchegando-se nas maravilhas dos detalhes que as pessoas não observam.

A proporção da entrega versus a retirada não segue parâmetros; às vezes parece ter vida própria o desequilíbrio; tanta dor. Tanto vazio que nem cabe o medo. Os instantes alternam. Ele escrevia cartas. A gota. Um universo elementar condensado em uma partícula, Se lágrima, suor ou saliva. Era o corpo anunciando estar intensamente insuportável e por isso, escorreu. Não era mais possível conter.



Fizeram novamente, me entende? Acorrentaram as emoções. Dias tortuosos à beira da morte, dos outros. E diante da atrofia, certo arrepio. Novamente fizeram novamente. A censura velada do que o fazia humano; não podia pensar, não podia. Não iria respirar em outro ritmo. O rito social era extremamente cruel. Ninguém novamente sabia da saúde mental dele. Fizeram novamente e desta vez ele não gritou, nem chorou. Entretanto, a sobreposição das páginas tapava a dor, substituía o silêncio pela revelação do amor que ela nunca vá ler. Novamente fizeram e foi atordoante. Ele não era visto. Não trombaram nele A luz atravessava ele. Sem som. De repente, o equilíbrio. O lindo dia de sol, o vinho, a mandioca frita, sequinha, salgada na manteiga. O afável convívio. A esperança respira nos detalhes, pulsa. Meus anjos rodeiam-me, compreendem-me sem o saber; cuidam de mim na proporção que deles cuido. Demorei a conceber que no espelho, ele era eu. Tentando me ajudar, me privaram, duas vezes e quase três de criar o vínculo natalício com meus anjos. Tentando me ajudar, me anularam, e o pior, se regozijam de serem mais importantes e influentes, sendo que ao me ajudar, me substituíram. Percebi que com isso tornei-me outra coisa, que ainda não colocaram no dicionário, que ainda não se fala nos cultos, missas e funerais. Embrenhei-me nas possibilidades de uma maneira que tornei-me perene na memória deles, na psique. Contudo minhas feridas ninguém as vê, abertas, em uma lenta cicatrização lenta, profunda. O vinho também nestes momentos faz-se remédio para as ideias. Eu quis dizer a eles: Não anule meu amor com o seu amor. Não diminua meus abraços ao reduzir meu alcance. Não faça de sua carência motivo de se afirmar tentando me apagar, pois meu brilho é outro. Calei-me. Os anjos me conhecem além da distância e cuidam de mim na paradoxal proporção de que deles cuido. Falaria para você de mim, ouviria você, escreveríamos sobre nós dois juntos. O texto além das projeções. Afora a realidade, o que realmente existe. Cruel papel que finda, em uma madrugada de taça vazia. Leve,traga, leve; sopre, encante como canta o tempo, escorre como a lembrança; crave como a experiência, grave, forte, seja leve. E eu, a vírgula na frase, sem grandes pretensões, a vírgula.Essa trilha litoral que tortura os nossos olhos, é desdobrar montanha no cerrado, é compreender que além de nós perpetua-se o pôr do sol. Que o sorriso é mais do que parece; que o julgamento todo tolo é e sem os fundamentos que seriam necessários. Sentimentos em cova rasa florescem e sem embrenham no vento. Pode-se sentir o vento com as mãos, mas não o segurar, pode-se sentir a fumaça com as narinas, mas não a tocar. Nem a névoa, o vento, ou o tempo. Não saber o porvir já não dói. Sem se mexer, você instaura no ambiente a paz, a ternura, sem precedentes, sem responsabilizações. Você é. Agora.



Caminhou pela casa sem acender uma lâmpada sequer. Guiado pelo luar que se instalava através da janela, foi se deitar, pensando que em breve haveriam outros porta-retratos, com outros sorrisos, outros brilhos.

A Realidade não compreendeu o entusiasmo dos pássaros naquela manhã. Bem-te-vis e beija-flores. Era a anunciação. Ele tomou café, acompanhado de um brownie que comprou na padaria no dia anterior. Daquelas padarias pequenas, cativantes, especiais como um bom livro. O brownie estava especialmente preparado, com o aroma equilibrado de café, chocolate e esperança. O café, sem açúcar, intenso. Sentiu seu peito pulsar com o canto dos pássaros e o voo do beija-flor que o acompanha desde quando tudo turvo ainda era. Descalço, trocava temperatura com o chão. A grandiosidade não cabia no silêncio, não poderia ser compreendida pela Realidade. Caso estivesse alguma pessoa por perto, tampouco poderia compreender. Não porque ele era especial, mas ele estava diferente. 

A caixa de correspondência. Seus olhos percorreram o contraste da lata, com o papel. As primeiras cartas chegaram. Juntas. Como palavras que estavam emperradas na garganta. Ele as organizou por data de emissão. Não lhe ocorreu como ela conseguiu seu endereço, porém não seria difícil. Afinal ela sabia que ele existiu, mas não que o sentimento era em in natura; sem interferência da Realidade, sem parâmetros. Reconheceu no envelope a letra de Paca, que ele nunca havia lido.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Soro - 20ml

 

Ele lembrou das histórias que contou para seus filhos antes de tudo. O leão e o colibri. O peixe azul na saga em busca da bola. O leão que espantava a todos e a quem todos temia; até que o colibri chegou bem perto. Qual o motivo de todos temerem a mim? Talvez seja porque sempre está a rugir. Mas não sei falar de outra forma; e você porque não foges. Não teme? Bem perto da boca do leão diz o colibri: Aprendi a vivenciar o medo.O papagaio. Um papagaio lindo. Verde intenso. Psittaciformes com um potencial de vida imenso. Rasgava o céu com sua formosura, absorvendo do ambiente o melhor e ecoando fascinação, até que caiu nas armadilhas das palavras. Em cativeiro, desaprendeu a liberdade na confusão de assobios, sílabas, gargalhadas, ruídos na madrugada, pão molhado no café, asas cortadas no chão. Uma poesia sem sentido repetida ao vento. Na solidão de décadas. Lembrou do sorriso dos filhos ao ouvir as histórias. Isso a Realidade nunca conseguiu tirar dele, tampouco imputar sofrimento.

Razão do amanhecer. Porta-retratos brilham. Sem peso. Seguindo o ritmo dos dias, mas no meio dos minutos, o aperto no peito e a desfiguração da natureza humana diante de si, o fez piscar os olhos e perceber vazios; porta-retratos. Ele acordou com o resto do gosto de um café bem forte. Era a ressaca de quem dorme de olhos abertos. Sua moka estava sem cabo. Com as mãos nuas preparava o café, com um pano de prato surrado, mas ainda aveludado, pegava-a quente e vertia café à xícara. Era triste, em um dia tão lindo, de frescor, calor aconchegante do sol da manhã, bela paisagem e danças dos pássaros, o ser humano definhando em suas próprias mazelas comportamentais. A necessidade de hierarquizar pontos de vista, castrar o sorriso dos outros em função de certa acidez interna. Ele viu, com certo distanciamento, os ciclos da dor se renovarem. Percebeu a atrofia de entendimento dos que o circundam, e entendeu que o mundo está cada vez mais constituído de continentes daquele perfil, e que ele, assim semelhante a milhares, era mais uma ilha, sumindo no evoluir das marés. Culpar a lua? Ela não revela sua face oculta, porque só é oculta para quem se mantém à distância.

Cada parte desanimada. Impossível contextualizar os pedaços. Outrossim os anjos são a sobrevida no cansaço. Sentiu, o corpo se entregar, função após função, rumo ao abismo que alimentamos desde a infância. Distante. Distante. Distância entrou nele e se multiplicou. Percebi que ela era só Distância, dos sonhos, da sensação de prazer, da sensação de estar descansado. Ainda assim ele estava em paz. Estranhamente o colibri o seguia. Entrava pelo telhado ou pela janela e pontuava o instante com sua presença.

Intrigante, o pássaro não se limitou ao tempo, não se restringiu às fronteiras; fluiu de uma forma silenciosa, sutil, na paisagem. Chegou à esplanada, encontrou Paca, mas ela não o percebeu, não abriu a janela para ele. O colibri ficou dias, noites e luares pousado à janela de Paca. Até que no rompante despertar foi com o vento. Alto mar, profunda cachoeira; a noite dos escritores na rua da Bahia. O colibri sabia que não ainda havia palavras aptas a suportar seu texto. Então se calou de vez. Retumbante e reluzente pouso silencioso. 

As canções intensas embrenharam-se pelos poros iam além dos cílios auriculares, as ondas sonoras movimentavam dentro dele. Ele compreendeu que se tornou, antes de se libertar, uma pessoa que o deixava em desconforto, desalento. Pedia perdão sem ouvir a resposta. Acreditava que sua redenção não seria possível enquanto fosse torturado e moldado pela Realidade. Porém, agora, ela já não tinha sobre ele o poder de outrora. Ela tropeçou no fio da navalha , ele cuidou de suas feridas antes de partir. O colibri, calado, a tudo observou. Ao certo do que de perto sente e ao largo antevê, o amor sobrepunha a distância e ignorava o tempo.

Tomba e escorre pelas frestas penetra; a matéria transfigura-se além da lógica; o passo do tropeço é dança dos incautos; explicar ruminar sem precisar, um voar sem asas no asfalto quente. Tombado, selado. O sentimento lacrado na palavra soterrada por tanto cotidiano. 

Modelos matemáticos movimentando a natureza e sociedade. Toda fórmula já foi devaneio. Todo texto foi pretexto da manifestação de um sentimento que pulsa dentro de nós. Antes de calcular movimentos e interações de matéria, massa e elementos, tudo foi ideia borbulhante no caldeirão do caos, ou na calma superfície fria do equilíbrio emocional.

A mistura. Tons sabores e ruídos. Corpos. Carnes com tonalidades diferente por fora, mas por dentro do mesmo jeito. Carne, semelhante à gados, ou qualquer criação. Muda a cor da derme e o peso do bolso, mas o sangue ainda é sangue. Não se pode recalcular o passado, mas a base de dados pode ser ignorada ou reinterpretada para os cálculos presente de um futuro em efervescência. Outrossim,  enquanto muitos sofrem por estar desconectado a ela, ele de forma plena passou a transitar. Lembra do começo de sua libertação, quanto passou apenas a flertar com a Realidade. Tinha instantes de raiva, tristeza, conforto, comodismo e euforia. A Realidade não confessa, não se dobra, não parece se preocupar com ninguém, mas dele... sentia algo. Pois a maneira como ele se dissociou dela era peculiar.

Vaidades despencaram dos telhados, como uma chuva de sapos, socou a cabeça de quem estava nas ruas, nos escritórios, nas calçadas. Ele ainda respirava. A sensação bucólica de estar além, livre da frondosa estrutura de egos em um processo de canibalismo. Ele ainda se encantava com as amenidades de uma xícara de café quente, sem açúcar, com afeto.

A luz do sol atravessou a janela do carro. Não o ofuscou. Não o aqueceu, mas encantou seu olhar sobre as árvores, silhuetas das montanhas, bater de asas de pássaros, ir e vir de pessoas. A recorrência de palavras não era limitação do seu vocabulário, mas a repetição da vida ao seu redor, dentro dele.

Intercorrências do cotidiano. Tudo começa no ritmo em que as pessoas estão acostumadas, e de repente as mudanças fazem franzir testas ou desanuviar olhares; contudo, ele estava inerte. 

Se esvazia tentando se encher. O ser humano que não se contenta cria a falta do que não tem necessidade, só para alimentar a frustração.  Um penduricalho na janela dança ao vento. Barra poeira e ideias erradas. Ele ficava no horizonte inexistente o olhar. Seu lugar no mundo. Seu ponto na paisagem. Sua função da expectativa dos outros. Seu pensamento corria pelas ruas, as veias da cidade, até encontrar a terra virgem, sem marcas, sem cercas, sem traço da mão do homem. Até ver no canto um copo descartável amassado e compreender que a praga humana se entranhou em tudo, dos ambientes aos sonhos. Um parasita que quase chegou aos céus. Não resistiria tal chuva. O penduricalho na janela o lembrou de piscar.

O corpo leve caminhou ao sol, sem as amarras daqueles dias, mas no silêncio percebia toda a dor e aflição, superadas sozinho. Ele não transferiu culpa, não se vitimava com as circunstâncias, mas compreendia ser para ele, sem tornar-se epicentro de coisa alguma. O som de seus passos no chão, o cantar dos pássaros ao longe, o colibri rodeando as flores ao redor dele. Por instantes, sentiu-se como Mr. Nobody. Pensou em Paca. Difícil mensurar de forma límpida os sentimentos de outrora. O transcorrer da morte na vida. O apodrecer da matéria para ser adubo ao novo. Recompor de nutrientes o meio. As palavras erguidas como estandarte da razão serem rasgadas, usadas como arma para abafar um coração que sem regras lógicas, sem compreensão alheia, habita nas intermitências do tempo que não passa, não estaciona, apenas é. Não é o tempo que passa, mas a matéria que se consome, no conflito das energias do meio, dentro e fora. Sobram as ideias como dente de leão ao vento; esse que só é se houver o movimento. Por instantes ouviu o nome de Paca vir no vento, pensou mais uma vez em Mr. Nobody.



Não tenho gavetas. Não que precise. Não tenho o metro quadrado devido para repousar a cabeça. Tudo me é emprestado, concedido, alienado mesmo quando meu. Decidi deixar escrito para Paca um dia ler e quem sabe ficar sabendo. Mas minhas palavras não são tão evidente quanto meu puro sentimento. Tampouco os desdobramentos corresponde corretamente ao Tempo, Distância e Realidade, à luz da Expectativa (morta, petrificada ao olhar para trás). Não tenho linhagem, ou legado afetivo que não fora roubado de mim. Indivíduos ávidos por seres essenciais, necessários e insubstituíveis, fazem de sua razão de vida interferir e se apropriar da vida do outro. Tenho asas. “E este pássaro livre não se pode mudar”.



Era manhã. Um pássaro estava pousado no topo do que sobrou de uma rosa que foi botão e se despetalou. As demais rosas ainda molhadas pelas gotículas do orvalho. O Pássaro olhava para frente. Estático. Não se sabe se pensava no voo, procurava pouso, descansava ou apenas esperava, ou ainda hesitava a mover-se. Era o dia agarrando-se para não acabar? Era o ser humano tornando-se outra coisa. O pássaro nem piscou.

Mesmo sem ver o que esperava no céu, sabia que o dia estava lindo. Mesmo com as alternâncias climáticas, ele sabia apreciar o instante, embora às vezes confortavelmente entorpecido pela Realidade. Foram tempos, e metade dos tempos. Agora à frente teria outro compasso. Sem a Realidade a controlar o acontece dentro dele. Ninguém percebia, tampouco conseguiria compreender. Eram todos carne sobre ossos, uns com gordura, outros apenas pele e argumentos. Eram carne e concreto, armado pelas cifras que chicoteiam ponteiros, movimentando a sociedade. Ele não mais.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Soro - 19ml

 

Quão suave a sensação de um peso ser retirado de seus ombros. De suas costas; e você desconhecer o peso, mas ter fé de que quem o retirou, o fez para seu bem. Ele amanheceu com mais ternura no olhar. Em lentos instantes intensos ele percebia. O peso reduzia ainda mais. Era bom respirar o ar fresco das manhãs. Leve, era possível perpassar lugares, versos, escalar estrofes, montanhas, contornos, curvas, poros. Cobogós da alma. Passaporte na estante, documentos na mala.


Suas viagens tornaram-se algo mais que um passeio. Ele nunca havia estado ali. Lembrou-se de um restaurante à beira da estrada, com seus decks sobre lagos, mas aquilo ali era diferente. Longínqua extensão de madeira sobre um lago, contando ao meio a paisagem de bosques, brejos e água, muita água. O sol não apressava seus passos, tampouco o vento o freava. Com parcimônia atravessou, sem fazer fotos, sem dar vazão às lembranças. Era passo e sentimento. Endla estava ainda mais natural. Afora a névoa das manhãs. O frio, a distância o aproximava. As ideias às vezes se organizam como uma floresta. Caminhar por ela é assumir uma pequenez, vulnerabilidade e falta do senso de direção, de visão a respeito de onde começa e onde termina. Atravessou campos sem montanhas, cidades modernas e povoados pacatos. Cruzou o mar rumo ao seu continente, pois o seu retorno era a continuação da ida. Duas poltronas à janela. Vinho e torradas. 


Varreu silenciosamente os cômodos da casa retirando mais do que poeira. Não estava cansado, mas de certa forma sentia estar próximo de algum acontecimento. Não sabia se seria destes que marcam a trajetória, ou se era daqueles que a interrompe. Se alegre, rumo à paz e felicidade, ou se entregaria ao desespero suas preces. Ele não se preocupou. Sentia cada vez mais leve. Cada vez mais, menos peso. Não pensou nela. Sua xícara de café gerava muito mais do que epigenética. Transportava suas ideias no silêncio de um dia que começou frio. A paralaxe dos argumentos movimenta a sociedade e alimenta seus conflitos sem as pessoas perceberem.


Era versátil, sempre foi. Aprendeu na prática o funcionalismo do mimetismo, dos automatismos e da quebra de paradigmas. Não precisa utilizar as máscaras sociais que abafam não a respiração, mas a essência. Ele era pura essência. Em esperança, em paz. A melancolia fora lançada sobre a Realidade, e esta não mais podia o tocar.


A sensação de leveza o trazia aconchego. Algo aconteceria. Embora não soubesse o quê, tinha a certeza de que bom ou ruim era o que deveria acontecer. No entanto a paz em seu espírito indicava que seria algo bom, pleno. A serenidade se apoderou dele com uma maturidade. Isto não significa que sua irritabilidade desapareceu, mas que ele a controlava, nem que fosse mordendo maçãs. Sobre a mesa de centro, a bola de metal contorcido era o elo com quem um dia ele foi.


Um passo não é maior do que as pernas. O pulo às vezes o é. O pulo envolve entrega. A ousadia de tirar os pés de um lado sem ter nada mais que o vislumbre do firmamento da queda. Repouso dos pés. O passo é razão, o pulo é um passo de fé. Se tudo o que é sólido se desmancha no ar de Karl, tudo o que está no ar, em algum momento há de entrar por nossas narinas. E o que será então de nossas (tão nossas quanto dos outros) ideias? A pureza das intenções e a rispidez das ações. A morte da inércia e seu renascimento. Teimosia não é persistência e muito menos perseverança. Perdas e Danos. Clichês. Dionaea muscipula. A inércia é rompida. Lágrimas teimam em escorrer. Para obter a beleza das flores, fere-se a terra, trata-se do ferimento com matéria orgânica em decomposição. Mata-se a vegetação competitiva. Para despertar sorrisos, arrancam-se flores. Se deixadas ligadas ao solo, em breve murcham, fechando o ciclo. Mais matéria orgânica. Ciclos fechados não possibilitam transcender, e a Realidade sabia disso, sem saber um modo eficiente de torná-los perenes. Ele estava livre dos ciclos. Pulou.


Mesa para dois. Sentado no canto do bar, estilo pub, quase uma taberna. Pediu primeiro um café, para abrir as ideias antes de fechar os sentimentos. Observou que do outro lado, um idoso de brilho nos olhos sorria timidamente ao acaso. A pele cansada de apanhar da realidade, os lábios ressecados, após tanto pender palavras, esvaziando-se diante da profundidade das pessoas rasas. A ponto de desistir. A realidade o sustentava pelo cruel fio de vida, forçando-o a vivenciar todas aquelas mazelas, geração por geração. Pensou em chamar o velho para um trago, porém o fardo já estava selado. Acenou, como se o reconhecesse, e saiu levando as rugas e o silêncio. Café terminado, sua caipivodka chegou acompanhada de uma mini tábua de frios, e mandioca na manteiga.


Contemplar não era a única ação dele naquela noite. Todavia, o instante não havia chegado. Neste ínterim, contemplava os casais e os suspiros clichês dos olhares e feromônios. Os embates das gerações, os conflitos de relacionamentos em crise à silenciosa mesa. O casal dançando no centro do salão. Corpo no corpo, o balanço do verso à meia luz. O senhor respeitoso, a senhora aconchegada no movimento do corpo do marido. Era bonito ver como diferentes águas se encontram formando o mar. A música os balançava semelhante às ondas. Ninguém assistia. Ele contemplava a todos como quem vê o próprio corpo no espelho, submetido aos argumentos da Realidade. A desilusão pode alimentar processos criativos conforme pode afundar as pessoas em um processo melancólico de distanciamento e ruína. Não era o que acontecia ali. Ele podia sentir o chão e ainda assim não perceber peso algum. Ele podia sentir seu corpo, sem ter nos ombros nada; nem patente, nem correntes.


O cheiro de canela vinha da madeira do balcão. O perfume agradável, que o pescou, vinha da altiva, porém momentaneamente cabisbaixa, mulher de lábios vivos. Ela lia um livro cuja capa ele não conseguiu identificar. Quem leria à meia luz de um pub? O que leria?


Seus ombros não estavam pesados, mas suas pálpebras o traiam. Não correspondiam à vontade de se aproximar, de estar acordado. Ele insistiu. Precisava mais do que compreender, mas se envolver com aquela mulher tão especial, ainda sendo desconhecida, ele sabia o que sentia, e engano não tinha poder algum ali. Era mais que desejo, era o encaixe perfeito, a integração entre sonho, possibilidade e circunstância. Chegou perto dela, a ponto de ver intimamente a tatuagem com a face e poesias de Dali, o contraste na costela. Quando percebeu que ela o olhava profundamente, tropeçou em si e caiu dentro do livro, afogando-se nas páginas. Não compreendia como tantas palavras surgiam o distanciando do significado. Letras e letras em quilômetros, abarrotando metros cúbicos de sílabas. Acordou atônito. O cheiro de canela emanava do café à mesa. Duas xícaras e um livro.


Era o pássaro. Lutando contra o vento. Batia as asas tentando o movimento e encontrando apenas a resistência. Ele observava, era o que mais gostava de fazer, agora que vivia fora do alcance da Realidade. O céu anunciou a chuva. Seus lábios ainda ardiam. Mordidas sinceras o interessam. Explicações não cabiam. Ele rompeu não apenas a força do vento, mas conseguia transitar pelo pub sem tropeçar, sem se censurar. Era o pássaro cravado em sua pele. “Um pássaro livre que não poderia mudar”.


Um pombo no telhado. Apenas um pombo. A silhueta de um homem no alto de uma construção o chamou a atenção. Era mais uma moradia rumo ao céu. O pombo o distraiu, e contra a luz do sol ele corria para espantar o columba livia que teimava em marcar a massa fresca. Ver de longe aquele baile era a diversão das manhãs de forte sol. Ele estava sóbrio. Decidiu ir à feira, pois ao escritório não iria mais. Com uma sacola feita de lona, saiu a pé em direção à praça, dobrando a esquina, rumo à feira. Chegou sem saber como. Foi direto à barraca de frutas em busca do que poderia harmonizar com sua noite de filé, pimenta, manjericão, vinho e risadas. Abacaxi.  


Faca afiada gerando fatias, cubos e pequenos pedaços. Panela no fogo, molho borbulhando e forno aquecido. Nina Simone cantando para acalmá-lo. Manteiga derretida, lâminas de alho perfumando a cozinha. O instante correto de entrar com cada ingrediente. Não uma receita, mas um sentimento. Pimenta do reino moída na hora, colher de pau, pano de prato surrado, mas limpo. O alimento brilha no prato limpo. A textura forma uma paisagem na louça. O cheiro perfuma toda a cozinha e a copa, abrindo o piloro, trazendo os corpos à mesa. Os sons, como a famigerada cena de Hair, ou a canção Panis et circenses. Talheres apenas, palavras depois. Olhares nas entrelinhas. Plano e contraplano com ela. Ficar calado deixou de ser a opção, pois ela não iria sair dali.




Extensa carga cultural atravessa a maneira como a sociedade se organiza. Não pára mais para comer assim; cozinhar então? Transição de comportamentos, tecnologias e interpretação da vida. Soterrar sonhos, pisotear os jardins das individualidades calçados de ego. Viver não é para amadores e isso muita gente diz. Pode-se passar ingenuamente pela vida, mas não pode ignorar as implicações de se estar vivo. E não existem amadores.


Fácil falar quando se está na sua posição.


Acontece que não a escolhi, tampouco penso a respeito de escolher se estar onde se está. Todavia não renego o que sou.


Não é suficiente.


Quando é?


Não delegue ao tempo tamanha responsabilidade. Ele nem sabe se passa. Tampouco pense em envolver a distância como argumento. Você se esquiva.


Você sempre me superestimou.


Não sabe o que fala.


Já se ouviu?


Já viu além do que você representa?




Não havia hostilidade nas falas, embora ela entoasse certo desconforto e desespero. Ele permanecia sóbrio, elegante e satisfeito com os sabores à mesa. A sobremesa era o próximo passo. Entretanto não seria à mesa. Foram para a varanda, lá do alto, perto do muro limítrofe. Portais de madeira, cortinas brancas nas laterais, um balanço à frente. Confortáveis poltronas de palha de bambu. Marrom e branco. Trouxe junto da sobremesa uma manta para aquecer. Um bolo compacto, chocolate, de densidade e consistência intensas, sem pesar o estômago. Brownie. Trouxe o tabuleiro, com o potinho de sorvete de doce de leite, com pedaços, sem muito açúcar. Lamber os dedos e o pingo que foge ao queixo. Iluminação que gera aconchego.




A paisagem que atenua seus pecados diariamente é corrompida com seus pedidos de perdão. O frescor que toca sua pele dificilmente alcança sua alma. Embora seus ombros estejam leves, há certo peso no seu olhar, a certa profundidade nas pegadas que deixa por onde passa.


Inevitável deixar marcas. Pois até mesmo quando penso que não; estou a fazê-las. No entanto em você nada fiz. Ouvi sua tosse, senti sua pele, seu perfume, sua risada. Seu olhar no relicário me trouxe a certeza do que sentia, do que eu sinto. A espontaneidade de sorrir e não se importar, mesmo que tenham talhado o molho de queijo gorgonzola. O que comemos naquele dia foi pano de fundo para as trocas. Uma conversa íntima, a primeira, e foi como se nos conhecêssemos além do que o tempo. [Tocou seus cabelos vendo os dedos sumirem, inclinou a cabeça para cheirar seu pescoço, sua nuca, torre de marfim. Paladares se misturam. Expectativas são vaga-lumes rondando a copa da árvore.]


Está me confundindo.


Eu sei que Paca não é Realidade. Eu sei quem é você.


A ressaca da memória dos dias tristes o impedia muitas vezes de compreender que o momento era outro. Como escrever palavras belas com os dedos sangrando, com o coração e a mente cheios de uma dor atemporal? A morena de olhos de ressaca o observou no mercado. Fermento biológico. Quem compra fermento biológico à noite? Fermento e queijo defumado. Ela deu o troco sem contar as moedas. Sua atenção estava no que ele levava dentro da sacola. Ele não se importava se as pessoas se interessavam ou avaliavam suas combinações. Nem toda sobremesa deve ser apreciada depois do jantar. Algumas cabem bem como entrada, e um espresso. Assim as palavras. Algumas não devem ser deixadas à mesa, nem no final. Devem vir logo de entrada. Ele as entregou para Paca, de primeira, no relicário. A Realidade interviu. Ele sofreu. Resignado em sua insignificância. 


Queijo defumado, mel, pão caseiro, merlot na taça. O formigamento que domou seu corpo, poro por poro, o repousou na rede, com vistas para as estrelas.


Deliciosa a sensação de estar cada dia mais leve. Com direito a espasmos infantis de sorrisos espontâneos logo pela manhã. As canções tinham um movimento diferente no corpo dele. Não temia a Realidade, não mais estava submetido a ela. Percebeu que a intensidade mudou, talvez o amadurecimento com a idade; mas não. Era outra coisa e sabia que não era doença. 


Clichês derramados no mataborrão da vida. Cada luz com uma história, cada solidão um silêncio e nele um texto, cada escuridão a ansiedade da sensação, das sensações. O entendimento assim como o sentido, extrapolam as lógicas de uma sociedade contemporânea. A mancha da xícara diz mais que teu olhar a rondar meus pensamentos. As construções têm mais que tijolo e massa. Significado. Café para dois.




O mundo está cheio de lugares que nunca conhecerei, pessoas que nem saberei que existiram, o que fizeram, por onde passaram. Há lugares dentro de minha casa que ainda nem coloquei meu olhar, anos se passaram. Díspares arredores, não posso me render. Mantenho-me distante da Realidade, enquanto ela me rodeia, a sufocar-me com arredores díspares de olhos fixados, alienados na rede social e vida de terceiros; e eu sigo em meu isolamento, protegendo-me com minha membrana, tensão superficial. Sutilmente, meus anjos, em compasso os corações, recebi a paz, intangível, que você realidade não pode tocar. Díspares arredores ruidosos de um amor calado, de uma convivência usurpada. Descalço, integro-me ao jardim; desapareço na noite até que o orvalho me amanhece.




Sublime olhar. Cativante semblante. Ela é um anjo com todas as perfeições e imperfeições. Não uma santa, mas um anjo. Inspiração das belas telas de Dali, dos poemas de Pessoa, das mais especiais canções, dos inexprimíveis acordes. Ela despertava nele o que existe após as expectativas; a certeza.


Díspares arredores; olhares arredios. Altivez de arqueadas sobrancelhas; a lógica da psicopatia social, silenciada pela chuva, fossilizada na pele no voo de um colibri. Girondino café em uma tarde entre cortinas. Ela juntava-se a todas; juntas em um só ser. Ele ficou de olhar fixado na imagem dela.


Seu sorriso era capaz de iluminar o dia e aquecer a noite em aconchego, e transportá-lo para a vida. Contudo, a distância, juntamente com a Realidade a conduziu aos braços de estereótipos da cultura, da intelectualidade, e ele ficou resignado à possibilidade do que nunca foi. Tantos planos; tantas canções e suspiros. Ele mudou. Mas quando o café está frio na xícara, não adianta coar novamente. Quiz acreditar em um amor coldbrew que venceria a distância e o tempo. Cruel, a realidade ria alto, esganiçada, mal criada. A Realidade usava máscaras para esconder a falsidade e a fragilidade; para conter e filtrar as palavras. 


A seringa translúcida anestesiava o corpo depois de queimar as veias. O amargo do remédio chegava até a boca. Ele não queria mais as enfermeiras da verdade, embaralhando prontuários, distribuindo seringas sobre receitas. Ele não foi para se curar. A Realidade sabia.




Tudo tão branco. A sala de espera. Não percebemos que estamos nela enquanto nos imaginamos livres. Esquecer é uma benção para quem esquece, mas um fardo para aqueles que se lembram.




Ele não tinha esse privilégio. Persistia atento, sensível. Mesmo que ninguém o compreenda. Ainda que sua arte fosse vã e apenas relevante para um pequeno grupo. Ele sabia que a sinceridade não era soberana, que melindrosa na massa, funcionava melhor em grupos pequenos. Quem tem escolha? Quê? Cada um em compasso próprio. Rebeldia dos impacientes; aflição dos imediatistas. O ser humano perambulava diante dele, cada um na pura versão, egoísta.


Ele não tentava entender, mas respeitava. Era pouco remédio para tanta dor. Muita canção para poucos ouvidos. Pouca liberdade para tanta escravidão. Muita tentativa para pouco pódio. Desespero de corpo. Crueldade da rima. A Realidade achava-se soberana. Transfigurava-se à medida em que tudo mudava. Estava em seus últimos recursos, não havia margem para outra tentativa com ele. Ela sabia. Ele recostou a cabeça na poltrona enquanto imaginava.


Tantas tonturas, tantas texturas. Quando ela saiu, ele não a reconheceu. Era outra. Tanto contexto e tão pouco respiro. Outrossim, Paca estava viva dentro dele. Não uma lembrança, ou prisioneira, tampouco um devaneio, possessão ou premonição. Ele sentia a conexão. Paca estava viva dentro dele. Embora ela não sentisse o mesmo. A Realidade pensou em humilhá-lo. Embora ela não fugisse dela, mas sobrevivesse.


A Realidade não o acessava mais. Nem para humilhá-lo. Ele preparou o café com parcimônia e comeu acompanhado de um queijo meia cura. Manhã e tarde. O balanço da rede e sono intermitente. Malbec e queijo curado. Sorvete de amendoim com chocolate. Sabores suaves. Crocância histórica. Nada acentuado. Equilibrado, o ambiente antevia seus gestos. Concentrado. Ele estava entregue e nunca mais a Realidade iria o subjugar. Não sentia o aperto no peito. Não sentia o gosto da mágoa. Não encontrou porta de saída. Apenas soube não estar mais lá.




Caminhei pelo salão vazio daquele lugar. Corredores escuros ou mal iluminados de um porcelanato hospitalar. Outrora estive nas ruas, escuras, unidas. Ouvindo de longe o grito dos feirantes. Ruminavam. Ela cortinou de luz e depois fechou meu céu. Meu cansado coração pesou. Eu a vi desaparecer diante de meus olhos. Primeiro suplicando misericórdia, com marejados olhos avermelhando-se no canto. Depois, indo.... esmaecendo .... partindo e deixando pra mim um olhar vazio. Eu não mais a reconheci. O tempo nos engana enquanto nos movemos. Como a lua nos persegue no céu. Sem ao menos se aproximar. O beija-flor, atravessou o cobogó, pousou no fio, sob a chuva branda. Olhou para mim, até que eu o reconhecesse. Voou ao meu encontro, e foi além do meu horizonte. Minha costela ardeu.




Caminhar de olhos abertos. Sentir o vento, o frescor e leve rubor. Aquecer o corpo no atrito. Experimentar os antônimos de todas as mazelas e dores. Num instante, no voo certeiro do colibri. Por instantes pensou como seria envelhecer longe dali. Catas Altas, Alto Caparaó, aeroportos. Um dia em Vieste, tranquilo, percebendo o anoitecer em uma taça de vinho, tendo a vista do Adriático como refúgio de suas lembranças. Melhorar, mas não alterar os sabores básicos. Pratos brancos gastos, forros surrados mas limpos, feitos à mão. As viagens eram eternos retornos aos paradoxos que criou enquanto envelhecia. Desde o nascimento, até o auge dos movimentos limitados. Mover a carne cansado ao vento tornou-se um exercício não mais automático. Movimentos pensados no paraíso da Puglia. 


A Realidade e seu compasso descabido. O desejo de controle, de brincar com as realizações e anseios alheios, de colocar freio em potenciais e sobrecarregar talentos para desfazê-los. Uma briga de egos em escalada; não percebem que junto com os corpos, muito mais cai.


Cada um diminui o sofrimento do outro. Tornar a dor em amenidades permite que cada qual mantenha a luz de palco em si. Quando se tem saúde, é o que desejam tirar de você. Quando sorri com leveza e facilidade, é isto que tiram de você. Quando se tem dinheiro, retirar de você via tributos, boletos e interesses escusos de quem o circunda.


Lapso do tempo ter possibilitado envelhecimento à distância que assim perdeu sua elasticidade e então permitiu uma experiência outra; que a Realidade não consegue perceber, tampouco compreender. Ele sentia o seu lugar na história, mas isso não enchia seu coração, todavia o deixava sozinho dentro de si. 


Vago, perdido na distância e insuficiência. Tinha distância mas não havia espaço. Abriu a boca e sentiu a pressão nos ouvidos. Engoliu a saliva e voltou a ouvir novamente. Era como se o ambiente se adequasse aos pensamentos e sua mente orquestrasse tudo. 


Uma rachadura na tela dos contrastes. Um limiar diferente dos que os livros prometeram. Uma canção que completa os poemas de uma madrugada longa. Jorravam ao redor e dentro os efeitos... ele soube, mais uma vez, tudo estaria diferente.  Escorreu pela janela a gota concisa dos seus argumentos, os sonhos, a esperança, a vitalidade de suportar a gravidade. Gravidade. Épico dia de levezas pueris, a seriedade da vida diluída em um equipo. Um coração de cicatrizes, à leitura em braille, só se encontra amor; mesmo tendo dor nas entrelinhas; encontra-se apenas amor.


Belas curvas da carne na roupa. Tons variados, perfumes diversos. O magnetismo dos reflexos. O sol estava lindo com sua contendeu calor sobre os objetos. Certa beleza e paz vinha do desfile da luz sobre as árvores, através dos vidros, pelo granito do corredor. Ele sabia que o som de seus passo tinham o peso do seu cansaço. Urgências coletivas são bandeiras. As efetivas são individuais. E as pessoas lidam com elas no âmbito coletivo, mas o viés final sempre é individual.  Que tarde de adjetivos e onomatopeias! Ele por um mínimo instante até pensou que tudo mudará. A dança que não anuncia o próximo passo, o clima que muda repentinamente e fez de nuvens um teto acolchoado. Choveu intensamente. Setenta e sete minutos. A mudança de um dos três pólos da terra. Ele sentiu. Mudanças irreversíveis; estavam na prateleira de cima, mas ele sempre tropeçou nelas ao chão. Os ponteiros não davam conta do tempo. 


A névoa desceu a montanha silenciosamente. Ele via de longe, sem saber que ela chegaria até ele. Estava preparado. Sem intercorrências, seus pensamentos consonantes aos sentimentos e às sensações. Enquanto transpunha as ruas, na janela lateral do carro percebia a névoa continuar a descer, cobrindo estruturas e emoções. Ela veio com densa, com um frio e frescor, permitindo um calorzinho vindo com a luz do sol. Ela veio úmida. Cada gota um sorriso. Um modo diferente de vivenciar a natureza, o movimento da vida. Saiu dos caminhos conhecidos, se desconectou do último fio. Parou o carro na ponta da estrada. Não havia porteira ou cerca. Penetrou a mata virgem, guiado pelos sons.


Quando o sol atravessou as nuvens naquela manhã encontrou seu corpo estendido. Sua pele sobre a pedra levemente aquecida pela manhã. Seu corpo em contornos, como os relógios da persistência da memória. As formigas respeitavam a distância, os insetos não chegavam perto. Leve, a brisa balançava as flores, violetas, azuis, vermelhas, lírios, flores selvagens, amarelas e laranja. O corpo dele permanecia imóvel. Do alto da árvore o colibri o fitava. No mergulho do voo, passou perto de seus ouvidos, como quem conta um segredo. Ele abriu os olhos. 


A gramínea fria da manhã, o som solitário mas ensurdecedor da cachoeira. Lavou o rosto na margem. Bebeu daquela água cristalina. Os ruídos tinham a mesma intensidade. Equilibrada. Nada destoava do que se esperava que fosse. Se o comportamento da sociedade refletisse aquele instante, talvez haveria lugar para a Realidade em sua vida. O som das muitas águas. O brilho das pedras molhadas. Ele se permitiu a entrar naquelas gélidas águas. Sentiu o peso da água sobre seus ombros, o protegendo, limpando-o das mazelas sociais, dos rótulos e expectativas. Tirando de sua mente todo sofrimento, iluminando suas ideias e o fazendo concentrar em sua respiração; embora tão automática e espontânea, carregava a complexidade da existência. Asas de borboleta e tempestade. O cheiro de café ainda forte nas narinas.


Conseguia a ver perto dele. Ela tinha a pele suave. O sol exitava em tocar com firmeza, então ele perpassa cada poro com elegância e certa comoção. O vento freava, e paulatinamente acariciava cada curva daquele monumento de beleza que encanta pela leveza sustentável de ser. Ela plena em seu momento yoga. Ela caminhou ao sol, fez carinho nas flores e tinha um encanto de sorrir com os olhos, que era capaz de suspender o tempo e revirar a Realidade. Ele conseguia vê-la, mas não tocar.


O agradável calor da manhã remetia a um abraço. O sutil balançar dos galhos era dança, era afago. Suspiro era poesia diante do céu límpido, de poucas nuvens, fazendo silhuetas à luz do sol e a lua bem ao canto, ainda à vista, os pássaros voando sem grandes pretensões; viuvinhas, bem-te-vis, e perpassando os pensamentos, o rasante voo do colibri.


Cheiro de canela. Casca solta no chão, formigas nas rosas selvagens. Percebeu a vida. Improvisou um fogareiro, lenha estala, água quase ferve, café com canela. A paz tinha cheiro naquele jardim sem dono.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Soro - 18ml

 


Eram várias as solidões. A solidão da criatividade, autoconhecimento e introspecção. A solidão da sobrecarga, cheia de gente por perto. A solidão do abandono.

Eles estavam criando uma geração que não podia sentir dor. Os espasmos aprendendo a controlar os músculos da face controlar os músculos do abdômen o intestino ninguém queria que ele sentisse dor. A dor da distância a dor de entender que o outro sente dor e por isso tem que se afastar. As pessoas queriam evitar que as gerações mais novas sentissem dor. “Quem é  dor”? Perguntavam as crianças. Ele não soube responder.

No dia do seu aniversário Paca não ligou. Não questionou porquê dele não ter sido ainda mais óbvio. Não cobrou dele experiências de viajar o mundo e conhecer diversas culturas diversos sabores. Não jogou na cara dele a limitação que ele tinha em relação a paleta de cores dos ambientes e dos horizontes que o mundo havia guardado. Paca não ligou cobrando dele saber tocar um instrumento musical, recitar grandes poemas, compreender de questões metafísicas quânticas filosóficas; ela não ligou. Não se frustrou em saber que ele não conhecia o mundo e seus sabores. Ela não tinha interesse no conhecimento dele em trocar fraldas, cuidar de um infante febril, deixar em ordem uma casa. Não ficou cansada de saber que ele não havia ido a grandes shows de rock e que não se lembrava muito das histórias e canções das bandas que ambos gostavam. Ela não respondeu a mensagem. Ela não ligou. Se ao menos ele tivesse a chance. A chance.

Assistir os episódios antigos de Friends não apenas o conectava-o às lembranças da adolescência, onde sorrisos espontâneos eram seu refrigério na solidão. Com o passar dos anos, cada vez que assistia era um momento ingenuamente especial, pois estranhamente os conectava através da distância, embora ela não soubesse. O sorriso despretensioso aliviava a tensão dos dias, mas durava menos que qualquer princípio ativo dos remédios.

No sofá, percebeu o céu escuro da madrugada dar espaço a um amanhecer tão belo, daqueles sem cobrança, que proporciona paz e frescor. Era bom estar ali sozinho, mas se pudesse ter a leve companhia, seria ainda melhor. Contudo, ele entendia, era aquele instante sua melhor chance. Aconchegou-se no sofá. Amanheceu com sol, sem calor. O cheiro de café era palpável.

O que satisfaz? Uma recorrente pergunta retroalimentada a cada conquista ou frustração. Seja o âmbito que for. Acúmulo de bens, de experiências, de rótulos, sabores e sensações. Os instantes recorrentes de satisfação traduzidos em felicidade. A intermitente rotina de lutar para subsistir, desfrutar dos resultados. Renovar ciclos. Ser algoz, às vezes sem perceber, ser vítima. A instabilidade emocional que evoca o Narciso dentro do poço do abismo que há dentro de cada um, como justificativa para decisões de autopreservação. As pessoas desistem umas das outras. Trancafiando uns aos outros em solidões. O som úmido da voz dela no vento, comentando sobre a vida, o gesto sutil de arrumar o cabelo que coça a face.


Queijo provolone, picado. Mel jogado em cima. Um vinho generoso. As mesmas páginas de um livro recorrente. Ali no balcão, da cozinha de casa, lia como se relacionasse com uma pessoa. Tinha respeito pelo livro. A audácia do escritor em lançar palavras organizadas sobre o papel, sem imaginar a profundidade dos desdobramentos das páginas ao longo do tempo. Longo, tempo. A brasa estalou lá fora. O peixe já estava temperado. O filé também. Geleia de abacaxi com pimenta reservada. Manteiga com alecrim no ramekin. Atravessou o gramado, saindo da cozinha. A grama fria massageou seus pés. O piso de madeira. Sentou-se na varanda. Porção para dois.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Soro - 17ml

 

Acordar era inevitável. Ele nem se importava. Conduzia seu corpo para o banheiro, depois para a cozinha. Foi para a varanda ler seu livro. Recostado na poltrona, olhava tudo com certa tranquilidade, lia em paz, saboreando seu café. Até que de repente. De repente, nada aconteceu. O silêncio. Sem reviravoltas, sem surpresas e metáforas, a inércia. Decidiu fazer uma viagem. No entanto não seria daquelas redentoras, mas apenas para colocar o pingo no lugar devido.

No caminho, pessoas. Sofrimento e irreverência continuam como moedas sociais. Na mesa de discussão da agenda reflexiva, as memórias reais da sociedade são substituídas por ideologias de palavras e espasmos de uma puberdade tecnológica, onde a ponta dos dedos ordena ações às telas, mas as palavras à cabeça não provocam mudança nos comportamentos. O espelho que anda diante de nossas palavras reflete nossos pensamentos. Encenar a espontaneidade é respirar. Frustração é consequência de visão limitada [embebida em paixão], entendimento raso. Diante dos desafios, o talento traz a confiança, mas apenas a sabedoria a mantém. Apesar de tudo o que cansa no humano, os poros escondem mais do que pelos; o suspiro e as palavras muito mais do que significados.

A felicidade está em encontrar a plenitude da vida no gerúndio, no significante. Chocolates e olhares. A amargura o distingue, realça a ternura de seu sabor, delineia o espanto, o medo de se envolver; a vontade e a energia. Tudo em uma mordida silenciosa, seguida de uma intensa e vagarosa dança da língua. Amelie ou Angelique. Poulain ou Delange. O som de degustar um chocolate. Caminhar na chuva emotivamente anônimo meia noite em paris; texas. Inocente, ingênuo e intenso, o amor se faz em um chocolate e impregna-nos ao se desfazer na língua. O pensamento, o sentimento, nela.

Ele iria mais uma vez à cidade do concreto armado, das pessoas paradoxais, o epicentro do girassol. Desafiaria a distância, sabendo que mesmo ao se aproximar, permaneceria à distância, pois o que a alimentava não era o instante, as circunstâncias, mas coisa outra. As escolhas e seus desdobramentos. O tempo não permitia alterações, tampouco aguardava, ele ia… até ser enterrado.

Não olhava mais a distância. Pois era ver tornar-se miragem o que tocassem os olhos. Manteve o foco na proximidade. O mais correto, funcional, covarde ou íntegro a se fazer. Na proximidade estava seu primeiro impacto, a primeira onda, sua responsabilidade. A cada passo, a distância se renova, mas a proximidade também.

Os corpos. Carne com nervos e sangue. As pessoas são mais que os corpos. E os sorrisos são muito mais do que mostrar os dentes. Quando sinceros, são pontos de acesso à alma.  Esse metro quadrado. Resignado a rodear de um lado até a porta e voltar. Não sair, por opção. Não sair, para não aumentar a distância, para não se perder às proximidades de outro contexto, aquele onde poderia escolher novamente, sem peso ou memórias. Sem julgamentos. Naquele metro quadrado, ele podia pensar mas não agir. Podia refletir, mentalmente ir além das circunstâncias. Porém, quando a fome chegava, interrompia o pensamento e se voltava à rotina daquele metro quadrado. Os dramas brotavam como ervas daninhas. Era o último dia. Seu coração saiu do peito e percorreu cada canto, cada centímetro cúbico, quadrado. Voltou para o peito cansado. Até onde ele chegaria? O caminho só era longo se olhasse para o futuro. Ele não mais o fazia. Estranho, mas em silêncio, quieto, ele se integrava ao ambiente à medida em que o observava. Deixou de se explicar há muito tempo. Parou de se cobrar.

Transpor a imperceptível lâmina d'água da realidade e misturar-se ao outro. a justaposição de Eiseinstein e a liberdade de Bazin. O epicentro da vanguarda em algo que se revela não como novo, mas como alternativa ao fluxo da modernidade. A reflexão sobre o que é o dia, a vida e um no outro.

- Essa tua ruminança não é genialidade. É uma coceira do ego, da vontade de dominar. A alternativa então é ser cafona e sumir na massa, para que você me conte nua; me continua na curva da cintura desse nosso devaneio. Quando a palavra silêncio preenche toda a minha boca você surge. Contempla sentada ao meu lado. Ah, a tipografia orgânica desse seu olhar;

Diante de tantas feridas, para estabilizar-se, o indivíduo anseia ferir e controlar o processo de ferir até saciar sua vontade em não sentir mais dor. Todavia, ao atingir este nível de compreensão dos desejos (e feridas), o ser verifica que o próximo passo é não ferir. Amadurece e então, cai uma pétala. Automatismos e mimetismos: muito mais do que uma loja, um encontro, um café ou livraria; uma via. 

Desde cantares a tudo o que se comporta nos ares apaixonados. Nas rimas, nos olhares, anseios. As histórias de amor admiradas, buscadas, acreditadas e desacreditadas. O Humano deseja a saciedade e pujança que o amor proporciona dentro de si, não apenas no coração, mas em todo o corpo, perfazendo em eletricidade uma sensação de êxtase. Cada tentativa clama por materializar os mais infantes desejos de se lambuzar na sensação de felicidade e entorpecência do amor. 

Seres humanos são fábricas de miragens. Alguns dizem que a busca pela miragem é o que move a sociedade e possibilita sua evolução. O foco na busca contínua, e não no alcançar. Entretanto, esse processo alimenta ferimentos e cicatrizes permitem a leitura em braile de nossas fragilidades; reféns de sonhos in natura. Há quem diga que se materializarmos aspectos da miragem na realidade que se apresenta palpável e perceptível (longe de ser concreta) conseguimos estruturar um efeito placebo para vivenciar os dias com mais leveza. Ele se perdia nos pensamentos. Dormiu antes de continuar. Ele aprendeu a liberdade que o perdão traz. Aprendeu que por mais que tentasse, não havia quebrado seus anjos, mas revelado a eles sua fraqueza, sua incapacidade, sua necessidade de amadurecer. Assim, ficou ainda mais ligado a eles, mas a Realidade usava da distância para o afastar também deles. 

Era tanta diferença que tornava igual a todos. Gemidos, suspiros e o modelo mental de julgar. Julgar e às vezes executar. Tanto ódio pelas ruas, mas sacadas e nas redes, que ele tinha ainda mais certeza de se desconectar. Tudo muito polarizado em um mundo globalizado. Sentimentos reducionistas erguendo muros, daqueles com cacos de vidro em cima. Ele não. Precisava se afastar cada vez mais, mesmo sem sair do lugar.

A ampola esvaziar-se-á ao instante preciso da queda do verso. A estrofe instável, volúvel como a gota, despenca lá de cima, e extrapola o corpo. Oco, o abismo cansado nem olha de volta. Era intocável a tristeza, mas extremamente visível. Planava no ar como as poeiras ao sol, em suspensão. Ele soprou a tristeza; mania de limpeza. Ergueu-se com a inquietude do seguir em frente. 

Conseguia ainda visualizar, a pele macia, o efeito da luz do sol ao tocá-la sem pretensões, o ritmo da respiração, o balanço da rede no compasso da música. Era o encanto sem dimensões, mas a distância era cruel com ele. A Realidade foi sorrateira, entrou ar no equipo. Ele não esperou, precisava chegar até ela.

A oportunidade não veio com o nome dele, tampouco ele o colocou lá. No entanto, soube a vivenciar à medida em que ela se revelou a ele. Sentia-se vivo de uma maneira diferente.

Uma maturidade perpassa seus poros, mantendo-o vivo, aperfeiçoado além das circunstâncias. Com a paz de ter feito as possíveis escolhas nos instantes apropriados e que seria capaz de lidar com todos os desdobramentos. Ele não estava em fuga, mas seguia em frente. O próximo passo, sempre foi o mais importante. Pois o próximo passo é que pode mudar ou manter o rumo. Ele deixou de ser displicente na caminhada, e parou também de se cobrar tanto. 

Caminhou descalço pelo gramado selvagem. O restaurante ficava perto de uma das grandes cachoeiras. O céu estava um manto azul de paz. As pessoas acomodadas em cadeiras de metal e madeira. Sem pressa. O garçom anotava os pedidos mas não os nomes ou números das mesas (que não tinham número). Quando pronto o pedido, andavam pelo gramado procurando quem pediu, e até mesmo gritando o nome do prato. Nunca esfriava. 

No momento de pagar, outra peculiaridade: ele perguntava o que o cliente havia consumido, e só então dava o preço. Funcional. Nunca teve quebra de caixa. Ele ficou alinhar horas. Mesmo tendo já comido, ficou olhando as pessoas, a relva, o céu. Ouvia ao longe o vozeirão da cachoeira. Iria até ela antes de continuar. 

Na área próxima ao balcão, uma espécie de museu. Máquinas velhas de tecelagem, de escrever, de fotografar, de pedalar, de caçar. Distraiu seu olhar com as telas na parede do fundo, as reproduções de rostos conhecidos do rock, da literatura e das artes plásticas. Pensou na sutileza de quem cria e na inocência de quem ignora, enquanto isso descia em direção à queda d’água.

A água gelada parecia lavar sua alma. Tão gelada que ele sentia um silêncio, um isolamento, uma intensidade anestesiante. Ficou quieto na água, colocando as ideias em ordem. Confirmando escolhas e se preparando para continuar. A força da água em suas costas era o carinho que ele precisava para se sentir vivo. 

Telas com cheiro de tinta. Gramados vastos pontuados de concreto. Alças confusas para agilizar o trânsito. Gente estranha fazendo encontros esquisitos, rede terno ou impessoal, imprimindo sempre irreverência. Ele estava lá. Não precisaria procurar por Paca. Sabia onde ela estava. Sem rodeios e devaneios chegou. Contudo, ela não o percebeu. Talvez fosse a distância. Talvez a doença. Quem sabe até a Realidade. Ele ficou parado, estava diferente. Não imaginou o que encontraria no futuro, pois nem mais o olhava. Seguiu.

Relevância. Ácidos argumentos, imagens que impactam, pela ternura, pela irreverência, pelo que desperta. Ávidos por relevância, os indivíduos seguem fluxos de despertamento da atenção e reconhecimento do outro. Seja pelas redes sociais, pelos produtos e conteúdos criados, pela postura nos almoços que não são mais domingo, pelas atitudes nos encontros. Relevância. Buscam obter já pensando ter. Assim, não raro observar a arrogância flamejante nos olhares. 

Ele se esvaziou da relevância. Doía nada o julgamento dos outros. Anestesia? Não. Liberdade. A Realidade não compreendia como não conseguia mais manipular os pensamentos dele como antes. Impulsionar ações precipitadas para escancarar a atrofia dele diante dos problemas criados pelos desdobramentos das escolhas. A Realidade se debatia enquanto ele seguia em frente.

Atos mesquinhos desfazem a virtude do ser humano em ser bom. Com um potencial de fazer maravilhas, o ser humano gera encantamento quando escolhe não fazer o mal. 

O contraste. Pessoas morrendo, indo aos poucos com uma doença, indignando-se com a Realidade, com o tratamento recebido, com a impossibilidade de reagir; outros indo subitamente, sem aviso, sem sinal, sem rastro. Pessoas também renovando-se; vencendo enfermidades e assumindo o compromisso de viver bem, seja o que isso representar. Nas entrelinhas das experiências, os profissionais da saúde transitando entre a felicidade e a melancolia, os eufóricos e os apáticos. Sobrevivendo, servindo, cuidando; guardando e registrando em si todos os sentimentos possíveis, a cada girada de turno. O corpo. Carne, sangue, nervos, bactérias. Não há remédio para toda dor. O contraste.  Ele não ficou lá por muito tempo desta vez.

A carne estava resfriada apenas. Fez cortes generosos. Sal, pimenta do reino moída na hora. Um pouco de manteiga de garrafa sobre. Azeite na panela. Alho em lâminas, o cheiro avisou o momento de entrar com o queijo, padrão. Vinho branco, ocasião. Gorgonzola. Sal, uma gota de mel. A textura e a temperatura revelando o ponto. A carne suculenta aguarda o banho. No prato, carne, molho, castanhas-de-caju quebradas e salpicadas. À taça Malbec. Ele estava com aquele olhar intenso, aparentemente em direção ao nada, contudo o nada não caberia a pujança que dentro dele extrapola os poros. Dois pratos à mesa.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Soro - 16ml

 

A manhã varreu a sala com a luz do sol, revelando uma carta de versos pueris, traços crus de um amor verdadeiro. Texto sem paradeiro, manchado de vinho no topo, com borra de café no verso. Ele nunca enviaria a carta. Estava cansado demais. Não a carne, que envelhece, atrofia e se perde. A carta era mais que desabafo ou declaração, era o mais próximo que as palavras chegaram do sentimento. 


O acumulado do orvalho descia lentamente pelo beiral. Gota a gota batiam sobre o metal esquecido no canto do muro. Se o calor da luz do sol pela janela, ou se o barulho das gotas, pouco importa o motivo de ter acordado. O sonho acabou com o sono. Não estava assustado, de ressaca ou deprimido. Alcançou uma apatia sem dor pela existência, no entanto, com um encantamento tão sutil por tudo o que seu olhar tocava, e sua mente sentia. Cada vez mais liberto dos demônios que o faziam ser o lobo do homem, e o corrompido pelo meio. Não mais estava na alcatéia, e o ambiente não podia mais o tocar. 


A Realidade, desesperada, havia tentado de tudo. Concedeu a ele voos, quedas, semi afogamentos para grandes respiros. Apresentou-lhe Paca, mas restringiu a ação do tempo. Fez seus olhos brilharem para em seguida o ofuscar. Apresentou o passado no presente, selando a perspectiva de um futuro, mas tornou turva a imagem e rompeu a linha do horizonte. Ainda assim, ele não cedeu. Quando à noite repousou a cabeça na rede, olhando as estrelas sem pretensões e filosofias, recaiu o olhar a lua cheia, erguendo-se rapidamente. Marias lunares. 


Ferida a lua se escondeu diante de tamanha dor. Um coração que bate no compasso da distância machuca o ser que ama, que não mais espera, mas apenas segue os dias. Pé ante pé, entregando as demandas dos outros recheadas de soluções, embrulhadas em um "nunca mais", amarrado com a fitinha do "até quando". Após o expediente e além dele, caminhou na rua sem pretensões de ver um rosto conhecido. Tudo o que percebia eram faces reféns de algoritmos, guiadas pelas cócegas no ego, pela sensação de pertencimento, pelo gozo momentâneo de controlar algo, nem que fosse a direção dos passos. Nenhuma preocupação lhe parecia absoluta, rima alguma assemelhava-se a um desfecho. Era tudo tão... um despropósito de estar em movimento. Não havia naquela multidão um sequer rosto de refrigério. Um bloco homogêneo, travestido de diversidade e vanguarda. Quando ele deixou de fazer parte, saboreou o isolamento da liberdade, mas o preço... 


Seu braço foi projetado para a frente, tamanha a topada, cheirosos fios de cabelo bateram em seu rosto, e seguiram no contrafluxo como se estivesse atrasada. Ele não viu seu rosto, mas sentiu. Seus pés petrificados não permitiram que ele a seguisse, um desespero, cada órgão se retraindo internamente, perdendo calor, brilho, fluência; semelhante a planta que resseca. Ainda atônito, chegou ao carro, quase se queimou com o café. Seguiu pelas ruas, sem se lembrar do caminho. Confiou no automatismo.   


Parecia uma farda. Camisa de manga longa, verde bem escuro. Calça preta, sapato gasto. Pele preta, do peito do pé aos fios da cabeça. Determinado, com passos firmes atravessou a rua e arguiu o vendedor de panos. Do carro ele observou os dois sem conseguir entender, se era uma reclamação por uma compra, uma peleja antiga, ou apenas devaneios urbanos de indivíduos em overdose social, viabilizada pela Realidade. O sinal abriu antes que ele pudesse se distrair mais.


Os cantos de suas unhas estavam machucados. Ficar por um tempo em um ambiente em que paira doença é exaustivo. Todas as energias boas do indivíduo são sugadas pelo ambiente que até no silêncios, nos bips e espasmos, chegam a ser aterrorizantes. Não de assustar, mas de proporcionar um lento terror, que corrói o que de bom há na pessoa. Ele não habituou a fazer estas visitas. Gota a gota, seus argumentos, grandes elucubrações sobre a existência, tudo desanuviava, quando a canção Smile, de Gilmour, ocupava todo o espaço da sala, desinfetando e higienizando. Ele podia partir. Contudo, a possibilidade não determina a ação. A escolha é constituída de mais do que oportunidade, coragem e vontade. Ainda assim, pouco importava para ele. Desejava apenas um café quente, sem açúcar, com trocadilho e talvez afeto. No balcão, uma xícara, uma tortinha de frango, um brigadeiro e um convite amassado. Percebeu o quanto estava sozinho, e dessa vez pesou de forma diferente.


Deixou de pensar no futuro naquele dia. As vergonhas ao espelho abandonou, a fúria cotidiana domou, as dores do passado, dessas ficaram apenas as marcas. Laços possíveis. A visão das pernas dela bem acomodadas à rede que levemente balança sob um céu azul lindo. O sorriso dela é um enigma do universo, belo e atemporal, intenso na simplicidade de ser um meigo, cativante sorriso. Ele poderia mergulhar naquele sorriso por todo o sempre; embora talvez ela não soubesse. Paca era tão sutil. Até mesmo tossindo, no cinema, sob a gravidade, era encantadora. Porém, a distância o fez prisioneiro. 


Como um pássaro livre, ele se movimentava pelas canções, no ar, de forma tão pujante que não havia horizonte em que não fosse além. Mas as canções muitas vezes se perdem em refrões, em repetições de notas e marcações de um compasso que interrompe o voo. Enquanto ele voava, a mesma canção ressoava na mente de Paca, que sem saber, estava conectada a ele, sem a pretensão de controle do tempo, mas sucumbidos à distância; esse último atributo da Realidade.


Quando a música acabou ele acordou. Cansado. Sozinho. A imagem no espelho, as palavras pouco usadas do dicionário, as emoções embebidas em neoplasia maligna, copos descartáveis pelo chão, textos com muitas palavras e pouca informação, ingenuidade de gente velha e infantilidade no lidar com as orientações e os propósitos divinos. A verdade, a mentira. O manuseio ressignifica, os desdobramentos podem ser atordoantes.


O demasiado humano ser ao tentar andar sobre as águas de seus valores, suas ideias e seus argumentos, acaba por atolar os pés e os joelhos em um lamaçal de vaidade, superficialidade e confusão. Ele não estava mais nesse grupo. Estava sozinho. Não da maneira apresentada em filmes apocalípticos ou pós-apocalípticos. 


Destituído; uma ilha cercada de pessoas por todos os lados. Um mar de íris. “Vislumbro em mim cada vez menos eu e mais Você. Isso me faz tão bem”. As coisas envelhecem. O tempo ainda é o mesmo. As ideias envelhecem, a carne se desgasta, as palavras re-arranjadas, repetidas. Flores aparecem, brilham e morrem. A água faz seu ciclo. Traços. Ritmos. Nos deslumbramos com o confete cotidiano. Condicionamos a fé ao nosso sistema de vida, existência e relevância. Desejos a serem realizados aqui. Errantes.


Erguemos bandeiras do desespero. Firmadas pelo suor dos hormônios que prendemos entre os dentes, entre os sonhos, entre as palavras. Entre. Nos permitimos ser ponteiros tontos de uma bússola desmagnetizada. Apontada para o ego. Quem vomita mais conhecimento? Posicionar as palavras como flores em um vaso: ornamentadas, para agradar, para seduzir. Cuidado com a finalidade; e com os espinhos.


Abelhas, pássaros e muita presunção. Lagartas e pulgões, além das mil interpretações da intelectual xepa que foi parida e cresceu. Modernos. Pós-modernos. Soberbos. Religiosos. Políticos. Humanos.


Exaustores de ideias e discursos esvaziados. Todos querem o protagonismo. Sempre. Primeiro passo para a libertação é reconhecer a atual posição, a natureza hipócrita das ações e preocupações. Deixe-as. Saia. Mesmo que não conheça o caminho para Shell Beach, saia da cidade. Sway. Cinema. Comida apimentada desce à garganta de forma agradável. Andar na chuva com a cabeça erguida. Plantar, assistir e ser vida. Até que o abraço do tempo seja de plena liberdade.


Após a livraria, o cinema, a praça; retornou para casa. Seu corpo cansado se desligou à cama. Dormir era sua chance de não pensar nela.



A mesma cor de cabelo. Quando loiras e quando morenas. Ele sabia que era amor.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Soro - 15ml

 


Precisou sair da cidade por alguns dias para um trabalho simples. Levou consigo a paz, livros e vinhos. Seriam dias breves. Uma construção de pedras bem arquitetadas. Cor creme, eco moderado. Pelas paredes conduz-se o vento frio mesmo em dias de forte sol. Atravessava-se uma ponte, também de pedra, encontrava então um úmido jardim, pista de pouso de borboletas, e ao final uma praça rústica, em que era possível assentar-se e assistir as pessoas, os pássaros, o tempo, quando esse passava. Quando ele passou por ali, teve ainda mais certeza da sua pequenez diante das grandiosidades construídas, das maravilhas constituídas, e da encantadora natureza. 

Vasto mundo. Estruturas turísticas comerciais, emocionais, espirituais; espaços de moradia e transição. Tanto a se conhecer, e vivenciar. Cada qual com sua porção acostumada da vida, do que é possível conhecer, chegar e ir além. Alguns, mochileiros em essência, outros, residentes do mesmo metro quadrado. Todos habitantes do agora. Entrou naquelas padarias típicas em que de tudo um pouco se encontrava; de componentes eletrônicos para celulares a arcaicos instrumentos domésticos. O essencial muitas das vezes está no fundo. Café forte, biscoito de nata no ponto em que derrete rapidamente na língua.

Tudo costumava fazer mais sentido. Se fosse para ser óbvio, ele seria uma bula, com todo o rigor da técnica. O quadro dentro do quadro. Ele sabia transitar, mas até quando iria querer? 

Lives sobre lives. Artigos sobre isolamentos, fronteiras extrapoladas e discursos ocos de uma mente embriagada pela Realidade. Precisava cuidar da sanidade, pois ao seu redor as pessoas doentes alimentavam a doença no sorriso, tentavam contaminar os outros, ao deixar o ambiente todo com a lente da doença. Não o vírus, mas seu hospedeiro o verdadeiro perigo.

Folha 54, livro 45; ele estava habilitado a trabalhar onde estivesse. Mas agora era diferente. Seu ambiente era outro. No quarto escuro, deitado à cama, com fone de ouvido, música alta e pensamento distante. Era ele. Todas as canções pareciam retratar suas experiências ou anseios. Em uma nova dimensão, ele conhecia amores, perfumes e tencionava a lógica, sentindo tudo ao mesmo tempo, naquele agora. Há anos, esta era a única ação dele para isolar a Realidade. Agora não precisava mais do fone, e nem mesmo da música alta. Naquele tempo, ele apenas desejava experimentar das sensações que estava além do agora. Tolo, antecipou rugas, dores e uma percepção da vida que castrou sua capacidade de alienação. No instante em que o tempo não passa, ele então compreendeu o artifício da espera. Junto à espera, a sobreposição das inércias sociais como estratégia de perpassar os núcleos de convívio, visualizar a mobilidade do epicentro do padrão cultural.

O trânsito e o vendedor de pano. O semáforo fecha, é o tempo que muitos precisam. Para conferir mensagens no celular, pra enviar mensagens, conferir o espelho. Respirar. Para outros a angústia na ponta do acelerador. Para eles parar era um atraso de vida, para o vendedor de panos, a oportunidade. Enquanto uns olhavam para o sinal e acelerando, torcendo para o verde não ficar amarelo; outros não viam a hora do vermelho dar passagem a possibilidade de ganhar o pão de cada dia. O vendedor de pano o ensinou mais sobre espera e pressa. Parado, com o carro na fila, observou o ritmo do vendedor, e a receptividade dos motoristas. As cores e sons e o conflito das intenções, concebidas pelo famigerados pré-conceitos. Ele nem os tocava, seguia conforme possível era. Comprou 5 panos de prato, um pano de chão; já não entornava muito as coisas, mas precisava manter limpas as mãos.

O processo. A ladainha dos pormenores, o encanto dos detalhes frutos do esforço. Melhor resultado é o processo, pois o desfecho é tão volúvel, instável, e perecível. O processo fica marcado. Ele atravessou o processo como quem ultrapassa a densa fumaça sem respirar, sem parar, sem enxergar.

Chegou em casa sem pressa. Subiu para descansar, renovando o vinho, o livro, o caderno de anotações e um pedaço de pão. A corrente de ar parecia trazer algo mais no oco do vento úmido, mas o que ocorria era o despertar de pensamentos por associação de sensações de outras experiências. Cada detalhe ao redor despertava nele a lembrança. Cada gesto dele acrescentava ao passado mais significado, mas não projetava para o futuro. A pedra fria da pia, farinha de trigo e vinho. A levedura, o cheiro, o calor, a espera. O provolone sendo cortado lentamente, os barulhos ao redor sumindo de sua cabeça, as imagens ficando estáticas, desfocadas e distantes, ele cada instante ainda mais dentro de si. Viu isso, e era bom.

Azeite e palavra. Temperatura, tempero e silêncio. Ele dosava tudo no olhar e na intensidade das mãos preparou o pão. Sentou-se na varanda para esperar ficar pronto. Enquanto isso, pegou o livro surrado que comprou no sebo, em uma barraca que funcionava dentro de uma feira. Capa cansada, bordas com sinal de muito manuseio, páginas dobradas, marcações; um total desassossego naquele desarranjo temporal. Era seu autor predileto. Lia pausadamente, enquanto o vinho percorria sua garganta, descia pelo esôfago até o estômago. 

As moléculas de etanol absorvidas entram no sangue e outras vão para o intestino, onde absorvidas também se integram à corrente sanguínea. A viagem do vinho dentro dele era intensa e rápida. Pelo sangue, percorria todos os tecidos do corpo; fígado, rins, cérebro e coração. Dilatação de vasos, restrição de filtros mentais. O álcool. Parte vertia do corpo pelos poros, atrelados ao suor que interrompe aquela fala para ser limpo. Um pouco era exalado na respiração, como o suspiro do poema que dói. O que não sai pela urina, vira o andarilho de Nietzsche rumo ao eterno retorno. No fim, gás carbônico, água e mágoa. Até que o fígado consiga eliminar o álcool e seus poros despejarem o que não cabia nele. A mágoa, no entanto, era afogada. A bebida era o gatilho do pensamento encadeado de sentimentos. O cheiro da rolha marcando as esperas da maturação; o rótulo escondendo a história entre as eiras da vinícola. Como a fila de dominós a cair, o vinho era a primeira peça à mente. Corpo em reação, mente transubstanciação. Ele permanecia em paz.

Ele olhou ao redor, quieto. Era como se algum sentido fosse saltar das coisas. Das capas dos livros, das receitas mal anotadas dentro de um livro, dos antigos pertences, das lembranças e suspiros. Não é que ele supervaloriza os sabores, cores, sensações e desdobramentos; mas trata-se de não depositar toda a energia e relevância em um instante que nem ainda existe.

Sentiu mudar a pressão do ar. Tinha ciência de que fora dele, todos se submetiam à Realidade, de uma forma ou de outra. No entanto, como ele, ninguém. seu pensamento ultrapassou fronteiras, até chegar a ela. Encontrou-a ouvindo Weder, enquanto alcançava Bhujangasana, tendo passado por Padmasana, da pinça ao camelo, até terminar na pose de criança. A distância era só um fundo desfocado. Seja de frente, ou de perfil, Paca tinha o olhar penetrante. Ela não fugia com o olhar. Apontava-o diretamente. Bailava no ar, com gestos, hábitos e um jeito tão verdadeiro de ser. Ele se encantou desde a primeira vez. Escreveria para ela naquela noite. Embora talvez ela nunca fosse ler.

A sutileza dela dormir não cabe num poema. Muitas experiências não podem ser representadas por um texto. Há alguns lugares que acolhem a mente, mas são indescritíveis. Principalmente quando estamos diante de uma situação sufocante; a distância. Que nos desfaz em cada detalhe, cada sobrepeso de responsabilidade, cada frustração que brota no chão. Como caminhar descalço sobre os rasos corais em uma praia em que a profundidade é sempre a mesma. Ele percebia. Não imaginou o que viria. Dias de sol sem poder caminhar, dias nublados sem poder assistir um filme e roçar nos pés dela. Talvez Paca tenha se tornado a Dulcinéia, ou o Santo Graal. Ou a esperança de felicidade de uma linha temporal alternativa, que ele sabe da existência, mas nunca iria acessar. Sua salvação no encontro. Sua perdição na busca. Sua paz no sonho. A distância então o golpeou, como o pássaro que ataca o reflexo na janela em um voo suicida.

Um amontoado de livros isolava do mundo o que ele pensava alto às vezes. Por horas cheirando as páginas antigas em busca de uma novidade, que breve como emerge o sentido da palavra lida, o salvasse do impasse da vida que tinha. Uma série de tosse em meio ao cheiro de cânfora revelava que até ambientes novos podem atacar as mais brandas rinites. Seu corpo o distraía das questões elementares interrompendo automatismos. Engasgou com a vírgula de suas escolhas. Não era o espelho ou o universo a confrontá-lo todas as manhãs. Ele aprendeu à sua maneira. Desenvolveu seu traço, mas não ficaram rastros brilhantes, apenas aqueles que se confundem com o dos outros, tornando cansativa e desinteressante a jornada atrás deles. Preparou para si um café bem forte. Com um gole inundou seus sonhos.