quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Soro - 17ml

 

Acordar era inevitável. Ele nem se importava. Conduzia seu corpo para o banheiro, depois para a cozinha. Foi para a varanda ler seu livro. Recostado na poltrona, olhava tudo com certa tranquilidade, lia em paz, saboreando seu café. Até que de repente. De repente, nada aconteceu. O silêncio. Sem reviravoltas, sem surpresas e metáforas, a inércia. Decidiu fazer uma viagem. No entanto não seria daquelas redentoras, mas apenas para colocar o pingo no lugar devido.

No caminho, pessoas. Sofrimento e irreverência continuam como moedas sociais. Na mesa de discussão da agenda reflexiva, as memórias reais da sociedade são substituídas por ideologias de palavras e espasmos de uma puberdade tecnológica, onde a ponta dos dedos ordena ações às telas, mas as palavras à cabeça não provocam mudança nos comportamentos. O espelho que anda diante de nossas palavras reflete nossos pensamentos. Encenar a espontaneidade é respirar. Frustração é consequência de visão limitada [embebida em paixão], entendimento raso. Diante dos desafios, o talento traz a confiança, mas apenas a sabedoria a mantém. Apesar de tudo o que cansa no humano, os poros escondem mais do que pelos; o suspiro e as palavras muito mais do que significados.

A felicidade está em encontrar a plenitude da vida no gerúndio, no significante. Chocolates e olhares. A amargura o distingue, realça a ternura de seu sabor, delineia o espanto, o medo de se envolver; a vontade e a energia. Tudo em uma mordida silenciosa, seguida de uma intensa e vagarosa dança da língua. Amelie ou Angelique. Poulain ou Delange. O som de degustar um chocolate. Caminhar na chuva emotivamente anônimo meia noite em paris; texas. Inocente, ingênuo e intenso, o amor se faz em um chocolate e impregna-nos ao se desfazer na língua. O pensamento, o sentimento, nela.

Ele iria mais uma vez à cidade do concreto armado, das pessoas paradoxais, o epicentro do girassol. Desafiaria a distância, sabendo que mesmo ao se aproximar, permaneceria à distância, pois o que a alimentava não era o instante, as circunstâncias, mas coisa outra. As escolhas e seus desdobramentos. O tempo não permitia alterações, tampouco aguardava, ele ia… até ser enterrado.

Não olhava mais a distância. Pois era ver tornar-se miragem o que tocassem os olhos. Manteve o foco na proximidade. O mais correto, funcional, covarde ou íntegro a se fazer. Na proximidade estava seu primeiro impacto, a primeira onda, sua responsabilidade. A cada passo, a distância se renova, mas a proximidade também.

Os corpos. Carne com nervos e sangue. As pessoas são mais que os corpos. E os sorrisos são muito mais do que mostrar os dentes. Quando sinceros, são pontos de acesso à alma.  Esse metro quadrado. Resignado a rodear de um lado até a porta e voltar. Não sair, por opção. Não sair, para não aumentar a distância, para não se perder às proximidades de outro contexto, aquele onde poderia escolher novamente, sem peso ou memórias. Sem julgamentos. Naquele metro quadrado, ele podia pensar mas não agir. Podia refletir, mentalmente ir além das circunstâncias. Porém, quando a fome chegava, interrompia o pensamento e se voltava à rotina daquele metro quadrado. Os dramas brotavam como ervas daninhas. Era o último dia. Seu coração saiu do peito e percorreu cada canto, cada centímetro cúbico, quadrado. Voltou para o peito cansado. Até onde ele chegaria? O caminho só era longo se olhasse para o futuro. Ele não mais o fazia. Estranho, mas em silêncio, quieto, ele se integrava ao ambiente à medida em que o observava. Deixou de se explicar há muito tempo. Parou de se cobrar.

Transpor a imperceptível lâmina d'água da realidade e misturar-se ao outro. a justaposição de Eiseinstein e a liberdade de Bazin. O epicentro da vanguarda em algo que se revela não como novo, mas como alternativa ao fluxo da modernidade. A reflexão sobre o que é o dia, a vida e um no outro.

- Essa tua ruminança não é genialidade. É uma coceira do ego, da vontade de dominar. A alternativa então é ser cafona e sumir na massa, para que você me conte nua; me continua na curva da cintura desse nosso devaneio. Quando a palavra silêncio preenche toda a minha boca você surge. Contempla sentada ao meu lado. Ah, a tipografia orgânica desse seu olhar;

Diante de tantas feridas, para estabilizar-se, o indivíduo anseia ferir e controlar o processo de ferir até saciar sua vontade em não sentir mais dor. Todavia, ao atingir este nível de compreensão dos desejos (e feridas), o ser verifica que o próximo passo é não ferir. Amadurece e então, cai uma pétala. Automatismos e mimetismos: muito mais do que uma loja, um encontro, um café ou livraria; uma via. 

Desde cantares a tudo o que se comporta nos ares apaixonados. Nas rimas, nos olhares, anseios. As histórias de amor admiradas, buscadas, acreditadas e desacreditadas. O Humano deseja a saciedade e pujança que o amor proporciona dentro de si, não apenas no coração, mas em todo o corpo, perfazendo em eletricidade uma sensação de êxtase. Cada tentativa clama por materializar os mais infantes desejos de se lambuzar na sensação de felicidade e entorpecência do amor. 

Seres humanos são fábricas de miragens. Alguns dizem que a busca pela miragem é o que move a sociedade e possibilita sua evolução. O foco na busca contínua, e não no alcançar. Entretanto, esse processo alimenta ferimentos e cicatrizes permitem a leitura em braile de nossas fragilidades; reféns de sonhos in natura. Há quem diga que se materializarmos aspectos da miragem na realidade que se apresenta palpável e perceptível (longe de ser concreta) conseguimos estruturar um efeito placebo para vivenciar os dias com mais leveza. Ele se perdia nos pensamentos. Dormiu antes de continuar. Ele aprendeu a liberdade que o perdão traz. Aprendeu que por mais que tentasse, não havia quebrado seus anjos, mas revelado a eles sua fraqueza, sua incapacidade, sua necessidade de amadurecer. Assim, ficou ainda mais ligado a eles, mas a Realidade usava da distância para o afastar também deles. 

Era tanta diferença que tornava igual a todos. Gemidos, suspiros e o modelo mental de julgar. Julgar e às vezes executar. Tanto ódio pelas ruas, mas sacadas e nas redes, que ele tinha ainda mais certeza de se desconectar. Tudo muito polarizado em um mundo globalizado. Sentimentos reducionistas erguendo muros, daqueles com cacos de vidro em cima. Ele não. Precisava se afastar cada vez mais, mesmo sem sair do lugar.

A ampola esvaziar-se-á ao instante preciso da queda do verso. A estrofe instável, volúvel como a gota, despenca lá de cima, e extrapola o corpo. Oco, o abismo cansado nem olha de volta. Era intocável a tristeza, mas extremamente visível. Planava no ar como as poeiras ao sol, em suspensão. Ele soprou a tristeza; mania de limpeza. Ergueu-se com a inquietude do seguir em frente. 

Conseguia ainda visualizar, a pele macia, o efeito da luz do sol ao tocá-la sem pretensões, o ritmo da respiração, o balanço da rede no compasso da música. Era o encanto sem dimensões, mas a distância era cruel com ele. A Realidade foi sorrateira, entrou ar no equipo. Ele não esperou, precisava chegar até ela.

A oportunidade não veio com o nome dele, tampouco ele o colocou lá. No entanto, soube a vivenciar à medida em que ela se revelou a ele. Sentia-se vivo de uma maneira diferente.

Uma maturidade perpassa seus poros, mantendo-o vivo, aperfeiçoado além das circunstâncias. Com a paz de ter feito as possíveis escolhas nos instantes apropriados e que seria capaz de lidar com todos os desdobramentos. Ele não estava em fuga, mas seguia em frente. O próximo passo, sempre foi o mais importante. Pois o próximo passo é que pode mudar ou manter o rumo. Ele deixou de ser displicente na caminhada, e parou também de se cobrar tanto. 

Caminhou descalço pelo gramado selvagem. O restaurante ficava perto de uma das grandes cachoeiras. O céu estava um manto azul de paz. As pessoas acomodadas em cadeiras de metal e madeira. Sem pressa. O garçom anotava os pedidos mas não os nomes ou números das mesas (que não tinham número). Quando pronto o pedido, andavam pelo gramado procurando quem pediu, e até mesmo gritando o nome do prato. Nunca esfriava. 

No momento de pagar, outra peculiaridade: ele perguntava o que o cliente havia consumido, e só então dava o preço. Funcional. Nunca teve quebra de caixa. Ele ficou alinhar horas. Mesmo tendo já comido, ficou olhando as pessoas, a relva, o céu. Ouvia ao longe o vozeirão da cachoeira. Iria até ela antes de continuar. 

Na área próxima ao balcão, uma espécie de museu. Máquinas velhas de tecelagem, de escrever, de fotografar, de pedalar, de caçar. Distraiu seu olhar com as telas na parede do fundo, as reproduções de rostos conhecidos do rock, da literatura e das artes plásticas. Pensou na sutileza de quem cria e na inocência de quem ignora, enquanto isso descia em direção à queda d’água.

A água gelada parecia lavar sua alma. Tão gelada que ele sentia um silêncio, um isolamento, uma intensidade anestesiante. Ficou quieto na água, colocando as ideias em ordem. Confirmando escolhas e se preparando para continuar. A força da água em suas costas era o carinho que ele precisava para se sentir vivo. 

Telas com cheiro de tinta. Gramados vastos pontuados de concreto. Alças confusas para agilizar o trânsito. Gente estranha fazendo encontros esquisitos, rede terno ou impessoal, imprimindo sempre irreverência. Ele estava lá. Não precisaria procurar por Paca. Sabia onde ela estava. Sem rodeios e devaneios chegou. Contudo, ela não o percebeu. Talvez fosse a distância. Talvez a doença. Quem sabe até a Realidade. Ele ficou parado, estava diferente. Não imaginou o que encontraria no futuro, pois nem mais o olhava. Seguiu.

Relevância. Ácidos argumentos, imagens que impactam, pela ternura, pela irreverência, pelo que desperta. Ávidos por relevância, os indivíduos seguem fluxos de despertamento da atenção e reconhecimento do outro. Seja pelas redes sociais, pelos produtos e conteúdos criados, pela postura nos almoços que não são mais domingo, pelas atitudes nos encontros. Relevância. Buscam obter já pensando ter. Assim, não raro observar a arrogância flamejante nos olhares. 

Ele se esvaziou da relevância. Doía nada o julgamento dos outros. Anestesia? Não. Liberdade. A Realidade não compreendia como não conseguia mais manipular os pensamentos dele como antes. Impulsionar ações precipitadas para escancarar a atrofia dele diante dos problemas criados pelos desdobramentos das escolhas. A Realidade se debatia enquanto ele seguia em frente.

Atos mesquinhos desfazem a virtude do ser humano em ser bom. Com um potencial de fazer maravilhas, o ser humano gera encantamento quando escolhe não fazer o mal. 

O contraste. Pessoas morrendo, indo aos poucos com uma doença, indignando-se com a Realidade, com o tratamento recebido, com a impossibilidade de reagir; outros indo subitamente, sem aviso, sem sinal, sem rastro. Pessoas também renovando-se; vencendo enfermidades e assumindo o compromisso de viver bem, seja o que isso representar. Nas entrelinhas das experiências, os profissionais da saúde transitando entre a felicidade e a melancolia, os eufóricos e os apáticos. Sobrevivendo, servindo, cuidando; guardando e registrando em si todos os sentimentos possíveis, a cada girada de turno. O corpo. Carne, sangue, nervos, bactérias. Não há remédio para toda dor. O contraste.  Ele não ficou lá por muito tempo desta vez.

A carne estava resfriada apenas. Fez cortes generosos. Sal, pimenta do reino moída na hora. Um pouco de manteiga de garrafa sobre. Azeite na panela. Alho em lâminas, o cheiro avisou o momento de entrar com o queijo, padrão. Vinho branco, ocasião. Gorgonzola. Sal, uma gota de mel. A textura e a temperatura revelando o ponto. A carne suculenta aguarda o banho. No prato, carne, molho, castanhas-de-caju quebradas e salpicadas. À taça Malbec. Ele estava com aquele olhar intenso, aparentemente em direção ao nada, contudo o nada não caberia a pujança que dentro dele extrapola os poros. Dois pratos à mesa.

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