quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Soro - 16ml

 

A manhã varreu a sala com a luz do sol, revelando uma carta de versos pueris, traços crus de um amor verdadeiro. Texto sem paradeiro, manchado de vinho no topo, com borra de café no verso. Ele nunca enviaria a carta. Estava cansado demais. Não a carne, que envelhece, atrofia e se perde. A carta era mais que desabafo ou declaração, era o mais próximo que as palavras chegaram do sentimento. 


O acumulado do orvalho descia lentamente pelo beiral. Gota a gota batiam sobre o metal esquecido no canto do muro. Se o calor da luz do sol pela janela, ou se o barulho das gotas, pouco importa o motivo de ter acordado. O sonho acabou com o sono. Não estava assustado, de ressaca ou deprimido. Alcançou uma apatia sem dor pela existência, no entanto, com um encantamento tão sutil por tudo o que seu olhar tocava, e sua mente sentia. Cada vez mais liberto dos demônios que o faziam ser o lobo do homem, e o corrompido pelo meio. Não mais estava na alcatéia, e o ambiente não podia mais o tocar. 


A Realidade, desesperada, havia tentado de tudo. Concedeu a ele voos, quedas, semi afogamentos para grandes respiros. Apresentou-lhe Paca, mas restringiu a ação do tempo. Fez seus olhos brilharem para em seguida o ofuscar. Apresentou o passado no presente, selando a perspectiva de um futuro, mas tornou turva a imagem e rompeu a linha do horizonte. Ainda assim, ele não cedeu. Quando à noite repousou a cabeça na rede, olhando as estrelas sem pretensões e filosofias, recaiu o olhar a lua cheia, erguendo-se rapidamente. Marias lunares. 


Ferida a lua se escondeu diante de tamanha dor. Um coração que bate no compasso da distância machuca o ser que ama, que não mais espera, mas apenas segue os dias. Pé ante pé, entregando as demandas dos outros recheadas de soluções, embrulhadas em um "nunca mais", amarrado com a fitinha do "até quando". Após o expediente e além dele, caminhou na rua sem pretensões de ver um rosto conhecido. Tudo o que percebia eram faces reféns de algoritmos, guiadas pelas cócegas no ego, pela sensação de pertencimento, pelo gozo momentâneo de controlar algo, nem que fosse a direção dos passos. Nenhuma preocupação lhe parecia absoluta, rima alguma assemelhava-se a um desfecho. Era tudo tão... um despropósito de estar em movimento. Não havia naquela multidão um sequer rosto de refrigério. Um bloco homogêneo, travestido de diversidade e vanguarda. Quando ele deixou de fazer parte, saboreou o isolamento da liberdade, mas o preço... 


Seu braço foi projetado para a frente, tamanha a topada, cheirosos fios de cabelo bateram em seu rosto, e seguiram no contrafluxo como se estivesse atrasada. Ele não viu seu rosto, mas sentiu. Seus pés petrificados não permitiram que ele a seguisse, um desespero, cada órgão se retraindo internamente, perdendo calor, brilho, fluência; semelhante a planta que resseca. Ainda atônito, chegou ao carro, quase se queimou com o café. Seguiu pelas ruas, sem se lembrar do caminho. Confiou no automatismo.   


Parecia uma farda. Camisa de manga longa, verde bem escuro. Calça preta, sapato gasto. Pele preta, do peito do pé aos fios da cabeça. Determinado, com passos firmes atravessou a rua e arguiu o vendedor de panos. Do carro ele observou os dois sem conseguir entender, se era uma reclamação por uma compra, uma peleja antiga, ou apenas devaneios urbanos de indivíduos em overdose social, viabilizada pela Realidade. O sinal abriu antes que ele pudesse se distrair mais.


Os cantos de suas unhas estavam machucados. Ficar por um tempo em um ambiente em que paira doença é exaustivo. Todas as energias boas do indivíduo são sugadas pelo ambiente que até no silêncios, nos bips e espasmos, chegam a ser aterrorizantes. Não de assustar, mas de proporcionar um lento terror, que corrói o que de bom há na pessoa. Ele não habituou a fazer estas visitas. Gota a gota, seus argumentos, grandes elucubrações sobre a existência, tudo desanuviava, quando a canção Smile, de Gilmour, ocupava todo o espaço da sala, desinfetando e higienizando. Ele podia partir. Contudo, a possibilidade não determina a ação. A escolha é constituída de mais do que oportunidade, coragem e vontade. Ainda assim, pouco importava para ele. Desejava apenas um café quente, sem açúcar, com trocadilho e talvez afeto. No balcão, uma xícara, uma tortinha de frango, um brigadeiro e um convite amassado. Percebeu o quanto estava sozinho, e dessa vez pesou de forma diferente.


Deixou de pensar no futuro naquele dia. As vergonhas ao espelho abandonou, a fúria cotidiana domou, as dores do passado, dessas ficaram apenas as marcas. Laços possíveis. A visão das pernas dela bem acomodadas à rede que levemente balança sob um céu azul lindo. O sorriso dela é um enigma do universo, belo e atemporal, intenso na simplicidade de ser um meigo, cativante sorriso. Ele poderia mergulhar naquele sorriso por todo o sempre; embora talvez ela não soubesse. Paca era tão sutil. Até mesmo tossindo, no cinema, sob a gravidade, era encantadora. Porém, a distância o fez prisioneiro. 


Como um pássaro livre, ele se movimentava pelas canções, no ar, de forma tão pujante que não havia horizonte em que não fosse além. Mas as canções muitas vezes se perdem em refrões, em repetições de notas e marcações de um compasso que interrompe o voo. Enquanto ele voava, a mesma canção ressoava na mente de Paca, que sem saber, estava conectada a ele, sem a pretensão de controle do tempo, mas sucumbidos à distância; esse último atributo da Realidade.


Quando a música acabou ele acordou. Cansado. Sozinho. A imagem no espelho, as palavras pouco usadas do dicionário, as emoções embebidas em neoplasia maligna, copos descartáveis pelo chão, textos com muitas palavras e pouca informação, ingenuidade de gente velha e infantilidade no lidar com as orientações e os propósitos divinos. A verdade, a mentira. O manuseio ressignifica, os desdobramentos podem ser atordoantes.


O demasiado humano ser ao tentar andar sobre as águas de seus valores, suas ideias e seus argumentos, acaba por atolar os pés e os joelhos em um lamaçal de vaidade, superficialidade e confusão. Ele não estava mais nesse grupo. Estava sozinho. Não da maneira apresentada em filmes apocalípticos ou pós-apocalípticos. 


Destituído; uma ilha cercada de pessoas por todos os lados. Um mar de íris. “Vislumbro em mim cada vez menos eu e mais Você. Isso me faz tão bem”. As coisas envelhecem. O tempo ainda é o mesmo. As ideias envelhecem, a carne se desgasta, as palavras re-arranjadas, repetidas. Flores aparecem, brilham e morrem. A água faz seu ciclo. Traços. Ritmos. Nos deslumbramos com o confete cotidiano. Condicionamos a fé ao nosso sistema de vida, existência e relevância. Desejos a serem realizados aqui. Errantes.


Erguemos bandeiras do desespero. Firmadas pelo suor dos hormônios que prendemos entre os dentes, entre os sonhos, entre as palavras. Entre. Nos permitimos ser ponteiros tontos de uma bússola desmagnetizada. Apontada para o ego. Quem vomita mais conhecimento? Posicionar as palavras como flores em um vaso: ornamentadas, para agradar, para seduzir. Cuidado com a finalidade; e com os espinhos.


Abelhas, pássaros e muita presunção. Lagartas e pulgões, além das mil interpretações da intelectual xepa que foi parida e cresceu. Modernos. Pós-modernos. Soberbos. Religiosos. Políticos. Humanos.


Exaustores de ideias e discursos esvaziados. Todos querem o protagonismo. Sempre. Primeiro passo para a libertação é reconhecer a atual posição, a natureza hipócrita das ações e preocupações. Deixe-as. Saia. Mesmo que não conheça o caminho para Shell Beach, saia da cidade. Sway. Cinema. Comida apimentada desce à garganta de forma agradável. Andar na chuva com a cabeça erguida. Plantar, assistir e ser vida. Até que o abraço do tempo seja de plena liberdade.


Após a livraria, o cinema, a praça; retornou para casa. Seu corpo cansado se desligou à cama. Dormir era sua chance de não pensar nela.



A mesma cor de cabelo. Quando loiras e quando morenas. Ele sabia que era amor.

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