sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Borboleta de Dalí



Martela sobre mim essa gota.

Rasgam-me suas gargalhadas atrás das paredes.

No precipício, minhas lágrimas se preservam, pois você não mais merece o meu derramar.

O silêncio que carrego não tem nada de extraordinário, apenas guarda, resignado, tudo o que deveras sinto.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Leitores anônimos



Já lidei com essa complexidade de jardins. Já me feri nos espinhos, senti a textura do chão, das pétalas, das folhas secas, dos ciclos. Embora nunca dependa apenas de uma das partes. Precisam ser dois. Falhei em muitas escolhas e fui refém das consequências das escolhas de outras pessoas. Embora enganoso seja o coração, bem nítido e pujante é o sentimento. O beija-flor visita jardins que não plantou, desconhece as flores que polinizou com seus voos, canta no silêncio; tem de se ouvir com a alma, esse enigma de três sílabas.  Seu torpor noturno é o refrigério entre os dias. 

Faço todos os dias um café que não tomo. Pelas ruas, pessoas se jogam de prédios todos os dias. Pessoas se afogam no espelho a todo momento. Envolvo meu pescoço em perfumes políticos dos quais me lavo com urgência. Outrossim, delicio-me ao mergulhar em perfumes da impossibilidade, de um tempo que não existe fora da minha cabeça tola. Aromas e odores. Deixo traços espalhados onde quer que repouse a rima. Leitores anônimos encontram dando pasto ao olhar pela internet, pelas ruas, ou capturados por algoritmos que vistoriam palavras chaves em um campo minado, e muitas vezes mimado, de significados.

Essa dependência química que um ser humano tem pelo outro. Essa necessidade de validação da existência, das ideias, das virtudes. Essa ânsia por absolvição, que seja feita pelo outro. Esta busca insana por algo que não está ali. Cansei. Release-me. 

O contraponto; a ternura, o descobrimento do que é novidade. O  encantamento do que nos faz bem.  Tomo café que não fiz e delicio-me com a falta de açúcar, mas muito afeto. Os bilhetes de carinho, os olhares e abraços. Enamoro-me pelas risadas que não dou, pelas palavras que não falo, pelos sentimentos que sinto. Admiro e amo a avenida 15 de maio, pela qual nunca pude passar, tampouco morar; um refúgio peculiar, moderno, angelical, instiga e acolhe; transcende a sensação inicial de deja vu. Encontrei fora do compasso meu destino naquela ponte estilo DNA de concreto em uma noite sem gravidade. Mas tudo me escapole no rodar da Terra. Será que Deus perdoa o beija-flor? Ou é ele que conduz seus voos? Indo quem sabe além de Hanff Doel. Tudo me escapole na limitação do que sou.

Leio os livros que não escrevi ao som das canções que apenas sei balbuciar. Entre o que não esqueço e o que sempre lembro, fica a sensação verdadeira da possibilidade. 

Todo dia 15 de dezembro um deles passa mal. As circunstâncias ao redor passam de calmaria à trepidação. Alternam-se até dissipar o dia. Talvez seja porque nesse dia abre o portal que os faria ter outra história. Talvez este tenha sido o último ano, ou não. Acontece que o momento é tão sublime.. um clichê de cinema… pouco te vi, mas sempre te amei! As pessoas não falam mais de amor, pois muitos o pararam de sentir.

A mesma sutileza de um voal branco ao vento. Como um véu dançando ao vento. Ela perpassa meus momentos mais íntimos. A trilha de gravidade, a trilha interstellar, a tosse na sala de cinema, as mãos que se esbarraram na pizzaria, as conversas, as mensagens anuais, o silêncio das fotos na timeline

"... você sempre o mais sensível e me passando mensagens marcantes e inesquecíveis pra mim: sempre lembro com carinho especial! "

Então o vento, a empurrar os ponteiros, me lança. A sutileza de um voal branco ao vento varre meu olhar. Não tenho lugar no coração, tampouco na memória... dos leitores anônimos.


terça-feira, 28 de novembro de 2023

ida



Algumas rimas têm sabores, texturas. Elas costumam ser silenciosas. Sem longas paradas, a ida que se assemelha a um eterno retorno distingue o caminhante do andarilho. Não cabe a nós a decisão da chegada. Tampouco é sabido seu momento.  O olhar transita pelas sensações se desvencilhando das cobranças. A sensação de estar separado da massa já não é mais agoniante, não significa solidão. 

Quanta amargura emocional poderia ser evitada. O amargo ficaria não no olhar, mas apenas deliciosamente no equilíbrio dos alimentos. Entretanto, as relações de poder fascinam as pessoas desde o início de tudo. Poder, controle, tornaram-se palavras sinônimo de prazer para uns e sofrimento para outros; raramente como ponto de equilíbrio e paz. 

Respirar e seguir. Não posso parar. Não há de se entregar. Procure o equilíbrio no movimento. Opte por não ferir as pessoas, por não fazer o mal. Escolha ser bom. Nossa limitada percepção do tempo faz com que não tenhamos a consciência de tudo o que já se passou, do quanto a maioria das preocupações são passageiras, as cobranças e estandartes.

O conflito, a agressão, não resolvem efetivamente o assunto. Causam destruição, ruptura e sofrimento. Gera mudança, reconstrução. Conseguinte, o sentimento de retomada, mudança e reconstrução dão a falsa sensação de resolução e de paz.

A flor do deserto rompe a manhã, sua beleza está em não durar muitos dias, sua perenidade é transcender sem alardes, além dos versos do jardim que não se corrompe.


terça-feira, 31 de outubro de 2023

desfiladeiro


A sensação do frescor. No meio da multidão, no escuro e sob um som ensurdecedor, para respirar tinha de virar a cabeça, olhar para cima. Ver as estrelas enquanto ouvia o riff da guitarra e o ar fresco pelas narinas entrava. Então era possível voltar. Essa lembrança tão peculiar a mim e tão comum a tantos. Um show de rock tem suas sutilezas. A tarde branca de um dia de silêncios. Sentar no banco de concreto esperando o tempo me alcançar, erguer a cabeça e ver a vivacidade das flores da frondosa árvore. Vários beija-flor movimentando os galhos. Estes momentos nos salvam da crueldade do ser humano. 

No sinal, olhando a faixa branca tracejada para pedestres se encontrar com o meio fio. A simplicidade das texturas em uma manhã chuvosa. Descrever o que se vê pode contribuir para entender um pouco o que se é, onde se está.  Tem dias que transcorrem de maneira suave, sem nos acertar. No entanto, alguns são cruéis pelo seu silêncio feito do estardalhaço da mesmice das pessoas. Gritarias, disputas, escalada de vaidade. Despencando dessas escaladas estão as virtudes. Virtuose vanguarda a de não se entregar ao destrutivo ciclo dos ambientes de trabalho, das famílias, do trânsito e dos grupos sociais. 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Mamonas vermelhas

A rua Ricina nunca mais fora a mesma. Um jardim venenoso de pessoas cruéis…. A última refeição foi de libertação e não morte. Não posso mais te carregar no colo. Talvez tenha chegado a hora de você me tomar pelos braços. Mas tantos voos ainda me eram possíveis nesse tão belo horizonte onde a luz do sol toca e o luar poetisa, hipnotiza. Esta maravilhosa incógnita me faz dar a cada instante minha intensidade por completo. Seja para dor, ou para gozo.  As canções e textos. O toque em nosso interior, juntamente com o olhar a paisagem do dia que se revela em detalhes, sons, sabores e cores.  O tom da serenidade. A vida nos escapa. Não fiquemos preocupados com minúcias e picuinhas. Assim como Houtouwan e suas paredes verdes guardam silêncios dos pescadores que se foram, estes jardins não permitem que os pensamentos sobressaiam ao cantar dos colibris. 



terça-feira, 3 de outubro de 2023

marés sociais


O movimento das marés na maturidade social. A modernidade, o mergulho e dependência das ferramentas e plataformas tecnológicas, a aceleração do ritmo de vida até o limite do corpo e da mente.  Muitos tornam-se reféns das mazelas que condenam. Estão aprisionados em narrativas das quais não querem mais fazer parte. Agora, os perdidos no labirinto sem paredes da pós-modernidade, concebem a vanguarda como o eterno retorno: A desaceleração do ritmo de vida, a volta para ambientes de campo, o balançar na rede, a roda de churrasco para contar história. Nesse movimento de marés, a sociedade revela nuances dos dogmas os quais ninguém quer falar. 

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

ventanias



A relva a se dobrar anunciou o vento que sem barreiras varreu das nossas faces um pouco da amargura. Nossas imperfeições expostas ao sol desaparecem de nossa alma. Nus, alcançamos a limpeza da mente no silêncio de um dia calmo. Sem cobranças e dedos apontados. O Vento, chega ao canto do vale, curva-se à rocha e retorna com a mesma maestria, fazendo danças a relva, enquanto meus olhos se fecham e sentem o afago à face. 

E nas águas as ondas se formam sem comprometer o fluir do córrego que outrora forte, agora discreto insiste em rasgar a terra com sua trilha de esperança. Doces ventanias com seu mistério pujante em nosso peito. Sutilmente movimento-me no dia entre o que deve ser feito, o que esperam que aconteça, e o que o desejo nutre aos marejados olhos.

A canção do rio de "agoras", mantendo novo o passado e velho o presente. O futuro não desagua no mar, mas está na fonte, na mina, que brota, se esconde e aflora, mas que em si é inalcançável.

Narrativas erguidas além dos muros das punições. Em uma realidade posta em que as pessoas querem ganhar discussões, querem punir o diferente e dar novo significado ao errado, é preciso ter narrativas mais ligadas à essência do que concebemos ser humano. 

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

domingo


Um passeio sem aparelhos de celular. A casa espaçosa e antiga no final da estrada. O casal que há mais de 30 anos vive tranquilamente na curva do vento. O café, o doce de laranja. Os sons cativantes, as cores vibrantes, a calmaria. A roça em sua simplicidade, em sua exuberância de significados. Um aprendizado. Voltar para a área urbana. Amadurecer ainda mais o olhar, as palavras, as atitudes. Respirar.

Aprendi a ligar a tv em conteúdo aleatório para dar um clima de infância em casa. Aprendi a viver sem dor a nostalgia dos tempos em que eu era a criança e meus pais faziam as coisas de adulto que agora faço. Amadureci me relacionando com as plantas, cuidando de jardins, respeitando os livros, admirando os filmes, tomando cuidado com as pessoas. Os domingos. Os domingos têm um clima do qual muitos fogem, outros se entregam, mas todos vivenciam seu misterioso aspecto. Domingo.  

Quando certa idade chega, você vê os problemas e as dores com a limitação da vista cansada, das rugas emocionais. A verdade do clichê de ser imperfeito, de não suprir totalmente o outro, mas ser o seu melhor, no pouco. Uma boa música basta. Depois de tanto sorriso escondendo a dor, um bom céu basta. Um cheirar o cabelo da criança, provar um doce, ver um filme. Estar junto. 


A troca. A conversa sobre o que me faz a diferença, sobre como funciona o comportamento e a percepção, me fascina, me renova, me encaixa no mundo e na história dos outros. Sentar ao lado de um dos filhos e olhar a chuva, o beija-flor se alimentar de nectar; é se conectar com o que vale a pena.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

denso



O tempo não cabe nos ponteiros. Assunto recorrente aqui, e não apenas aqui. Ele passa sem se desgastar, mas arrasta a vitalidade da carne, abrindo sulcos, despetalando a pele. Um texto denso e enigmático; corpo.

O espelho devolve coisas que não foram a ele entregues. Inclusive o atordoante silêncio. Se eu não lembrasse quem fui, talvez aceitaria melhor quem sou agora e onde estou. Se não lembrasse de cada erro, talvez me aconchegasse no agora. Mas o talvez tem mãos largas ao redor do meu pescoço. Enquanto cada um está em seu celular, assistindo a vida dos outros, nossa vida é esquecida. Antes, pelo menos as novelas tinham fim, e as tvs eram desligadas. Hoje as redes sociais escravizam o olhar, o julgamento, a comparação, o alívio, 24 horas. Todo dia. Se eu fosse um canalha, talvez não me importasse com o próximo, com os sentimentos e comportamentos. A crueldade velada dos cristãos é absurda. Todos se julgam certos e melhores. Os dias tornam-se desoladores, lembram momentos de outrora. Todavia, uma força estranha me mantém. Uma misteriosa chama que em silêncio traz paz e energia. Me pergunto como há tanto prazer nas pessoas em ferir. A paz incomoda. A felicidade atordoa. Não entendo. Seres individualistas insistindo em se fazer de sociais. Soprando sobre o outro todo rancor que trouxe. 


As pessoas se apegaram ao dinheiro, poder e status de uma forma absurda. É fácil amar quando se tem muito dinheiro, na manifestação das qualidades. Difícil amar no estresse, na falta de grana, na prevalência dos defeitos e das diferenças. Então, Tudo passou a acabar tão rápido. A instância do descartável. 


Sinto que meu tempo está no fim. Mas esse fim não me é certeza. 10, 20, 50; décadas, anos, segundos. Não aprendi a desistir, mas a persistir até a última gota a ser derramada. "Nunca guardei fôlego para a volta", por isso a intensidade da ida. Reuni no alforje todas minhas culpas. Agarrei a esperança em continuar. Amadurecer rasga o corpo. Torna sólido o que não há de dissipar no ar. 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

houve





Houve perda. Dor. Ruptura; perda. Dor. Deixou de ser quem realmente era em virtude do ambiente o maltratar tanto a ponto de empoeirar seu sorriso, silenciar seus assobios e suspiros, rasgar seu rosto com rugas e marcas de expressão. 

Então uma reconfiguração. Ele trabalhava na fábrica de calculadoras. Calculadora de realidade outra, as contas eram outras para o mesmo resultado. Cansado. Pesquisou bastante para se distrair. Tentou de tudo, de erros a acertos. Tristeza e culpa. Sentiu que era necessário e possível respirar de outra maneira. Alterou programação e redefiniu os rumos, fez uma calculadora diferente.  

Para se obter 2, não tinha como somar um mais um. Mas retirar um de três, ou dois de quatro e assim por diante. Alguns resultados apenas pela subtração. As operações parecem simples, como o bater asas da borboleta. Escutava de longe o cantar do colibri, corria para vê-lo no bebedouro de néctar. Pensou que alguma esperança pudesse ter ali significado naquele ato natural do voo, equilíbrio e ritmo. Voltou para a fábrica, a fazer mais calculadoras.

As pessoas continuam sem entender o que digo. Não porque falo eloquente ou sou melhor que outrem. Mas por alguma razão, não entendem. Escolhem se espremer na tela vendo redes sociais ou se acorrentar a boletos circunstanciais. Ignoram o óbvio e vivem dele. Abandonam o sobrenatural. Então palavras se tornam apenas letras bem colocadas. Estão ligados ao poder, valor, riqueza. Estão firmados nos dogmas do que entendem ser as regras de plena convivência. O corpo perece. A mente pertence ao corpo. 

Já dispunha de uma caixa de calculadoras alteradas. Era então momento de espalhá-las pela sociedade. Para se obter 3 era necessário somar um mais um; mas dependia da idade dos números. Pois às vezes era preciso somar mais ou dividir, ou subtrair. 

Queremos a bonança. Momentos bons. As coisas boas. As sensações agradáveis, as palavras e sabores que fazem bem. Queremos a felicidade, tanto em instantes agitados quanto na calmaria. Nada há de errado nisso. Mas a busca está firmada em ações controversas.

A narrativa plastificada das redes sociais não atende, as mídias tradicionais estacionaram, o convívio social emperrou como a agulha que não avança no vinil. Outrossim, quando o beija-flor perpassa o pergolado em busca de néctar, ele deixa poesia, ele entrega esperança, ele catapulta sutilmente o espírito e o olhar de quem reaprendeu a ver.

A vida. O que lembramos. O que lembramos da vida. A cada dia, nas tomadas de decisões, buscamos o quê? Que necessidade de legado, de lembrança gerada a partir de valor? Ajudar os outros... ajudar a quê? A ter as necessidades básicas de subsistência física, moral, social, espiritual e emocional? e depois? Como evitar ou compreender o rosto que ao espelho te questiona. O que lembramos? O que há de se esquecer?

Os rumos estão sufocantes. O embate certo e errado, bem e mal estacionou no óbvio ao desconsiderar a complexidade que há dentro do indivíduo. As caixas com as novas calculadoras foram distribuídas, juntamente com os novos dicionários. A paisagem começou a mudar, ou continuou a mudança gradativa, até que, ao longo prazo, esteja reconfigurada com o diferente. Nem melhor, nem pior, diferente. "As narrativas se aprimoram" disse ele observando o vento varrer e apertando o sinal de igualdade.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

farol


O paradoxo da busca do que não se tem pleno conhecimento do que é mas apenas do que pode ser. Cada indivíduo com sua ideia de verdade, seus valores e um nível oscilante de energia de viver. A interação das gerações contribui para tratamento da ansiedade, da frustração e também renova o olhar de quem acha que já chegou ao fim.

Mais do que manchas nas paredes, nos papéis e fotos em álbuns; a história deve ser contada e revisitada constantemente, como uma maneira de expurgar toda a melancolia das incertezas e das lembranças que o indivíduo precisa que sejam soterradas para além do subconsciente.

A maneira como a sociedade comprime indivíduos e os conduz à morte é cruel. O desespero inevitável. Depois dele, apenas o silêncio aguardando o impacto. Corpo e cifras. Carne sobre ossos com cores e cheiros diferentes, com índice de massa corporal diferente. Pedaço de papel, bits e bites, metal em rodelas. Valor agregado. Desejo por desejo. A essência do instante. Se perder a virilidade, o dinheiro, perde valor. Se perder a exuberância, a juventude, a sensualidade, perde valor. A existência do descartável. Comprar, usar, sentir, descartar, gerar lixo. Lixo que some após algum tempo na calçada, misteriosamente. Os mistérios sociais, quando se ignora os processos para ficar em utópica paz. Cria-se, apropria-se, pira-se pelo bel prazer de se sentir correto, limpo, puro, acima da média, referência. O preço dessa postura social é cobrado agora a curto prazo. A fuga é o eterno retorno.

Seus pés calmamente atravessaram o cascalho e chegaram perto daquela porta de ferro que rangia, daquelas paredes de um concreto cansado. O farol não se mexeu. Ficou ali mesmo após anos de isolamento, de golpes do vento, das ondas e olhares. O farol permaneceu. Sua escada em espiral revela o DNA do abandono. A ação da paciente maresia. Que sons atravessavam aquelas paredes? O ressoar era diferente, como a imagem que refrata. A luz há muito não entrava naquele lugar. Suas mãos destruíram teias complexas de aranhas magras. A poesia do seu corpo pesado marcava versos na poeira. Rastros de novos tempos.

terça-feira, 13 de junho de 2023

o lugar errante


Doces distrações e leves enganos na dança com o tempo, em dias soturnos ou ensolaradas manhãs. Entre os sim's e os nãos; entre as expectativas e os pensamentos cotidianos, individuais. Somos. De trás para frente e dentro somos. Repetição do que sempre foi, no entanto, traídos ou protegidos pelas lacunas da memória.

O reflexo no espelho me passa uma mensagem do que já fui, não sou mais e me tornei. Como as cidades que se desfazem e refazem na esperança de revitalizar alguma essência que seja.

O lugar errante. Dentro de nós ou onde os pés pisam descalços no pensamento. A consciência como ponteiro do relógio. Não para a percepção do tempo. O que me tornei? Do que observei e fiz toda a vida. O que sou em mim e no outro? A fé acalma e guia, mas o pensamento, a consciência é o ponteiro sem volta.

Sempre emblemático, ele voltou. 

Plantei flores, coloquei néctar no recipiente. Ele que antes, sem eu ter nada a oferecer, apareceu aqui, me olhou e partiu, agora voltou sem se espantar comigo, chegou perto. A visita do beija-flor sempre me foi especial. Sempre. Desde a infância, ainda mais agora.

Dias desleais. O trovador firmou além de sua existência. Fico pensando no que pode significar e no que  faz a diferença. Futilidades e sutilezas. Gente ferindo gente por poder. Imagem e reputação. Renovam esses ciclos covardes, enquanto boas almas se vão; no cansaço de lutar mais, na ingenuidade da frustração, na loucura, desespero e entrega. 

Assombrado por argumentos, caminho de mãos dadas com o silêncio. Consigo ainda ver estrelas no céu. Mesmo que sejam cristais; ainda brilham.

Sempre há o que varrer. Sempre há o que lavar. O que olhar, pensar e sentir. Não se para, mesmo parado. Isso é parte da magia sutil da vida. Perceber seu momento no instante. Perceba seu momento no instante. Seu lugar é tamanho no mundo, no agora.

Em um espontâneo encontro, subi para o gramado para tomar sol. Lá estava o beija-flor, bebendo seu néctar, sem se assustar com minha presença. Minhas ideias, meus sentimentos, então em harmonia, estavam no lugar certo. Meu corpo, meu compasso, não sei na época certa, se existe isso de época certa, mas no meu errante lugar, onde coexisto.


segunda-feira, 5 de junho de 2023

contornos


Se o fiel da balança falasse, abalaria o que se entende por equilíbrio.

E o que há de ser tudo isso? Qual a dimensão do quando? O que faz aqui a me esgueirar; tempo? O que espera do meu suspiro nessa madrugada molhada? Não consegue ouvir minha dor entre a ausência dos trovões? Não há desculpa que nos alcance. Tampouco torpor que acalme os corações. Onde a palavra não chega, minhas silenciosas lágrimas quebram clichês e alimentam a esperança, que dentro, quieta, se preserva.

O esquecimento. Arma mais mortal que a palavra. Trancafiado no esquecimento, o sentimento grita sem ser ouvido. Se debate, sem ao menos se ferir. Nada sente no esquecimento; esse nevoeiro sem fim. Lembrar aquece, liberta. Se repete para envolver. Desejar encontrar e se envolver com o que se deseja. Um passeio desavisado pelas cidades de Marco Polo. Tudo elementarmente igual. Ciclo da paz, guerra, amor e dor. Igual, trocando elementos estéticos e emocionais e do tempo.

O canto da sereia, cúmulo das expectativas e frustrações. A frustração sistêmica cria uma cultura da falta institucionalizada. Assim, os utópicos discursos de liberdade nem sabem o que deveras desejam. As cidades do óbvio. Braços em ruas que conectam ao centro das perdidas emoções. Timelines soterradas, mentes travadas, operando na lentidão imaginando-se em pleno vigor. Sucumbem.

Escravos do on-line, os indivíduos perderam os limites do mimetismo da sobrevivência e convivência. Os pilares da sociedade possuem fissuras onde cresceu uma cadeia de ramos de argumentos que complicaram os conceitos, a compreensão e a esperança. Contornos. Ruas, situações, citações, corpos perecíveis; contornos.

Entre as letras e pontuações, sou o que silenciado se faz presente. Que some na história ao não contá-la, mas fazê-la. Sou a memória que meus filhos esquecem. Sou o gesto natural deles, involuntário, mas tão característico que os define únicos; meus.

E um dia, meus rastros serão texto quando em uma caminhada os decifrará em braile, nas minhas tortas linhas e traços; nas rugas de meu corpo, no simbolismo das pintas e tatuagens.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

impressões


Entre o formatado e o espontâneo.  As pessoas aos poucos voltam-se para viver sem intermediários. Sem extremismos e xenofobia, mas equilíbrio entre o on e off. Abandona-se as redes sociais e as telas das máquinas para ver a paisagem que as telas representam, que as lentes capturam. No pergolado, o beija-flor vem conversar. Paira, pisca, versa e vai. Assim me tem tanta paz, aquietando as aflições de outrora.

Enquanto tudo for cercado de tanta tensão, as emoções, o dia a dia, nunca será leve como buscamos. A paz que acreditamos existir e que buscamos sentir possui em seu percurso entraves que nos fazem insistentemente vivenciar o "conheça a ti mesmo" e também o outro. O que esperamos da vida, além dos discursos reflexivos e emocionais, motivacionais? O que percebemos dos ciclos que se repetem por gerações, os padrões familiares e a muitas vezes imperceptível lembrança comportamental? Alternamos nosso silêncio entre a inocência e denso desespero.

Ocupamos tanto espaço nas nuvens que não temos a dimensão da chuva que irá cair.

Um casal de idosos, braços dados. O caminho feito passo a passo. De vinte em vinte centímetros, a realidade do tempo é diferente, o vivenciar a vida e o território também. As percepções não são mais aquelas da juventude acelerada, das experimentações, da euforia, dos sonhos de um amanhã de surpresas. Agora, para aquele casal, as distâncias eram outras.

Era uma árvore de esquina. Parecia uma variação de hibiscos, mas não sei. Cor vívida, laranja com rajadas vermelhas. Fiquei ali admirando sem grandes elucubrações. Um beija-flor médio passava de flor em flor. Pausava o voo no ar, pousava nos galhos com delicadeza. Borboletas de tamanhos e cores diversas, em ritmo diverso ao vento perpassando as flores entre os versos dos colibris. Um beija-flor menor chega sem pressa de partir. Aquela esquina me acalmou.


quarta-feira, 17 de maio de 2023

ritmos


Esse tempo. Essa beirada. Pergunte às pessoas, não todas assim estão, mas muitas se identificam. Ansiedade. Taquicardia, suor em excesso, inquietude, peito apertado, euforia e tristeza. A sociedade se modernizou em busca de paz, de conforto, de uma sobrevivência com mais dignidade, enfrentando problemas de saúde que vinham das limitações do corpo diante das condições de vida de gerações passadas. Então, o dilema eram as doenças físicas. As respiratórias, cardiovasculares, motores e etc. Com o passar do tempo, o modal mudou. A depressão reinava silenciosamente famílias, escritórios, indústrias, escolas. E agora, nem tempo para se deprimir o indivíduo tem. A ansiedade o colocou em estado de urgência frenética, envelhecendo-o anos em segundos, tencionando sua saúde mental de tal forma que a paz, esse Santo Graal, fica entre a névoa dos dias diante dos olhos. Sem leituras de grandes textos, sem canções de repetidos refrãos, sem conversas longas. Apenas pílulas. Pílulas.

Muitas vezes ao canto na história. Ainda permaneço à medida que pereço, com ternura. Colocaram-me como o vilão de traumas circunstanciais; exigem o tempo todo uma ação submissa, transferem responsabilidade para meus ombros, pois assim não é necessário cada qual pensar em sua participação na história. Transitam a superfície dos argumentos e fatos como se fosse o sólido chão; no entanto, trata-se da tensão superficial que a qualquer momento poder ser rompida, afogando-os no ego. Risadas rasgam narrativas rompendo a tranquilidade dos pássaros. Goteiras martelam pensamentos e o tempo dança, dentro e fora. Gira o multifacetado prisma da realidade e os indivíduos cada qual sobressai em respectiva história de vida como protagonista de seus dramas, algoz e herói, vítima e carrasco. Não há no firmamento indivíduo de um rótulo, ou papel social, apenas. Transitam entre as emoções e o tempo, os personagens. Personagens desejados, outrora temidos e até mesmo evitados, perseguidos, negados. Personas estandarte de campanhas de comunicação, alvos de discursos políticos, de homilias e sermões religiosos. Rasas quando olhadas de perto no espelho.

Água sobre rochas, água entre areias. Mares e cachoeiras. Corpo é carne, ossos, nervos, fluidos e conexões. A imagem/sensação que se faz deles é que são objeto de desejo, produto. Dinheiro, poder, assim tudo o é; imagem e representação. Afora a subsistência, é o que movimenta a sociedade. Imagem e representação.


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Ritual


Tratam o corpo mas não o caráter. Entristecido entendo que quanto menos me envolver com as minúcias das ruminações sociais, mais me aproximo da paz. O passear do tempo pelas coisas; paisagens e sabores nos conduzem por uma experiência mais verdadeira. Dieta de palavras e pensamentos poderia ser uma recorrente prática. 

As pessoas se entregam a rituais alimentares, rituais espirituais e financeiros. Comedores de hóstia, de pão vinho e oferendas. Exibidores de etiquetas, defensores de brasões falidos, empoeirados, tradicionais. Carregam o estandarte de um corpo e mente que não possuem. Tudo para criar imagem e não fundamento. Olhando bem, se percebe a falência de virtudes publicitárias de uma sociedade de fachada. Passaram a torcer para os bandidos porque os mocinhos se revelaram ao longo dos séculos como corruptos malfeitores, então o paradoxo do anti-herói. O alimentador de beija-flor balança espalhando néctar no chão.

Olhares vazios e tristes, em crianças. Espanta ver que os pais não percebem. E se percebem, procuram culpados e não solução. Palavras vazias e pontiagudas de adultos. Entristece perceber que não conseguem mais compreender a imagem do espelho. Condenam o próprio reflexo como se fosse o outro.  Farto dos noticiários e do além muros da vizinhança. O quanto a morte tem de interrupção para quem não morreu? O quanto ela faz quem fica refletir sobre a importância de títulos, placas e comportamentos, de intrigas pequenas, de emoções pueris?

Cada vez que as nuvens descem em chuva é como se me devolvessem tantos olhares lançados ao céu, às estrelas, ao luar e aos pássaros que plainam nas correntes quentes do ar em dias de pleno sol de um azul profundo. Cada gota encontra um poro para entrar e irrigar minhas emoções de paz para vivenciar a tristeza e romper o instante com o que me é possível de esperança. Então deixa chover. Porém, quando não se pondera, essa chuva lava alma e espalha lixo e angústias, derruba pontes e muros, casas, ruas, paixões pueris que se tornam um mar de lama.

Seja a folha que cai, ou o brilho que do sol, entre cortinas, aquece minha face; a paz. Os pés descalços na grama, as palavras bem guardadas. Sigo.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

asas de borboleta



Faceado com o tempo espero transcorrer sem más lembranças. Que o esquecimento absorva o que não merece memória. Agraciado pela sobreposição de conteúdos, posso seguir sem a lupa social aquecendo minha cabeça. A teoria do agendamento se move como o mar na força das marés. Ultimamente, com a multiplicidade dos meios, do perfil dos engajamentos, produção e consumo de conteúdo, a perenidade tornou-se conceito descartável e o legal tem prazo de validade. Modernidade confundiu-se com ser volúvel a qualquer custo e em todas as situações. 

Pelo dorso nu descem borboletas e ramos de calêndulas perfumadas. Mãos firmes, lábios entreabertos e a mente sem fronteiras. Agente do caos, o bater das asas da borboleta é só um instante do seu voo. Sua trajetória, seu encantamento de cores ao vento, sua linha no ar desafiando a rima e o olhar. O sol pela janela afaga com calor os rostos que despertaram bem cedo. Dez batidas por segundo em um voo nada errático. Trinta graus celsos para voar. A temperatura do ambiente influencia em sua capacidade de voar. 

Me é interessante a maneira como o pensamento vem, borboleta no meu cérebro emocional e vai. Leva um pouco do que sinto, deixa um pouco do que lembro. Parte com algo que não tem mais encaixe, mais sentido, ainda assim nada se abala. Compreendo melhor o ritmo das coisas sem delas ter de falar. Sinto.  Somos o óbvio do diferente que queríamos nos tornar.

Dez batidas por segundo em um voo nada errático. E o que se passa no coração de quem vê? E como se transporta o olhar de quem está preso em uma lógica de vida tão limitante e aprisionada? Que narrativa natural liberta de verdade, com a paz de viver bem? Independentemente de onde e como se está. O grito que você não escuta, ainda é grito e lágrimas são lágrimas, por mais que o poema não revele.


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Desacelerei


Percebi que o compasso outro era numa frase sem estrutura comum. Então desacelerarei. E já o fiz de fato. Os pés descalços. O rock reverberando pela madruga de estrelas lindas e planetas tão próximos em sua absurda distância. Tudo brilha. Meus pensamentos, os sentimentos. As rimas sem beleza, mas profundas de tanto eu que emanam a ser tão comuns. Entender pra quê se ninguém mais saber ler?

Coexisto na insignificância das entrelinhas. Conceitos incrustados no silêncio. Um feito inigualável, o grito no brilho do olhar. Se memória, futuro ou desespero, ninguém sabe.

No sopro de uma noite sem estardalhaços ao redor, respiro sem peso, mas com o distanciamento de um suspiro.

"Pouco a pouco fica evidente o distanciamento dos astros disfarçado do aumento do universo, ou a colisão de corpos como consequência da gravidade e órbita. O que há de fato é um canibalismo de argumentos, soterrando olhares de fuligens da expectativa."

quarta-feira, 5 de abril de 2023

velho


O corpo envelhece lentamente. Gota a gota. A pele muda, o semblante dribla os cosméticos e bisturis. A memória marca o tempo, o raciocínio e toda a sua estrutura sucumbe ao que se torna realidade. Conceitos tais como limite e obsoleto pontuam a jornada. Como se preparar efetivamente para viver o envelhecimento? A pele se desfaz no toque e o vento carrega a poeira do que um dia fomos. Como compreender que a carne sobre os ossos perece, que as ideias que um dia foram vanguarda tornaram-se o novo paradigma a evocar ruptura?

Inevitável escrever o que não cabe no meu silêncio. Tão comum agora me é o gesto de repetir. Velho. Nem sempre cansado, ou estarrecido com a vida. Muitas vezes admirado com a beleza dos olhares, das risadas, do bater das asas dos pássaros e das borboletas. Espaços em branco, não vazios. Recortes em cores e preto e branco. Os momentos são tão peculiarmente intensos e porventura tênues que não se pode em um relato abranger sua totalidade, apenas nuances. E são elas os retalhos da grande realidade.

O conforto não está no luxo, embora muitos tenham experiências nesse sentido. O conforto muito mais é um estado de espírito que depende do indivíduo. Claro, a mensagem, os meios, o contexto, podem fazer com que ele conceba o conforto como algo dependente da matéria. No entanto, quando se concebe individualmente o que é estar em conforto, percebe-se que é tal como respirar. Um instante que se alcança sem tem raciocínio lógico para o fazer. 

A rede balança e range. O vento passeia pelos galhos. Os pássaros entre o cantar e o bater das asas. O corpo se alimenta, proteína, açúcar, destilados, fermentados. A mente se exercita em contemplar, absorver e se integrar. Enquanto muitos preferem a confusão e a angústia do caos; perpasso pela espontaneidade sem cabresto da vida.

Corredores intensos os dos hospitais, das clínicas. Corpos ligados a mangueiras, equipo eterno sem perder o fio. Tudo se esvaindo a conta gotas. O corpo sucumbindo ao tempo, às mudanças das dunas, ao passar pelo sol, todos os dias, mesmo sem o ver. Casas caladas de emoções trancadas em corpos frustrados por causa da limitação imposta pelo efeito tempo, acaso e comportamento. Desfile de porta-retratos. Cuidar do presente como se fosse o futuro, pensando no passado que será construído. Dia a dia.

Unhas sujas de um dia sem lastro. Sem peso nos ruídos. Sem dor. Era apenas o deixar o corpo seguir.
Tantas histórias, tantas memórias. As pessoas não sabem onde colocar e que volume dar.

sábado, 25 de março de 2023

nada normal



Quais os parâmetros da ingratidão? Tantas vezes, a apatia, ou o silêncio são tidos como ingratidão, sendo assim o estopim para um posicionamento e uma comunicação agressiva por parte do outro interlocutor. Por outro lado, os comentários ingratos, muitas vezes "pelas costas" do objeto da mensagem passam "batido" pelo crivo do bom senso, sob a bandeira de crítica construtiva. A comunicação interpessoal evoca uma maturidade salutar na interpretação da mensagem, do contexto, do que se conhece do repertório dos interlocutores e também o que se supõe como referencial dos mesmos. Comunicar é simples. A complexidade está ao redor da mensagem. 

Neste ínterim, tornar harmônico os ambientes de convivência das pessoas estabelece-se como uma tarefa cada vez mais utópica. A diversidade cultural do indivíduo, somado ao seu poder de influência imediata nos discursos e interpretações de mensagens (verdadeiras ou falsas, completas ou fragmentadas) dificultam as narrativas corporativas e desafiam as técnicas de gestão de pessoas. Então, novos conceitos comportamentais estabelecem o famigerado novo normal.

Novo abandono de emprego é a velha prática de "morcegar" (coitado do morcego). Impressionante as pessoas que perdem a oportunidade de somar no emprego ou no trabalho culpando quem está ao redor. Nem sempre os empecilhos estão no ambiente de trabalho e condições oferecidas pela empresa. Muitas vezes está no modo como o indivíduo vivencia os dias. Assim, este tipo de perfil contamina não apenas o ambiente profissional, mas fundamentalmente o pessoal.

Nada normal. A relva dedilhada, os cabelos cheirados de filhos antes de abençoá-los, o frescor da brisa que toca a face sem avisos, roubando quase um beijo, um flerte com o tempo. A gratidão por detalhes de um dia que aparenta ser comum. A apoteose do silêncio de ruídos naturais. Poros lacrados. Corpo pujante. 

sexta-feira, 24 de março de 2023

saber e sentir


Narrativas de uniformes transitam pelas telas, corredores e balcões. Comercializa-se interpretação, ação e reação. Tais narrativas estimulam uma demanda que não precisamos aumentando a probabilidade de sofrermos uma dor que não precisaríamos sentir.

Essas linguagens e códigos delineando o que entendemos ser realidade. Perdidos, encontramos aconchego no silêncio de um dia bom. As pessoas buscam pelo que tem sentido gritando argumentos absolutos, em uma configuração social falida.

Meu filho sorrindo ao dormir, sonhando com algo que o diverte e traz paz. É o mesmo que o desabrochar de uma flor, o cantar de um pássaro, o movimentar do vento no bambuzal. Beleza natural. Assim os raios de sol me encontraram pela manhã. As nuvens transitam sem compromisso com os formatos criados, os contrastes da paisagem. As páginas permitiram livre trânsito às palavras, e as letras se libertaram no processo de entrar pelos olhos e voltar para o papel. Respirar ficou mais fácil, quando o peso de certas narrativas ficou acorrentado nos argumentos atrofiados de quem nem em uma nota só samba. Entre o saber e o sentir; ir além.

Penso como a vida nos traz algumas nuances do porvir além dessa camada de rotinas. Nuances do que verdadeiramente importa. Mas quando vislumbramos isso, as rotinas nos puxam, nos prendem e nos conduzem. Vivencio narrativas que se entregam a ser tempestade de areia conceitual, diante dos curiosos olhares que sabem que existe uma algo mais.  No entanto, o peito treme. A respiração não aceita se encaixar no compasso natural. O corpo me avisa que irá sucumbir, pois a mente quer partir. O beija-flor me olha silenciosamente. Ele sabe.

sábado, 18 de março de 2023

lado outro



representação cultural é fantástica no modo como ao mesmo tempo informa, forma e conduz. São encantamentos, direcionados pelo desejo artístico e pelos fundamentos mercadológicos. 

Cores, sons, traços e movimentos. Combinações diversas escondem discursos e intenções à medida que retêm o olhar e geram até mesmo interpretações que divergem do cabresto. Ainda assim, para o organismo social se manter vivo, é elementar dar voz às manifestação culturais, mas sem a ingenuidade do "tudo pode".

Na parede, o ponteiro dos segundos se recusa a subir, tampouco descer. Na eterna tentativa, quase no nove, impede os demais de avançar das dez para as duas. Se tarde ou manhã já não importa. Entendo que sou o que acontece fora desse humano radar; o tempo medido. A flor de papaia que se esconde.

Qual o mérito que se espera alcançar? Luxo? Conforto? Audiência? Influência? É importante refletir sem necessidade de prestar contas aos outros. Uma reflexão sincera, com quem realmente interessa;  a pessoa que estará na cova ou na fornalha com você. Qual o legado e o propósito? Um busto na praça? Uma placa de rua, de auditório? Uma foto na estante? Uma memória? A lembrança embebida de qual sentimento? Dó, compaixão? Saudade? Orgulho? Vergonha? É importante não esquecer do peso das atitudes, dos significados, dos exemplos. É importante não se tornar escravo da reflexão. Equilibrar-se é um processo contínuo e não um porto seguro.

As narrativas em trama tecem uma realidade para cada par de olhos. Furos e remendos são por vezes desapercebidos. O que acontece no instante em que os olhos estão fechados ao piscar? Um paralelo universo sem olhares.

Um beija-flor sempre me visita nos momentos mais aleatórios da vida. Sempre é uma visita, pois seu voo não é igual, sua estadia perto de mim soa quase proposital. Ele me olha. Pousa. Voa.

sábado, 11 de março de 2023

estatísticas do absurdo



Infográficos no cardápio dão conta do quanto a sociedade adoece. A essência do ser humano espalhada em números que constatam contrastes, violências e esperança. Argumentos erguidos sobre recortes de planilhas. Assim, criam-se bases sólidas de narrativas que extraviam o pensamento individual e as atitudes coletivas. Estatísticas do absurdo amparam decisões para o bem e para o mal. Cada um estabelece o recorte dos dados que favoreça seu padrão de escolha e interpretação. 

As timelines estão abarrotadas então de versões da realidade que buscam soterrar o diferente, por meio da velha prática de desacreditar o outro. O que antes era apenas tática corporativa ou de política, instala-se cada vez mais nos lares. As pessoas estão gastando energia equivocadamente. Buscando resultado e respostas em locais errados, da maneira errada. Nesse nuvem de equívocos são gerados os fundamentos de uma nova geração. Assim, passa-se o tempo e estabelece-se como verdade fundamental. Paradigmas escorrem dessa forma em uma ampulheta interminável, que se reinicia continuamente.

Em tudo o que fui bom, as pessoas tencionaram até eu errar, por estresse extremo (e limitação),  e poderem atestar minha limitação e insuficiência. Com a suposta admiração, parceria e até mesmo dependência, mataram minhas virtudes quando confiei a elas um espaço que não deveria em minha vida. Quantos não foram os que deram com uma mão e me esbofetearam com a outra, para se exibir ao me ajudar, mas me rebaixar, mesmo eu não querendo me elevar sobre ninguém, mas pelo contrário. Sempre quis apenas viver meus dias em paz.

Uma criança aprendendo sobre os números nem imagina como eles não apenas estão presentes, como são ferramentas de manipular o que não se mede, e não se enumera. Se enamora; a vida. 

quinta-feira, 2 de março de 2023

Cálice derramado


Eram traços repetidos arranhando as paredes da garganta. As pétalas pela manhã tinham uma certa sutileza delicada de romper a aurora com perfume, cor e versos "impalavráveis", pois tem sentimento que de tão transcendental não se aceita entre o arranjo das letras. Ultrapassa a fronteira das ideias, embora não sejam indecifráveis. Perdoe a rima pobre sobre a tela surrada.

Era um pouco entre o que esperam de nós, o que realmente pensamos ser, o que damos conta de reconhecer e tantas outras variáveis que o espelho fica em silêncio, e nos cansamos de nos olhar.  As narrativas expostas sem pretensão de trono, ou de perpétua memória; apenas lampejos. Ninguém iria sobrepor a ninguém. Cada qual em sua constante. Cada um em paz com seus traços. Outra comunicação é possível. Dinheiro se empresta, ganha-se e perde-se. Sentimentos, sensações, vida, não. Status se alternam no compasso dos ponteiros. As narrativas podem fazer mais do que alimentar as vaidades, as métricas corporativas, as manobras políticas, as amarras da religiosidade. A reflexão  que se propõe é ir além do que há fora e embrenhar-se para dentro de si. Sinceramente e verdadeiramente.

Assenta-se na virada do vento sobre as árvores, tentando seguir com o olhar o voo de uma borboleta, enquanto o beija-flor, em silêncio, sem julgamento o observa. Instantes que escorrem por versos que sustentam olhares que não rimam, mas se apaixonam. Nem sempre lugar, tempo, palavras, silêncios e sentimentos estão em harmonia, em consonância. Quando acontece, ou quando reconhecemos o instante, chamamos de coincidência. Outrossim, quando constatamos o que seria ideal e nos ferimos no que pode ser considerado real, o infortúnio vira verso, música, filme, lágrima ou overdose de si mesmo. Indivíduos apropriando-se do contexto flamulando seu significante como o ponto absoluto.

Letreiros luminosos, views, curtidas, compartilhadas emoções com filtro. Julgamentos como milhos aos pombos em uma praça triste. A natureza selvagem de uma sociedade que não percebe que se atrofia. A vida que em off persiste e prevalece às narrativas não se permite às travas das mídias e aos dogmas da nova mentalidade social em que tudo pode "pois há de ser tudo da lei", regente da velha prática de impor padrões, delimitar o que é liberdade e minimizar as diversidades. A novilíngua de Eric Arthur Blair e tudo o que envolve lidar com as pessoas.

 

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

nervuras


Ser uma pessoa melhor. Frase surrada no para-choque de um caminhão que tenta romper cascalho, terra, asfalto. O leva e traz de necessidades, atendendo as demandas salutares. O sol destaca contrastes que a lua alivia na madrugada.

Falhamos na missão de sermos melhores, mas obtemos contínuo êxito na tarefa de gerar esperança. Na suavidade de uma folha que se desprende do galho e plaina ao chão, aprendemos que é a esperança que move os dias e as relações entre as pessoas. 

A textura dos dias, das estradas. As folhas e suas nervuras, os rostos. Rugas rasgam a derme cravando no silêncio experiências. Ainda assim nos distraímos com a esperança, com as cores, rimas e sons. O beija-flor enigmático lança seu olhar e faz seu voo levando a lemniscata pelo vento em uma poesia sutil.

Ocupamos espaço e tempo com nossas narrativas que muitas vezes são releituras de instantes e até mesmo de outras narrativas.  Repetição, ou apenas repasse. No entanto, os objetivos e necessidades se renovam?

Era a foto não publicada da palavra não dita, do toque que arrancou suspiros mais sinceros e sublimes. Era possível sentir a leveza, a membrana, o peso. As pessoas lá fora. Fora. Era complicado. Ninguém enxergava o outro. Encontrar com quem conversar de forma sem amarras, sem o malhete, tornou-se tarefa rara. Entremeio a tanta narrativa elaborada por algoritmos e distribuídas por outros, tornou-se ainda mais difícil coexistir.

As cifras e cifrões passaram a delinear a sociedade que sucumbiu à atrofia, confundindo com liberdade. Sentados sobre narrativas que desconhecem origem e propósito, muitos arrotam uma autoria utópica de um argumento que corrói a vida com um sorriso. 

Ainda há céu e jardim para os colibris.



segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

imagens



Criadas pelos mais diversos ângulos. Perspectivas tensionadas não mais apenas em lentes de robustas mas na imensidão de lentes de smartphones. Nos designers, o uso exacerbado de banco de imagens faz algo engraçado acontecer: imagens repetidas em campanhas de segmentos e público diferentes, e em tempos diferentes. Agora, dentre as mais diversas aplicabilidades, as ferramentas de construção de imagens por meio de inteligência artificial instrumentalizam mentes criativas com a facilidade de criar imagens base necessárias em criações. São tantos que surgem, como o DALL-E, Stable Diffusion,  Midjourney, Craiyon e Nightcafe Studio. Daqui a pouco, cada vez será vivenciado a artificialização do conteúdo. Bem argumentado em artigo de Altair Hoppe. Desdobrando esse raciocínio, podemos dizer que o algoritmo então deverá rever critérios de distribuição para favorecer o que é orgânico, realmente capturado por lentes controladas por humanos.

Estamos em uma moderna torre de Babel. As pessoas não se entendem, nem se esforçam para. Quando o fazem, é com a motivação equivocada. A narrativa adentra em um aspecto que se assenta no eterno retorno a uma questão elementar: o que é real?

Os laços no céu com o vento se contorcendo. Panos rubros, brancos e azuis. O corpo entre as curvas do tecido erguido, se mantém firme em manobras delicadas. Ela dança no ar. O violino, o piano, o ar que abraça e conduz o olhar para aquela que para o tempo, enquanto paira no ar. Puro encanto de luz, sombra, contorno dos sons dentro do meu olhar. 


Imagem feita pelo DALL-E
Imagem feita pelo DALL-E


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

conhecer



Imagem e reputação constituem o brasão de uma comunicação corporativa que busca se renovar e se manter em tempos tão volúveis dos significados e significantes da sociedade. A construção e defesa vão além dos comportamentos dos indivíduos, mas essencialmente em qual e como a mensagem circula pela sociedade. 

Sua empresa precisa ser conhecida por todos? Seus produtos precisam estar em todos os lugares? Ou ela tem um público específico, um potencial de atendimento limitado? Conhecer sua marca, as entranhas dos processos de produção ou estruturação dos serviços permite que você defina, a partir do plano de negócios, o perfil que a comunicação deve ter, o ritmo, a linguagem, as plataformas utilizadas, o orçamento de custeio e o potencial de investimento. Afora isso, é tentar copiar os colegas de outros setores, outras mídias, com outros perfis e até mesmo em realidades paralelas.

O reconhecimento do indivíduo precisa do ambiente externo para validar o interno. Na comunicação, a marca precisa ser exposta e reconhecida (sua mensagem e seu significado) mas apenas para seu público-alvo. É um raciocínio obviamente lógico, mas que em tempos de modernidade exacerbada, muitos procuram uma audiência que não suporta, que não agrega e que desconstrói a imagem e a reputação da marca. Neste cenário, a análise dos dados e a famigerada mensuração de performance de comunicação exige técnica, visão apropriada a respeito de todo o contexto, para assim melhor orientar os clientes e posicionar a marca.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

escorreu



E o que vem a ser o propósito? Se esquivar da essência com a distração de observar o outro? Entregar-se ao ócio, ou apatia em relação às demais pessoas e perceber que é cativado ou pela dor, ou pela posse e vivência de situações e objetos prazerosos? Ter dinheiro, vivenciar o que o dinheiro possibilita.

Na criação de filhos, a criação de templates para fantasias sua boa imagem externa de bom pai e mãe? Nos escondemos todo o tempo, nos esquivamos do que é essencial para fazer saltar aos olhos os elos dos algoritmos que criamos para termos mais tempo para ser, do que ter.

No desespero de proteger nossa hipocrisia, machucamos quem dissemos tanto amar. macucamos e nos isolamos. Embora fiquemos comovidos com enredos apaixonantes de união, aproximação e valorização do outro.

Não sabemos o que fazer com o tédio e imputamos a ele a perdição, a atrofia dos sentimentos, a individualização. Somos seres banais se julgando donos de verdades, de julgamentos, de condenações.  Não enxergamos, não mesmo, nossas interferências na vida das outras pessoas. Não controlamos, de forma alguma, a maneira como vão interpretar e reverberar nossas palavras, nossos gestos.

Quando tentamos ficar fora desse padrão velado como liberdade, sofremos por entender estarmos deslocados. Não somos dessa rua, estamos de passagem; entretanto não controlamos nem o piscar dos olhos.

O que vem a ser esse famigerado ao peito. Que nos faz guerrear, plantar e incendiar. Romper a alvura em versos e rasgas as mágoas ao travesseiro de um lugar de paredes úmidas, de lençóis suados e de um eco ensurdecedor.

O que está atrás de tanto brilho. Tanta imagem clichê, tanta angústia e tanta euforia clichê? O que há de se revelar? As narrativas são como a pipoca no cinema. Nos racham os lábios. Comemos até sem fome. Sem perceber o gesto. Apenas repetindo. Reencontrar a inocência da infância. Mas é lá que está também o início desse se perder na contemplação.

Lembro da criança de pés descalços, no intervalo das brincadeiras, olhando o céu, ou o gramado, ou um buraco no muro, ou uma trilha de formigas. Atordoado como que deslocado. Era tão intenso estes instantes, que ele não consegui a compreender. Sua cabeça não desligava, parecia mais um cavalo selvagem fazendo hipóteses de tudo ao redor, olhando do específico ao geral, construindo argumentos no silêncio, alimentando uma coragem que enfrenta até mesmo a dor.

Então vinha a bola, o pique, os raios, a terra, tampinhas, figurinhas, poste, banho jantar, brinquedos, televisão e cama.  Perdeu a conta de quantos circuitos fechados, e também dos dias bons pela simplicidade. Mas eles passam. Assim como o vento do guardador de rebanhos. 

sábado, 7 de janeiro de 2023

Contra tempos


Ele sabia. Um minuto Durden. A perfeita contemplação do instante. Quando o nada circunda o tudo e as escolhas não aquecem mais o silêncio. Estou a ermo no tempo entendendo ser uma engrenagem dentre tantas. Movimento-me, perco só dentes e ainda assim me movo. Algumas lembranças tenho vergonha de ter até mesmo sozinho. Outras, gostaria de compartilhar com uma pessoa, que entendesse. O minuto passa.
 As cenas se sobrepões em um roteiro mais do que caleidoscópico, mas fabuloso de tão real.

Impiedosa, a chuva cai sem consciência. Apenas cai. Escorre e faz barulho. Lava e arrasta. Nutre e encharca. Os versos em concreto armado, as esperanças e as garantias de uma segurança que até a água, sem aviso prévio, leva.


A foto está no ângulo certo? Com a iluminação do impacto? Na perspectiva da emoção? Ela está exposta o suficiente? Ou perder-se-á como tantos instantes não contemplados da maneira que verdadeiramente o aproveita. O minuto às vezes esconde outro.


Tantas narrativas, desespero e paz. Tornei-me minha pior versão controlada. Raivoso como um cachorro amarrado, grunhindo como um animal ferido, barulhento como um trovão sem chuva, sem raio. Consigo ainda lembrar, desanuviando essa realidade, de quando eu fui um infante agradável, curioso e risonho. Tute.  Tão distante. Deixei que matassem uma parte de mim que tanto eu gostava. Deixei que matassem. Permiti que controlassem o que não deveria ter controle. Tornei-me refém do desespero seguro de quem maneja a vida com receitas, com o malhete social, com o que não cabe em mim. 


O piscar dos olhos lança mais que cílios ao vento. A estratégia não é confundir, mas revelar que a lógica não se opera pelos padrões estabelecidos a consenso. Ela é do indivíduo e não da massa. 


Cachoeira barulhenta de tantos olhares silenciosos. Nossas dores vão nas águas com as paixões. Às margens, amores-perfeitos florescem e então sabemos o que fica. Quanto tempo dentro do tempo. Passaram-me décadas dentro de um ano. Pensamos escolher e programar os dias, mas não é assim. Os dias nos escolhem, se colocam diante de nós e nos assistem.


Um minuto Durden, ele se permitiu viver de outra forma.