quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Soro - 15ml

 


Precisou sair da cidade por alguns dias para um trabalho simples. Levou consigo a paz, livros e vinhos. Seriam dias breves. Uma construção de pedras bem arquitetadas. Cor creme, eco moderado. Pelas paredes conduz-se o vento frio mesmo em dias de forte sol. Atravessava-se uma ponte, também de pedra, encontrava então um úmido jardim, pista de pouso de borboletas, e ao final uma praça rústica, em que era possível assentar-se e assistir as pessoas, os pássaros, o tempo, quando esse passava. Quando ele passou por ali, teve ainda mais certeza da sua pequenez diante das grandiosidades construídas, das maravilhas constituídas, e da encantadora natureza. 

Vasto mundo. Estruturas turísticas comerciais, emocionais, espirituais; espaços de moradia e transição. Tanto a se conhecer, e vivenciar. Cada qual com sua porção acostumada da vida, do que é possível conhecer, chegar e ir além. Alguns, mochileiros em essência, outros, residentes do mesmo metro quadrado. Todos habitantes do agora. Entrou naquelas padarias típicas em que de tudo um pouco se encontrava; de componentes eletrônicos para celulares a arcaicos instrumentos domésticos. O essencial muitas das vezes está no fundo. Café forte, biscoito de nata no ponto em que derrete rapidamente na língua.

Tudo costumava fazer mais sentido. Se fosse para ser óbvio, ele seria uma bula, com todo o rigor da técnica. O quadro dentro do quadro. Ele sabia transitar, mas até quando iria querer? 

Lives sobre lives. Artigos sobre isolamentos, fronteiras extrapoladas e discursos ocos de uma mente embriagada pela Realidade. Precisava cuidar da sanidade, pois ao seu redor as pessoas doentes alimentavam a doença no sorriso, tentavam contaminar os outros, ao deixar o ambiente todo com a lente da doença. Não o vírus, mas seu hospedeiro o verdadeiro perigo.

Folha 54, livro 45; ele estava habilitado a trabalhar onde estivesse. Mas agora era diferente. Seu ambiente era outro. No quarto escuro, deitado à cama, com fone de ouvido, música alta e pensamento distante. Era ele. Todas as canções pareciam retratar suas experiências ou anseios. Em uma nova dimensão, ele conhecia amores, perfumes e tencionava a lógica, sentindo tudo ao mesmo tempo, naquele agora. Há anos, esta era a única ação dele para isolar a Realidade. Agora não precisava mais do fone, e nem mesmo da música alta. Naquele tempo, ele apenas desejava experimentar das sensações que estava além do agora. Tolo, antecipou rugas, dores e uma percepção da vida que castrou sua capacidade de alienação. No instante em que o tempo não passa, ele então compreendeu o artifício da espera. Junto à espera, a sobreposição das inércias sociais como estratégia de perpassar os núcleos de convívio, visualizar a mobilidade do epicentro do padrão cultural.

O trânsito e o vendedor de pano. O semáforo fecha, é o tempo que muitos precisam. Para conferir mensagens no celular, pra enviar mensagens, conferir o espelho. Respirar. Para outros a angústia na ponta do acelerador. Para eles parar era um atraso de vida, para o vendedor de panos, a oportunidade. Enquanto uns olhavam para o sinal e acelerando, torcendo para o verde não ficar amarelo; outros não viam a hora do vermelho dar passagem a possibilidade de ganhar o pão de cada dia. O vendedor de pano o ensinou mais sobre espera e pressa. Parado, com o carro na fila, observou o ritmo do vendedor, e a receptividade dos motoristas. As cores e sons e o conflito das intenções, concebidas pelo famigerados pré-conceitos. Ele nem os tocava, seguia conforme possível era. Comprou 5 panos de prato, um pano de chão; já não entornava muito as coisas, mas precisava manter limpas as mãos.

O processo. A ladainha dos pormenores, o encanto dos detalhes frutos do esforço. Melhor resultado é o processo, pois o desfecho é tão volúvel, instável, e perecível. O processo fica marcado. Ele atravessou o processo como quem ultrapassa a densa fumaça sem respirar, sem parar, sem enxergar.

Chegou em casa sem pressa. Subiu para descansar, renovando o vinho, o livro, o caderno de anotações e um pedaço de pão. A corrente de ar parecia trazer algo mais no oco do vento úmido, mas o que ocorria era o despertar de pensamentos por associação de sensações de outras experiências. Cada detalhe ao redor despertava nele a lembrança. Cada gesto dele acrescentava ao passado mais significado, mas não projetava para o futuro. A pedra fria da pia, farinha de trigo e vinho. A levedura, o cheiro, o calor, a espera. O provolone sendo cortado lentamente, os barulhos ao redor sumindo de sua cabeça, as imagens ficando estáticas, desfocadas e distantes, ele cada instante ainda mais dentro de si. Viu isso, e era bom.

Azeite e palavra. Temperatura, tempero e silêncio. Ele dosava tudo no olhar e na intensidade das mãos preparou o pão. Sentou-se na varanda para esperar ficar pronto. Enquanto isso, pegou o livro surrado que comprou no sebo, em uma barraca que funcionava dentro de uma feira. Capa cansada, bordas com sinal de muito manuseio, páginas dobradas, marcações; um total desassossego naquele desarranjo temporal. Era seu autor predileto. Lia pausadamente, enquanto o vinho percorria sua garganta, descia pelo esôfago até o estômago. 

As moléculas de etanol absorvidas entram no sangue e outras vão para o intestino, onde absorvidas também se integram à corrente sanguínea. A viagem do vinho dentro dele era intensa e rápida. Pelo sangue, percorria todos os tecidos do corpo; fígado, rins, cérebro e coração. Dilatação de vasos, restrição de filtros mentais. O álcool. Parte vertia do corpo pelos poros, atrelados ao suor que interrompe aquela fala para ser limpo. Um pouco era exalado na respiração, como o suspiro do poema que dói. O que não sai pela urina, vira o andarilho de Nietzsche rumo ao eterno retorno. No fim, gás carbônico, água e mágoa. Até que o fígado consiga eliminar o álcool e seus poros despejarem o que não cabia nele. A mágoa, no entanto, era afogada. A bebida era o gatilho do pensamento encadeado de sentimentos. O cheiro da rolha marcando as esperas da maturação; o rótulo escondendo a história entre as eiras da vinícola. Como a fila de dominós a cair, o vinho era a primeira peça à mente. Corpo em reação, mente transubstanciação. Ele permanecia em paz.

Ele olhou ao redor, quieto. Era como se algum sentido fosse saltar das coisas. Das capas dos livros, das receitas mal anotadas dentro de um livro, dos antigos pertences, das lembranças e suspiros. Não é que ele supervaloriza os sabores, cores, sensações e desdobramentos; mas trata-se de não depositar toda a energia e relevância em um instante que nem ainda existe.

Sentiu mudar a pressão do ar. Tinha ciência de que fora dele, todos se submetiam à Realidade, de uma forma ou de outra. No entanto, como ele, ninguém. seu pensamento ultrapassou fronteiras, até chegar a ela. Encontrou-a ouvindo Weder, enquanto alcançava Bhujangasana, tendo passado por Padmasana, da pinça ao camelo, até terminar na pose de criança. A distância era só um fundo desfocado. Seja de frente, ou de perfil, Paca tinha o olhar penetrante. Ela não fugia com o olhar. Apontava-o diretamente. Bailava no ar, com gestos, hábitos e um jeito tão verdadeiro de ser. Ele se encantou desde a primeira vez. Escreveria para ela naquela noite. Embora talvez ela nunca fosse ler.

A sutileza dela dormir não cabe num poema. Muitas experiências não podem ser representadas por um texto. Há alguns lugares que acolhem a mente, mas são indescritíveis. Principalmente quando estamos diante de uma situação sufocante; a distância. Que nos desfaz em cada detalhe, cada sobrepeso de responsabilidade, cada frustração que brota no chão. Como caminhar descalço sobre os rasos corais em uma praia em que a profundidade é sempre a mesma. Ele percebia. Não imaginou o que viria. Dias de sol sem poder caminhar, dias nublados sem poder assistir um filme e roçar nos pés dela. Talvez Paca tenha se tornado a Dulcinéia, ou o Santo Graal. Ou a esperança de felicidade de uma linha temporal alternativa, que ele sabe da existência, mas nunca iria acessar. Sua salvação no encontro. Sua perdição na busca. Sua paz no sonho. A distância então o golpeou, como o pássaro que ataca o reflexo na janela em um voo suicida.

Um amontoado de livros isolava do mundo o que ele pensava alto às vezes. Por horas cheirando as páginas antigas em busca de uma novidade, que breve como emerge o sentido da palavra lida, o salvasse do impasse da vida que tinha. Uma série de tosse em meio ao cheiro de cânfora revelava que até ambientes novos podem atacar as mais brandas rinites. Seu corpo o distraía das questões elementares interrompendo automatismos. Engasgou com a vírgula de suas escolhas. Não era o espelho ou o universo a confrontá-lo todas as manhãs. Ele aprendeu à sua maneira. Desenvolveu seu traço, mas não ficaram rastros brilhantes, apenas aqueles que se confundem com o dos outros, tornando cansativa e desinteressante a jornada atrás deles. Preparou para si um café bem forte. Com um gole inundou seus sonhos.


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Soro - 14ml

 

Passar pela praça era visitar uma galeria de arte. Obras imóveis, obras orgânicas. Pessoas abstratas, sentimentos concretos. Infraestrutura revista, novos usos e ocupações. Sem curadoria. A céu aberto. Corpos sincronizados com o caos. Barulho e movimento. Disputas. Sem início, fim ou um propósito. Passar pela praça era o caminho mais próximo para chegar em casa. No alto da palmeira imperial um casal de maritacas gritava. Ele lembrou de Paca, seu amor pelos animais e do episódio da visita das maritacas na casa dela. Percebeu ter lembranças que não viveu; apropriou-se só de ouvir falar, ou ver em rede social. O telefone agora ficava dentro da gaveta, descarregado. 


Marcante no céu à noite, os vagalumes saiam da árvore lateral e pontuavam a esperança na janela dele. Hipnotizado pela magia da biologia, ficou na cama olhando o céu mudar de cor, o beija-flor pousar no fio de energia, os vaga-lumes darem mais contraste ao ambiente.


A bondade sem medidas. Pessoas usadas para que o bem fosse feito por meio delas sem perceberem. Um brigadeiro, um beijinho. Aumentam não apenas a glicose no sangue, mas fundamentalmente a sensação de paz, acolhimento, em tempos tão hostis. Um bolo Romeu e Julieta. Base de fubá, creme de queijo, goiabada em calda por cima. Doce sem ser enjoativo. Belo sem ser insosso.  


O contraste. Esta instância que nos arrasta entre as escolhas, nos aprisiona em ambientes, narrativas e intermitências de comportamento, padrão de interpretação da realidade, intensidade de relacionamento. O grupo social exige uma posição polarizada estática. Não admite a mudança, a alternância de pontos de vista e argumentos é vista com resistência e tornam simplória a escolha por posicionamentos. Falta visão de paisagem.




Não posso escolher uma cor favorita, um som predileto, um sabor definitivo, uma imagem plena neste paraíso de desespero. Esta configuração social não sabe vivenciar o contraste a não ser com a política da punição do outro. Um sempre é o outro de alguém. Assim talvez seja este o motivo que uso para permitir-me desconectar dos rótulos, das pautas, do padrão de preocupação. Longe disso, eu ser único. Apenas sei ser mais um na massa. A tranquilidade de deitar no gramado sem o incômodo das formigas, das abelhas. Esta paz que inunda meus poros não se detém ao meu corpo e perpassa todos os pistilos do jardim. Desfaço-me no vento que apenas "é vento e passa"; porém não vou com ele. Caio ao chão e torno-me outra criatura, sem corpo, sem mente, apenas a mesma alma, traduzida em um sinal de pontuação. Reticências. Belo nome para a florada de uma planta chamada realidade. E qual seria o fruto das reticências? Não posso escolher, tampouco me preocupo.




Os vaga-lumes sumiram. Não resistiu. Pegou o telefone na gaveta e procurou por algum rastro digital de Paca. Encontrou a formosura, sabedoria e leveza de uma idosa a dançar na sala "Another brick in the wall"; era um vídeo da avó de Paca. A cena descreve uma manhã, dentro de um apartamento, na sala. A sutil senhora com elegância e naturalidade se movimentava pela sala, no compasso do refrão. Quanta luz. Ele se maravilhou. A noção do corpo, do potencial da carne, seu ritmo através do tempo, seu peso, suas marcas, toda uma história oculta no doce semblante. A partir dos gestos daquela vovó, conseguiu entender um pouco da genialidade que perpassa as gerações até encontrar Paca. Por instantes não sentiu a distância. Pudera ser ela relativizada. Dormiu.


Não se tornou uma vida solitária. Era intensa em si. Desmedida na resignação sentimental. Apropriada para o que ele era capaz de suportar depois de tudo o que aconteceu entre ele e a Realidade. Ele se concentrava na beleza das coisas aparentemente simples, como as cores da paisagem, os sons, os sabores e as texturas. Uma xícara de café tinha bem mais do que cafeína. Era o suporte para vivenciar a dimensão da sobriedade sem obrigações.


O senso estético da grande casta soberana sobrecarregava a rede com “lives” de cera. A soberba dos que herdam estruturas prontas seja de trabalho ou de patrimônio era ensurdecedora. Era fácil se desvencilhar agora das coleiras sociais. Não é que doesse cada vez menos, mas é que ele não sentia aquela dor.  No início, foi difícil perceber o que fizeram de seu legado social. Depois compreendeu que seu legado não permanecia à mercê das mãos dos outros. Embora alguns dele usufruíssem, não o dominavam. Seu legado não estaria em livros de história, mas facilitou a vida de milhares. Ele sabia, mas não se preocupava, não se importou em seguir em frente. Não se tratava de uma vida solitária, mas de uma vida livre.


Não se lembra de ter ido ao escritório. Não sabia como era a voz dos que ao lado dele trabalhavam. O perfume das rosas se confundiu ao dos lírios; passou a usar as escadas, para não instigar a rinite. Não lembra se cumprimentou as pessoas na esquina, ou se apenas pensou em fazê-lo. Não sabia se a luz do poste estava acesa porque estava tarde, ou se ainda era cedo, porém escuro. Dias nublados são a estrofe em suspensão. Sem cansaço. Sabia que estava em casa, como há muito não estivera.


Paco de Lucia tocando na moderna vitrola de MP3. O merlot aberto na bancada da cozinha. Noite especial. Ele passou a tarde misturando e sovando a massa. Pela primeira vez decidiu medir as doses. Mas não anotou. Cada item com sua medida. Cada ingrediente no seu momento certo. Trigo, água morna, fermento biológico, azeite e olivas. Sal e tempo. Ele precisava do tempo. O cheiro da fermentação, o ar na massa, a mão que sova a esperança. Enquanto o forno estala ele sonha acordado.




Nadei incessantemente um mar imenso para morrer na praia.




Pelo menos chegou à praia. Ou o objeto de nadar o mar era nele permanecer? Sentir a maresia corroer seus olhos, o sal inundar seus poros, o movimento das ondas questionar suas intenções, e até mesmo sua direção; ter o sol a desidratar suas possibilidades, e a lua cegar você e depois abandoná-lo na escuridão à deriva. Com o ensurdecedor som da arrebentação, e o melancólico barulhinho do mover da água na calmaria.  É isso que esperava? Na praia, morrer é cumprir o objetivo em parte. Erguer-se será transcender e deixar pra trás toda a salmoura, seguir. [Ela brilhava uma sabedoria sem soberba].




Não consigo parar de escrever.  Despejo traços incompletos por onde ando. Escrevo. Mesmo quando não manchei de tinta o papel ou de bytes a tela, estou a escrever; com os olhos na paisagem, ou fechados, dentro de mim. Cravadas experiências e sensações, traços que nem sei se lido será ou se compreendido possível é. Arthur Schopenhauer disse que o estilo é a fisionomia do espírito. Passei a conceber melhor o que sou no dia em que li. 




Uma carroça cheia de discursos passou na rua. Ninguém queria mais aquele amontoado de palavras. O carroceiro procurava um lugar para despejá-los. Todavia, depositar aquela carga classe 4 em qualquer lugar poderia se desdobrar em uma catástrofe. Sábio, o carroceiro seguiu a procurar, mas quando passou em frente aquela casa, não pôde deixar de viajar no dedilhado de Paco. Entendeu que não deveria ficar ali parado. Levou para longe a carroça dos discursos. Cambaleava a carroça cheida dos achismos técnicos, políticos e espirituais. Lá no fundo, soterrados, poemas de amor envelopados, sem abrir. Dejetos não são bem vistos, lixo não traz o nome do dono. Silenciosa batata quente empurrada de mão em mão até chegar à carroça. Cheiro de palavras velhas. O nariz coçava e o espirro era como uma trovoada. As rodas o levaram a seu destino. A carroça voltou leve do aterro. O carroceiro assobiava “entre dos aguas”. 


Não se pode alcançar o cume do olhar dele pela janela. Uma hipérbole que atravessou fronteiras até encontrar lá, além da distância, a razão do eterno retorno. Seu piscar sonolentos olhos selou toda uma era de sonhos e esperança. Ele voltou para a cozinha. Calado, sem canções, sem poemas, cortou dentes de alho, queijo provolone, dourou no azeite, despejou sobre a massa fresca. Comeu sem pensamentos, acompanhado de um vinho libertador.  Pensou seriamente em ir ... mas a lembrança do conta-gotas tirou sua atenção. O silêncio do hospital, a luz impessoal das placas de sinalização interna. Nenhuma que o indicasse o caminho desejado. Perdeu o acesso, ou a bolsa acabou. Importa pouco, pois era então o momento de sair dali. 


A plataforma o esperava. Um faixa laranja no chão marcava onde deveria esperar. Alta noite, ninguém com os pés na água. Chovia lá fora, sem grandes estardalhaços. Chovia e ponto. Os poucos corpos se movimentaram pelo salão sem empatia, sem envolvimento. Tinha no ar um suave cheiro de lêvedo. Uma padaria o convidava para o café. Ele atravessou o corredor determinado a escrever para Paca.


Ele andava vagarosamente, como se tivesse uma trava no corpo. A trava do tempo?, pensou ele efusivo. Caminharia assim, com ela de braços dados, reencontrando-a no outro giro da vida, quando a rotação atinge outra percepção. Iria ela o reconhecer?  Ela tinha um amor pelos animais que ele tentou alcançar. Uma vez ela ajudou um pintinho sair da casca. Com um colher e o cabo de uma faca de cozinha ela o ajudou a nascer. Depois, em uma espécie de frigideira de madeira, o colocou sobre um caixote, bem embaixo de um foco de luz amarela, aquecendo-o. Ele via todo esse carinho com ternura. Embora admirasse os animais, ele ainda não havia alcançado tanto amor assim, a ponto de ser espontâneo, o amor pelos animais. E não o somos todos?  Já não se contava tanto. Bastava o por do sol magnífico que conseguia ver mudar as cores do céu e o contraste com a montanha na curva do horizonte.  Minas foi seu berço, Minas era seu refúgio. 


Toda dor, das renúncias e frustrações. Do corpo tentando cicatrizar cortes tão profundos, era inominável. Parecia que nunca iria acabar. É assim com todos, não havia nada des especial, até começar a fazer falta. O argumento de ser vítima, de se isolar, de estar à parte no pandemônio urbano onde casamento sabe o que fazer de melhor na vida do outro. A dor possibilitava até então esconder no semblante os sentimentos e verdadeiros pensamentos, as limitações de ser pleno no convívio social. A dor era o placebo, mas também era física. O que fariam quando ela acabasse? Ele não sabia. A estranha sensação se apoderava dele às vezes. Era um ir sem distanciar-se, acabando. Sumindo esquecido na cena. 


Afastou seu filho para que não visse o pai adoecer. Enquanto seu pai desfalecia, eles cresciam. À medida em que pai deixava de abrir portas, escrever cartas, fazer jantares, sorrir, ter o semblante leve; ao redor os algozes não percebiam o que estavam fazendo e o culpavam por mudar. Ele se deixou ser morto, por um amor estranho, ou por um cansaço de se debater sem saber nadar, de estar no meio do salão sem saber dançar, de gritar na sala dos surdos, sendo considerado o único cego. Ele que nunca havia desistido,  naquele momento era tomado de uma tristeza tão densa que podia ser tocada. Como algodão doce. Amarga como açúcar queimado, a Realidade o colocou na prensa, espremia ele entre as consequências das escolhas próprias e das que os outros tinham para ele. Naquela carta ele ficou entre se apresentar, contar uma trajetória que deixasse evidente quem ele era, como via a vida, o que sentia. Atravessou florestas de lágrimas em busca do romantismo e amor tão belo e salvador que tinha por ela, mas talvez ela não conseguisse interpretar aquelas linhas, molhadas, borradas do grito da alma. Fez breve desabafo, permitindo que mesmo no escuro a distância fosse tocada, compreendida. Relatou gozos e feridas e terminou a carta com um convite.


Quem era o jovem cidadão a cruzar a rima e deixar aberto o portão? Há muito não recebia uma visita daquelas. Não eram enciclopédias, acesso ao paraíso ou crédito fácil, o jovem queria se apresentar como o futuro representante local na política. Contudo, depois de ouvir sobre saneamento básico, ensino residencial, pró-labore, segurança pública firme, religião controlada;  assustou-se com a proposta da morte da Diversidade, a começar pelas prateleiras das bibliotecas. Interrompeu a conversa, ofereceu água, fechou o portão vendo ir para a casa ao lado aquele que parecia jovem, levar um velho discurso em prol de um cidadão que não existe. 


De volta à mesa, dobrou a carta com cuidado. Com amor fechou o envelope, encerrado dentro do seu peito. Na esperança de que voltasse a pulsar.  


Sempre foi reconfortante as sinceras conversas. Aquelas sem interesse de vitória, de conquista, de ferir o outro. Eram conversas sobre os mais variados assuntos, eram papos que transpassaram as madrugadas, até cadeiras irem pra cima das mesas, até o bocejo ser o convite para última taça, o abraço. 


Lá fora, uma multidão de “lives” adestrava milhões de espectadores, que presos à tela, e escravos da Realidade, esqueceram-se do que um dia estava ao lado, vivo.  Ele foi dormir. Tentou silenciar as ideias. Calou sua dor na madrugada. Sabia muito bem que era apenas mais um dos 7 bilhões vivos, e dos incontáveis que já passaram pela vida. Milhões ilhados em celulares, ou conectados por meio deles. Por mais que se chore e muito se declare. Quase ninguém se ama, se toca, se ama além das imagens postadas em redes sociais. O clichê da miséria social e falência do que se conhece  como grupo, seladas nas entrelinhas tecnológicas, boa suspiros cibernéticos soterrados na enorme, fria, onda; sem limitação de caracteres ou segundos. Finalmente. Ele dormiu.


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Soro - 13ml

 

A vergonha não pode domar o coração. O arrependimento não pode ser uma placa de ferro com a eterna sentença amarrada ao pescoço. Nem toda tragédia é punição. Às vezes é apenas chuva. Ele remoía os pensamentos enquanto tentava se desvencilhar da multidão entre o hall e as escadas. Não iria perdurar naquela rotina. Uma liberdade despontava no porvir, embora nem ele, nem a Realidade percebessem. A diferença é que ele não mais esperava por isso, e a Realidade temia.


As retaliações promovidas na surdina são as piores. O olhar da serpente. O hipnotizante atributo antes do bote. Enquanto uns se fascinam, outros acordam tarde demais, tendo corpo e mente esmagados pela metáfora rastejante. 


Venceu o mar de ombros e olhares. Estava na rua novamente. Era música o eco de seus passos, era encantamento sumir na paisagem. Percebeu no caminho que os espaços públicos perderam a configuração.


Praças cercadas, lacradas, inutilizadas com fita zebrada. O equipamento social de convergência dos fluxos para integração das pessoas, atrofiado, impossibilidade de sua atividade fim. A sociedade se esconde, a sociedade é exilada de si, por prevenção, para maturação, por resistência, por comodidade. O individualismo exacerbado de um ser criado para ser social. 


Na esquina, o cômodo comercial de uma estreita porta de aço escondia uma floricultura. Um beco úmido levava até os fundos onde abria-se um pátio com diversas mudas em diferentes estados de desenvolvimento. Ele se permitiu perpassar os corredores verdes, não ver além das cores das flores e não escutar mais que os pássaros livres.


Ele se acostumou a sentir as metáforas aflorar das coisas. Naquele jardim escondido, em que nada tinha preço, lembrou-se de filmes e livros em que as metáforas fazem do palco a paisagem, do sopro a tempestade e do carrinho de bebê o fio condutor entre eras, entre estilos, intocáveis encouraçados à deriva da realidade.


Ela o observou desde a entrada. Nunca o viu antes. Entretanto a presença dele iniciou uma reação em cadeia, primeiro um formigamento no couro cabeludo, depois um tremor nas pernas e um calafrio na barriga. Era ele. [Ela pensou]. Ele saiu sem comprar, sem tocar, sem precisar. Ela aquietou-se de uma vez por todas, pois percebeu que ele não a ignorou, mas ele estava em uma outra dimensão, a da lembrança. Seu olhar estava distante dentro de si. Dificilmente ultrapassou a retina e tocou as cores das flores. Seu olhar estava dentro. 


Paca. Ele chegou ao relicário com o coração agitado de uma estranha paz. Não sentiu isso antes. Sua tia já havia falado muito dela. Na livraria, havia conhecido a irmã. Na casa da tia, também teve seus momentos de conversa e troca com a irmã. Percebeu como a família é especial. No entanto, apenas a conhecia por fotos e tinha falado por telefone uma vez. Isso até aquela noite no relicário. Não havia distrações, não havia cardápio, nada além dos olhos, sorriso e voz dela. Ele não soube o que fazer mas fez. Aquele momento abriu sua mente, remexeu na paisagem de uma forma encantadora. Dias depois, encontraram-se à mesa novamente de um lounge, impressiona como eles faziam juntos tanto sentido. Talvez só ele pensasse isso. Na terceira vez que se entraram, lado a lado na mesa. Suas mãos de forma involuntária chegaram a se tocar. Ele ficou com aquilo marcado no coração.


Em um trecho da conversa deles, ela comentou sobre o nascer e pôr do sol da cidade em que ela morava. Ele se lembrou. Dias depois, decidiu enviar uma mensagem convite em código usando aquela história do pôr do sol. A resposta dela seria o crucial para que ele fosse até ela, que mudasse os rumos, mas não. Ela não respondeu. Ela não respondeu. A vida de ambos seguiu por outras pessoas e isso não significa que foram mais ou menos felizes, apenas foi diferente do que poderia ter sido. 


Anos depois. Encontraram-se novamente, na cidade dela; ele, ela e sua irmã. O melhor passeio. Os olhos dela, a maneira de olhar. Seu perfume. O mundo interrompeu a dinâmica cruel, a malha do tempo se abriu para um café, para um tour diferente, para a Gravidade. A tosse dela era elegante, a conversa extremamente agradável, no entanto ele pode ter soado distante, pois seu telefone não parava de chegar mensagens, de quem não o queria perder para aquela nova dimensão. No silêncio ele era apresentado ao que poderia ter sido, no telefone era lembrado do que era. Castrado em seus sentimentos, ele lamentou em uma lágrima na câmara escura, vendo a gravidade. “Tonight you belong to me”.


Por toda a plataforma, as silhuetas de concreto, as intermitências dos olhares; no tour, aprendeu do que as músicas falavam, quando citavam atributos daquela cidade. Ele entendeu melhor o rock nacional e se fascinou ainda mais, como as palavras e silêncios dela se encaixavam aos seus. Talvez só ele percebesse. Ele a amava. No entanto, naquele instante, não era para ele ficar. A distância os levou novamente para dimensões diferentes. Não a alcançou novamente; Paca, em sua exuberância de ser plena em tudo o que faz, vivenciou o mundo, países, sabores, aromas e sons. Vozes da experiência, vozes de paixões e ilusões. Ela transcende os sonhos e sonha mais; tão especial. Quem a conhece se maravilha como pode existir alguém assim. O amor que ela demonstra pela família, pelas crianças, pelas artes, pela natureza é uma atmosfera leve de paz, e a bela inquietação de se estar vivo. 


Ele chorou sem lágrimas, e quando a música começou a tocar, ele se fez riacho pela face abaixo.


Qual o propósito da música? Para ouvir, sentir. Lembrou da canção de Arnaldo. Tem música para todo instante. As canções carregam a instância de um sentimento, traduzem em cifras sensações que mexem como a alma.




Meus anjos. São três. Movimentam minhas escolhas, amparam-me na dor e na sutileza de ver a vida. Eles não conseguem interpretar, mas sentem como eu estou. Sempre. Como a reação mágica entre gêmeos, ou melhor, entre almas gêmeas. Eles sentem em si, as alterações que a vida faz em mim. percebo que minha sanidade se estaciona no brilho da existência deles. São três, mas poderiam ser quatro. Mas… as covinhas escondem o gatilho do encanto. Quando surgem espontaneamente elas desanuviam o ambiente com uma leveza. Despertavam-me para a consequência de minhas escolhas e meus passos; pontuam as distâncias. Ela mandou que que ressignificasse. Inacessível, apenas sorriu. Distante, ela era o esplendor do amor que nunca iluminou por tanto tempo meu coração.




Todos os anos o calendário apresenta doze meses. Na mesma data sempre. Ele era o mais original o possível, o mais verdadeiro. Era o ápice de sua transparência naquela volta da terra. Era o aniversário dela. Elas respondia e ele reagia calado. Daquela forma, talvez apenas ele sentisse.


Quando fechava os olhos, ouvindo uma boa música, consegui visualizar ela dançando, com vestes leves, sorriso solto, sem pretensões, limites e julgamentos. Ele quase sentia aquela felicidade. Pensou em escrever um livro em homenagem a ela, colocando tudo o que sentia no papel, e lançar ao universo para quem sabe um dia esbarrar nela. Como uma bela história de filme. Na capa seria óbvio, escreveria “Paca”. Todavia, ele não conseguia. Diante do papel branco, sentado à máquina de escrever, ou debaixo da árvore de seu quintal, com o caderno e caneta nas mãos, ele não conseguia. iniciava a escrita e parava olhando fixamente no limiar, como se a buscasse no olhar, mas ela não vinha além da lembrança. Possivelmente ela tinha seus risos estre outras pessoas, e só ele sentisse a distância entre eles. 


A Realidade assistia perplexa, não intervinha. Será que foi por isso que ele se afastou dela? Não. Apenas isso não. Pele, papel carbono, tempo mão forte da vida, essa rima repetida, perdida, sentida no piscar dos olhos. 




Aleatoriamente, enquanto mexia no telefone celular, em uma rede social, viu a foto de Paca reluzir. Clicar foi se aproximar de uma vitrine sem ser visto pelo outro lado. Ele a ouvia, tentava falar, mas apenas assistia, não era visto, tampouco ouvido. Qual o propósito de tanto sentimento? Educar a frustração? Manter viva a sensação de certo porvir ou reforçar as consequências de suas escolha.


Acertou-o como uma onda do oceano. Bem no peito. Ele acordou, mesmo que não estivesse dormindo. O ambiente ao redor fazia cada vez menos sentido, tinha cada vez menos intensidade as cores os sabores, os ciclos de tragédias, altruísmo, solidariedade, complacência, arrogância e esquecimento. A sociedade ruminante. Ele já não era parte dela.


A terra tinha um cheiro novo naquela manhã fria. O vento anunciava que mais tarde traria a chuva. Ele se reclinou à rede, balançava bem pouco. Olhava para o céu azul, que se enchia de nuvens, preparando-se para a chuva.


Ali perto, um jovem de óculos tentava equilibrar suas emoções na bicicleta. Carregava sonhos para vender nas proximidades. Ruas inclinadas, cabeças suspensas, faltaria sonhos para tanta demanda. Ele não tinha buzina, mas a bicicleta rangia anunciando sua passagem. Da rede ouviu a bicicleta dos sonhos, ficou quieto até que ela passasse.


De olhos fechados se lembrava dos seus anjos. O semblante de um anjo encanta e traz paz. Talvez pela maneira leve com que interage com a Realidade, como não se deixa afetar por ela, embora quando submetido à dinâmica do tempo com a realidade, estes anjos tornam-se adultos tão carentes de uma salvação, tão dependentes de um amor, que não encontram onde procuram. Paca fora um anjo de outrora, mas permanecia angelical. Intocável, porém acessível, enigmática, todavia tão verdadeira, pujante, sincera. O brilho do olhar dela possuía algo que não se podia colocar em uma frase. 




Ele sabia, ela iria ultrapassar o tempo, não seria nunca sucumbida à Realidade. O sentimento é leve, belo. No entanto, a distância entre eles era mais do que enredo de série, filme, novela ou livro. Estava mais para o silêncio entre cenas no teatro. O palco escuro, com luzes quentes ao fundo. O chão de madeira, com um som de veludo. Aquele momento em que os atores respiram, mas permanecem intensamente na cena, e você não percebe, e de fato nem se preocupa, quais as membranas separam o ator, o personagem, o indivíduo. Este instante denso, intenso, representa melhor a distância entre eles. Talvez ela não visse dessa forma.




Quando você me transformou... Não percebeu a maneira que dentro de mim passou a habitar. Trouxe à paisagem uma nova dimensão, uma específica paleta de cores. Fez de mim, meio, mensagem, instrumento e alento. Ressignificando meus gestos, traços, pensamentos, os conceitos que pensei conhecer. Uma novilíngua era extinta no piscar dos olhos. Eu não estava preso, mas de forma inédita, livre. Fui então obrigado a te extraditar. Tornei-me verdadeiro por demasia, expus meu sentimento à flor da pele, frágil a ponto de machucar-me com a gota d’água. Irremediável senso de autopreservação. Perdi o timing, você também. A distância ocupou um espaço que era nosso. Demos brecha para o Tempo e a Realidade. Enterrado, não mais passa o tempo, a realidade... 




A Realidade sabia que ele falava ao vento, mas não mais o podia ouvir. Sentia que algo especial acontecia ali. Que o vento carregava mais do ar. Que o “Guardador de rebanhos”, tão lido por ele, escondia nas entrelinhas a diversidade dos sentidos. Porém, ela estava à margem.


Raio rasga o céu. Luz que rima com a lágrima que precipita aos olhos. Ele saiu da rede. Disposto na grama, o clichê da chuva. Leve devaneio, este de subir aos céus enquanto caem as gotas. Ser o significado a contrafluxo. Ser além da frase, afora o verso, transcendendo o gesto e sobe, muda o estado físico. Vivenciar-se, conhecer a si como os sábios deflagraram. Perceber os riscos e sentindo os desdobramentos das escolas. Passos em poças paradas, jorrando gotas à chuva. Lábios trêmulos, rubro, depois roxos. O turbilhão de gotas. O som ao tocar o chão, o metal, o barro, as folhas, os poros. Cada gota entrava pelos poros, começando a inundá-lo. O excesso saía pelos olhos. Não era sintomas de saudade. Nenhuma canção se encaixava. Escorria. Pelo rosto, pelo chão, pelas plantas do jardim. 


Tantos números, tanta cobrança. Tão pouco reconhecimento. Gritos pela sobrevivência. Almas arranham a realidade em busca de alimentar a carne, para permanecer no ritmo, no fluxo social. Cifras, índices, estatísticas, códigos, senhas, marcações de espaço, propriedade, tempo, posse, ganhos e perdas. Rótulos. Não mais o afetam e era estranho se alguém pudesse aproximar-se para compreender. Nem era tanto o poder de interferência que não havia, mas não importavam mais. Ele transitava por eles, até os operava, sem envolver-se; mas a chuva não. Essa ainda conseguia atingi-lo. Integrava-se a ele, mudando seu olhar, irrigando sensações a descontrole, resignando-o a esperar que passasse. Seu semblante não pesava,embora intenso não se tratava de um momento ruim, mas estranhamente de renovação. Ele também chovia. Integrado às gotas, subia uma a uma, chegando às nuvens, precipitava. 


Marcado o chão molhado da casa. Rastro perfumado de um banho quente. Repouso na poltrona à janela, café quente, cobertor. Assistiu o resto de chuva. Rabiscou no caderno os traços de um resto. Seus chinelos molhados chiavam no caminho até a padaria. Na fila, estereótipos. Ele apenas pensava na chuva.


Gargalhadas rasgavam o ambiente com a frivolidade da sobreposição dos rótulos. Construção de reflexos, era o que faziam. Não arquitetaram uma imagem, mas o reflexo dela, para embutir nas retinas sociais, nas vitrines e espelhos a expectativa; para alimentar os números e fazer cócegas ao ego. Espelhos quebrados que já não cortam ninguém. Ele nem os olhava, nem os via. Comprou do pão de azeite, o de sublime sabor de azeitona. O vinho estava em casa ao lado do livro. Nem precisava afiar as palavras. Parecia redundância, todavia, era o extrapolar dos sentidos. Voltou a chover.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Soro - 12ml

 

No dia em que tentaram me matar trataram-me como uma erva daninha, esquecendo-se que me plantaram, podaram e fertilizaram. Fizeram-me de um vinho de sabor ralo, sem nem ao menos beber-me, sabendo ainda assim meu sabor peculiar, para descartarem-me catalogaram minhas qualidades como a escória do que se pode ter na prateleira. Venderam a própria alma e pagaram com a minha. todavia, desconheciam o fato de minha alma não pertencer a mim. Pensaram que eu seria meu nome. Então, jogaram sobre ele todas as pragas conhecidas, subestimando a morada das virtudes silenciosas. Eles erraram. Não serei eu o agente punidor. Não verei eu a vingança ou justiça sobre a atrocidade que tentaram fazer. Sopraram ao vento uma riqueza e já não podem mais alcançar. Quando foi que eu permiti estacionar em meu coração aquela que me expulsou de mim mesmo? Nos dias em que me entristeço amadureço. Neste momento em que o desespero usa do vento para sondar minha janela, meus anjos sorriem e me salvam sem perceber que têm o timing perfeito. Eles não desistem. Com uma sensibilidade sobre humana. Demorei para perceber. Tarde demais? Quando o tempo não passa mais, o silêncio de senta ao lado da paz.

 

Ruidosos olhares pelas ruas rasgadas de silêncio e dor. Ruas que em significante tinham incrustados o suor das corridas matinais, os gritos de uma madrugada de desespero e solidão. Quando o peito quase explode na tentativa de conter no corpo um sentimento de dor, de angústia, da extremidade do amor. O chão negro, asfalto gasto incapaz de refletir as estrelas. Esquinas sem verso, com um poste apagado. Delinquentes sem coragem de mexer com aqueles olhos negros, com aquele semblante supernova. Vapores baratos de bueiros antigos. Fornos persistentes de padeiros cansados. Ruas que se interligam como as veias do corpo. A brisa corria as ruas feito soro nas veias. Ruas amargas com as cores de uma vida em que o legado é a calvice, as rugas e as palavras não lidas, e quando lidas não compreendidas, não por genialidade, mas por falta de entrega do leitor. Ele não estava na mesma dimensão delas. Tampouco estacionara em encruzilhadas. Sua rima rangia pelas ruas. Ruas insípidas, frígidas, mudas. Ruas por onde um coração desanuviou e decidiu transcender.

 

Depois da chuva, depois das luzes dos postes chegarem a ponto de evaporar as últimas gotas. Ele, frente a frente com a Realidade. Teve a oportunidade de desfazê-la, de enterrá-la, ou a subverter. No entanto, virou-se, escolheu se distanciar. A Realidade nunca havia passado por aquilo. Não soube então lidar com a lacuna. Distanciar-se é se aproximar.

 

Quando a última gota cai. O recipiente vazio é a interrogação do porvir. Reposição ou alta? Quando a chuva começa; quando da nuvem desprende a transformação da primeira gota, ou quando a primogênita cai ao solo, sendo instantaneamente absorvida, ou sobre a ponta de um nariz, sendo retirada com as mãos, ou quando se confunde à lágrima, ou quando evapora no ar deixando a incógnita do que poderia ter sido? Não é a resposta que irá contribuir com a paisagem, tampouco a enxurrada de perguntas.

 

Conta-gotas sem gotas. O olhar sem argumento, sem arrogância, sem expectativas ilusórias, mas a esperança de um instante de paz. Desde que o tempo fora enterrado, era o que ele tinha. Paz; e agora ela percebia o que viria junto com sua escolha.

 

Ele achava curioso como ela lavava a louça; sempre começando pelos talheres. Era simplesmente um encanto a espuma, o metal e a água nas mãos tão delicadas e cheias de história. Ela se admirava como ele cozinhava; sempre começando pela escolha do vinho ou do café. A taça como o prumo dos versos, a faca sem pressa, embora ágil, para picar e arrumar; as mãos como a de um regente. Sabores que valiam um poema. Os ciclos eram renovados sem a cobrança da Realidade, sem as marcações do Tempo.

 

As ruas não estrangulavam seus passos. Quantas cidades coexistem dentro de uma? Marco Polo teria se fascinado com as ruas dentro das ruas do olhar de quem habita o ambiente por outro viés que não o convencional. Eles sabiam que não estava esta aventura nos livros, pois aquele acesso, era o acesso deles e de ninguém mais.

 

A Realidade falhou mais uma vez. E neste ponto do enredo compreendeu que não era doença. Teria de escolher outra pessoa para tentar se aproximar dele, deles? A Realidade se debatia em si, com o olhar vidrado nos vitrais da casa em que nunca mais entraria.