quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Soro - 13ml

 

A vergonha não pode domar o coração. O arrependimento não pode ser uma placa de ferro com a eterna sentença amarrada ao pescoço. Nem toda tragédia é punição. Às vezes é apenas chuva. Ele remoía os pensamentos enquanto tentava se desvencilhar da multidão entre o hall e as escadas. Não iria perdurar naquela rotina. Uma liberdade despontava no porvir, embora nem ele, nem a Realidade percebessem. A diferença é que ele não mais esperava por isso, e a Realidade temia.


As retaliações promovidas na surdina são as piores. O olhar da serpente. O hipnotizante atributo antes do bote. Enquanto uns se fascinam, outros acordam tarde demais, tendo corpo e mente esmagados pela metáfora rastejante. 


Venceu o mar de ombros e olhares. Estava na rua novamente. Era música o eco de seus passos, era encantamento sumir na paisagem. Percebeu no caminho que os espaços públicos perderam a configuração.


Praças cercadas, lacradas, inutilizadas com fita zebrada. O equipamento social de convergência dos fluxos para integração das pessoas, atrofiado, impossibilidade de sua atividade fim. A sociedade se esconde, a sociedade é exilada de si, por prevenção, para maturação, por resistência, por comodidade. O individualismo exacerbado de um ser criado para ser social. 


Na esquina, o cômodo comercial de uma estreita porta de aço escondia uma floricultura. Um beco úmido levava até os fundos onde abria-se um pátio com diversas mudas em diferentes estados de desenvolvimento. Ele se permitiu perpassar os corredores verdes, não ver além das cores das flores e não escutar mais que os pássaros livres.


Ele se acostumou a sentir as metáforas aflorar das coisas. Naquele jardim escondido, em que nada tinha preço, lembrou-se de filmes e livros em que as metáforas fazem do palco a paisagem, do sopro a tempestade e do carrinho de bebê o fio condutor entre eras, entre estilos, intocáveis encouraçados à deriva da realidade.


Ela o observou desde a entrada. Nunca o viu antes. Entretanto a presença dele iniciou uma reação em cadeia, primeiro um formigamento no couro cabeludo, depois um tremor nas pernas e um calafrio na barriga. Era ele. [Ela pensou]. Ele saiu sem comprar, sem tocar, sem precisar. Ela aquietou-se de uma vez por todas, pois percebeu que ele não a ignorou, mas ele estava em uma outra dimensão, a da lembrança. Seu olhar estava distante dentro de si. Dificilmente ultrapassou a retina e tocou as cores das flores. Seu olhar estava dentro. 


Paca. Ele chegou ao relicário com o coração agitado de uma estranha paz. Não sentiu isso antes. Sua tia já havia falado muito dela. Na livraria, havia conhecido a irmã. Na casa da tia, também teve seus momentos de conversa e troca com a irmã. Percebeu como a família é especial. No entanto, apenas a conhecia por fotos e tinha falado por telefone uma vez. Isso até aquela noite no relicário. Não havia distrações, não havia cardápio, nada além dos olhos, sorriso e voz dela. Ele não soube o que fazer mas fez. Aquele momento abriu sua mente, remexeu na paisagem de uma forma encantadora. Dias depois, encontraram-se à mesa novamente de um lounge, impressiona como eles faziam juntos tanto sentido. Talvez só ele pensasse isso. Na terceira vez que se entraram, lado a lado na mesa. Suas mãos de forma involuntária chegaram a se tocar. Ele ficou com aquilo marcado no coração.


Em um trecho da conversa deles, ela comentou sobre o nascer e pôr do sol da cidade em que ela morava. Ele se lembrou. Dias depois, decidiu enviar uma mensagem convite em código usando aquela história do pôr do sol. A resposta dela seria o crucial para que ele fosse até ela, que mudasse os rumos, mas não. Ela não respondeu. Ela não respondeu. A vida de ambos seguiu por outras pessoas e isso não significa que foram mais ou menos felizes, apenas foi diferente do que poderia ter sido. 


Anos depois. Encontraram-se novamente, na cidade dela; ele, ela e sua irmã. O melhor passeio. Os olhos dela, a maneira de olhar. Seu perfume. O mundo interrompeu a dinâmica cruel, a malha do tempo se abriu para um café, para um tour diferente, para a Gravidade. A tosse dela era elegante, a conversa extremamente agradável, no entanto ele pode ter soado distante, pois seu telefone não parava de chegar mensagens, de quem não o queria perder para aquela nova dimensão. No silêncio ele era apresentado ao que poderia ter sido, no telefone era lembrado do que era. Castrado em seus sentimentos, ele lamentou em uma lágrima na câmara escura, vendo a gravidade. “Tonight you belong to me”.


Por toda a plataforma, as silhuetas de concreto, as intermitências dos olhares; no tour, aprendeu do que as músicas falavam, quando citavam atributos daquela cidade. Ele entendeu melhor o rock nacional e se fascinou ainda mais, como as palavras e silêncios dela se encaixavam aos seus. Talvez só ele percebesse. Ele a amava. No entanto, naquele instante, não era para ele ficar. A distância os levou novamente para dimensões diferentes. Não a alcançou novamente; Paca, em sua exuberância de ser plena em tudo o que faz, vivenciou o mundo, países, sabores, aromas e sons. Vozes da experiência, vozes de paixões e ilusões. Ela transcende os sonhos e sonha mais; tão especial. Quem a conhece se maravilha como pode existir alguém assim. O amor que ela demonstra pela família, pelas crianças, pelas artes, pela natureza é uma atmosfera leve de paz, e a bela inquietação de se estar vivo. 


Ele chorou sem lágrimas, e quando a música começou a tocar, ele se fez riacho pela face abaixo.


Qual o propósito da música? Para ouvir, sentir. Lembrou da canção de Arnaldo. Tem música para todo instante. As canções carregam a instância de um sentimento, traduzem em cifras sensações que mexem como a alma.




Meus anjos. São três. Movimentam minhas escolhas, amparam-me na dor e na sutileza de ver a vida. Eles não conseguem interpretar, mas sentem como eu estou. Sempre. Como a reação mágica entre gêmeos, ou melhor, entre almas gêmeas. Eles sentem em si, as alterações que a vida faz em mim. percebo que minha sanidade se estaciona no brilho da existência deles. São três, mas poderiam ser quatro. Mas… as covinhas escondem o gatilho do encanto. Quando surgem espontaneamente elas desanuviam o ambiente com uma leveza. Despertavam-me para a consequência de minhas escolhas e meus passos; pontuam as distâncias. Ela mandou que que ressignificasse. Inacessível, apenas sorriu. Distante, ela era o esplendor do amor que nunca iluminou por tanto tempo meu coração.




Todos os anos o calendário apresenta doze meses. Na mesma data sempre. Ele era o mais original o possível, o mais verdadeiro. Era o ápice de sua transparência naquela volta da terra. Era o aniversário dela. Elas respondia e ele reagia calado. Daquela forma, talvez apenas ele sentisse.


Quando fechava os olhos, ouvindo uma boa música, consegui visualizar ela dançando, com vestes leves, sorriso solto, sem pretensões, limites e julgamentos. Ele quase sentia aquela felicidade. Pensou em escrever um livro em homenagem a ela, colocando tudo o que sentia no papel, e lançar ao universo para quem sabe um dia esbarrar nela. Como uma bela história de filme. Na capa seria óbvio, escreveria “Paca”. Todavia, ele não conseguia. Diante do papel branco, sentado à máquina de escrever, ou debaixo da árvore de seu quintal, com o caderno e caneta nas mãos, ele não conseguia. iniciava a escrita e parava olhando fixamente no limiar, como se a buscasse no olhar, mas ela não vinha além da lembrança. Possivelmente ela tinha seus risos estre outras pessoas, e só ele sentisse a distância entre eles. 


A Realidade assistia perplexa, não intervinha. Será que foi por isso que ele se afastou dela? Não. Apenas isso não. Pele, papel carbono, tempo mão forte da vida, essa rima repetida, perdida, sentida no piscar dos olhos. 




Aleatoriamente, enquanto mexia no telefone celular, em uma rede social, viu a foto de Paca reluzir. Clicar foi se aproximar de uma vitrine sem ser visto pelo outro lado. Ele a ouvia, tentava falar, mas apenas assistia, não era visto, tampouco ouvido. Qual o propósito de tanto sentimento? Educar a frustração? Manter viva a sensação de certo porvir ou reforçar as consequências de suas escolha.


Acertou-o como uma onda do oceano. Bem no peito. Ele acordou, mesmo que não estivesse dormindo. O ambiente ao redor fazia cada vez menos sentido, tinha cada vez menos intensidade as cores os sabores, os ciclos de tragédias, altruísmo, solidariedade, complacência, arrogância e esquecimento. A sociedade ruminante. Ele já não era parte dela.


A terra tinha um cheiro novo naquela manhã fria. O vento anunciava que mais tarde traria a chuva. Ele se reclinou à rede, balançava bem pouco. Olhava para o céu azul, que se enchia de nuvens, preparando-se para a chuva.


Ali perto, um jovem de óculos tentava equilibrar suas emoções na bicicleta. Carregava sonhos para vender nas proximidades. Ruas inclinadas, cabeças suspensas, faltaria sonhos para tanta demanda. Ele não tinha buzina, mas a bicicleta rangia anunciando sua passagem. Da rede ouviu a bicicleta dos sonhos, ficou quieto até que ela passasse.


De olhos fechados se lembrava dos seus anjos. O semblante de um anjo encanta e traz paz. Talvez pela maneira leve com que interage com a Realidade, como não se deixa afetar por ela, embora quando submetido à dinâmica do tempo com a realidade, estes anjos tornam-se adultos tão carentes de uma salvação, tão dependentes de um amor, que não encontram onde procuram. Paca fora um anjo de outrora, mas permanecia angelical. Intocável, porém acessível, enigmática, todavia tão verdadeira, pujante, sincera. O brilho do olhar dela possuía algo que não se podia colocar em uma frase. 




Ele sabia, ela iria ultrapassar o tempo, não seria nunca sucumbida à Realidade. O sentimento é leve, belo. No entanto, a distância entre eles era mais do que enredo de série, filme, novela ou livro. Estava mais para o silêncio entre cenas no teatro. O palco escuro, com luzes quentes ao fundo. O chão de madeira, com um som de veludo. Aquele momento em que os atores respiram, mas permanecem intensamente na cena, e você não percebe, e de fato nem se preocupa, quais as membranas separam o ator, o personagem, o indivíduo. Este instante denso, intenso, representa melhor a distância entre eles. Talvez ela não visse dessa forma.




Quando você me transformou... Não percebeu a maneira que dentro de mim passou a habitar. Trouxe à paisagem uma nova dimensão, uma específica paleta de cores. Fez de mim, meio, mensagem, instrumento e alento. Ressignificando meus gestos, traços, pensamentos, os conceitos que pensei conhecer. Uma novilíngua era extinta no piscar dos olhos. Eu não estava preso, mas de forma inédita, livre. Fui então obrigado a te extraditar. Tornei-me verdadeiro por demasia, expus meu sentimento à flor da pele, frágil a ponto de machucar-me com a gota d’água. Irremediável senso de autopreservação. Perdi o timing, você também. A distância ocupou um espaço que era nosso. Demos brecha para o Tempo e a Realidade. Enterrado, não mais passa o tempo, a realidade... 




A Realidade sabia que ele falava ao vento, mas não mais o podia ouvir. Sentia que algo especial acontecia ali. Que o vento carregava mais do ar. Que o “Guardador de rebanhos”, tão lido por ele, escondia nas entrelinhas a diversidade dos sentidos. Porém, ela estava à margem.


Raio rasga o céu. Luz que rima com a lágrima que precipita aos olhos. Ele saiu da rede. Disposto na grama, o clichê da chuva. Leve devaneio, este de subir aos céus enquanto caem as gotas. Ser o significado a contrafluxo. Ser além da frase, afora o verso, transcendendo o gesto e sobe, muda o estado físico. Vivenciar-se, conhecer a si como os sábios deflagraram. Perceber os riscos e sentindo os desdobramentos das escolas. Passos em poças paradas, jorrando gotas à chuva. Lábios trêmulos, rubro, depois roxos. O turbilhão de gotas. O som ao tocar o chão, o metal, o barro, as folhas, os poros. Cada gota entrava pelos poros, começando a inundá-lo. O excesso saía pelos olhos. Não era sintomas de saudade. Nenhuma canção se encaixava. Escorria. Pelo rosto, pelo chão, pelas plantas do jardim. 


Tantos números, tanta cobrança. Tão pouco reconhecimento. Gritos pela sobrevivência. Almas arranham a realidade em busca de alimentar a carne, para permanecer no ritmo, no fluxo social. Cifras, índices, estatísticas, códigos, senhas, marcações de espaço, propriedade, tempo, posse, ganhos e perdas. Rótulos. Não mais o afetam e era estranho se alguém pudesse aproximar-se para compreender. Nem era tanto o poder de interferência que não havia, mas não importavam mais. Ele transitava por eles, até os operava, sem envolver-se; mas a chuva não. Essa ainda conseguia atingi-lo. Integrava-se a ele, mudando seu olhar, irrigando sensações a descontrole, resignando-o a esperar que passasse. Seu semblante não pesava,embora intenso não se tratava de um momento ruim, mas estranhamente de renovação. Ele também chovia. Integrado às gotas, subia uma a uma, chegando às nuvens, precipitava. 


Marcado o chão molhado da casa. Rastro perfumado de um banho quente. Repouso na poltrona à janela, café quente, cobertor. Assistiu o resto de chuva. Rabiscou no caderno os traços de um resto. Seus chinelos molhados chiavam no caminho até a padaria. Na fila, estereótipos. Ele apenas pensava na chuva.


Gargalhadas rasgavam o ambiente com a frivolidade da sobreposição dos rótulos. Construção de reflexos, era o que faziam. Não arquitetaram uma imagem, mas o reflexo dela, para embutir nas retinas sociais, nas vitrines e espelhos a expectativa; para alimentar os números e fazer cócegas ao ego. Espelhos quebrados que já não cortam ninguém. Ele nem os olhava, nem os via. Comprou do pão de azeite, o de sublime sabor de azeitona. O vinho estava em casa ao lado do livro. Nem precisava afiar as palavras. Parecia redundância, todavia, era o extrapolar dos sentidos. Voltou a chover.

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