quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Soro - 14ml

 

Passar pela praça era visitar uma galeria de arte. Obras imóveis, obras orgânicas. Pessoas abstratas, sentimentos concretos. Infraestrutura revista, novos usos e ocupações. Sem curadoria. A céu aberto. Corpos sincronizados com o caos. Barulho e movimento. Disputas. Sem início, fim ou um propósito. Passar pela praça era o caminho mais próximo para chegar em casa. No alto da palmeira imperial um casal de maritacas gritava. Ele lembrou de Paca, seu amor pelos animais e do episódio da visita das maritacas na casa dela. Percebeu ter lembranças que não viveu; apropriou-se só de ouvir falar, ou ver em rede social. O telefone agora ficava dentro da gaveta, descarregado. 


Marcante no céu à noite, os vagalumes saiam da árvore lateral e pontuavam a esperança na janela dele. Hipnotizado pela magia da biologia, ficou na cama olhando o céu mudar de cor, o beija-flor pousar no fio de energia, os vaga-lumes darem mais contraste ao ambiente.


A bondade sem medidas. Pessoas usadas para que o bem fosse feito por meio delas sem perceberem. Um brigadeiro, um beijinho. Aumentam não apenas a glicose no sangue, mas fundamentalmente a sensação de paz, acolhimento, em tempos tão hostis. Um bolo Romeu e Julieta. Base de fubá, creme de queijo, goiabada em calda por cima. Doce sem ser enjoativo. Belo sem ser insosso.  


O contraste. Esta instância que nos arrasta entre as escolhas, nos aprisiona em ambientes, narrativas e intermitências de comportamento, padrão de interpretação da realidade, intensidade de relacionamento. O grupo social exige uma posição polarizada estática. Não admite a mudança, a alternância de pontos de vista e argumentos é vista com resistência e tornam simplória a escolha por posicionamentos. Falta visão de paisagem.




Não posso escolher uma cor favorita, um som predileto, um sabor definitivo, uma imagem plena neste paraíso de desespero. Esta configuração social não sabe vivenciar o contraste a não ser com a política da punição do outro. Um sempre é o outro de alguém. Assim talvez seja este o motivo que uso para permitir-me desconectar dos rótulos, das pautas, do padrão de preocupação. Longe disso, eu ser único. Apenas sei ser mais um na massa. A tranquilidade de deitar no gramado sem o incômodo das formigas, das abelhas. Esta paz que inunda meus poros não se detém ao meu corpo e perpassa todos os pistilos do jardim. Desfaço-me no vento que apenas "é vento e passa"; porém não vou com ele. Caio ao chão e torno-me outra criatura, sem corpo, sem mente, apenas a mesma alma, traduzida em um sinal de pontuação. Reticências. Belo nome para a florada de uma planta chamada realidade. E qual seria o fruto das reticências? Não posso escolher, tampouco me preocupo.




Os vaga-lumes sumiram. Não resistiu. Pegou o telefone na gaveta e procurou por algum rastro digital de Paca. Encontrou a formosura, sabedoria e leveza de uma idosa a dançar na sala "Another brick in the wall"; era um vídeo da avó de Paca. A cena descreve uma manhã, dentro de um apartamento, na sala. A sutil senhora com elegância e naturalidade se movimentava pela sala, no compasso do refrão. Quanta luz. Ele se maravilhou. A noção do corpo, do potencial da carne, seu ritmo através do tempo, seu peso, suas marcas, toda uma história oculta no doce semblante. A partir dos gestos daquela vovó, conseguiu entender um pouco da genialidade que perpassa as gerações até encontrar Paca. Por instantes não sentiu a distância. Pudera ser ela relativizada. Dormiu.


Não se tornou uma vida solitária. Era intensa em si. Desmedida na resignação sentimental. Apropriada para o que ele era capaz de suportar depois de tudo o que aconteceu entre ele e a Realidade. Ele se concentrava na beleza das coisas aparentemente simples, como as cores da paisagem, os sons, os sabores e as texturas. Uma xícara de café tinha bem mais do que cafeína. Era o suporte para vivenciar a dimensão da sobriedade sem obrigações.


O senso estético da grande casta soberana sobrecarregava a rede com “lives” de cera. A soberba dos que herdam estruturas prontas seja de trabalho ou de patrimônio era ensurdecedora. Era fácil se desvencilhar agora das coleiras sociais. Não é que doesse cada vez menos, mas é que ele não sentia aquela dor.  No início, foi difícil perceber o que fizeram de seu legado social. Depois compreendeu que seu legado não permanecia à mercê das mãos dos outros. Embora alguns dele usufruíssem, não o dominavam. Seu legado não estaria em livros de história, mas facilitou a vida de milhares. Ele sabia, mas não se preocupava, não se importou em seguir em frente. Não se tratava de uma vida solitária, mas de uma vida livre.


Não se lembra de ter ido ao escritório. Não sabia como era a voz dos que ao lado dele trabalhavam. O perfume das rosas se confundiu ao dos lírios; passou a usar as escadas, para não instigar a rinite. Não lembra se cumprimentou as pessoas na esquina, ou se apenas pensou em fazê-lo. Não sabia se a luz do poste estava acesa porque estava tarde, ou se ainda era cedo, porém escuro. Dias nublados são a estrofe em suspensão. Sem cansaço. Sabia que estava em casa, como há muito não estivera.


Paco de Lucia tocando na moderna vitrola de MP3. O merlot aberto na bancada da cozinha. Noite especial. Ele passou a tarde misturando e sovando a massa. Pela primeira vez decidiu medir as doses. Mas não anotou. Cada item com sua medida. Cada ingrediente no seu momento certo. Trigo, água morna, fermento biológico, azeite e olivas. Sal e tempo. Ele precisava do tempo. O cheiro da fermentação, o ar na massa, a mão que sova a esperança. Enquanto o forno estala ele sonha acordado.




Nadei incessantemente um mar imenso para morrer na praia.




Pelo menos chegou à praia. Ou o objeto de nadar o mar era nele permanecer? Sentir a maresia corroer seus olhos, o sal inundar seus poros, o movimento das ondas questionar suas intenções, e até mesmo sua direção; ter o sol a desidratar suas possibilidades, e a lua cegar você e depois abandoná-lo na escuridão à deriva. Com o ensurdecedor som da arrebentação, e o melancólico barulhinho do mover da água na calmaria.  É isso que esperava? Na praia, morrer é cumprir o objetivo em parte. Erguer-se será transcender e deixar pra trás toda a salmoura, seguir. [Ela brilhava uma sabedoria sem soberba].




Não consigo parar de escrever.  Despejo traços incompletos por onde ando. Escrevo. Mesmo quando não manchei de tinta o papel ou de bytes a tela, estou a escrever; com os olhos na paisagem, ou fechados, dentro de mim. Cravadas experiências e sensações, traços que nem sei se lido será ou se compreendido possível é. Arthur Schopenhauer disse que o estilo é a fisionomia do espírito. Passei a conceber melhor o que sou no dia em que li. 




Uma carroça cheia de discursos passou na rua. Ninguém queria mais aquele amontoado de palavras. O carroceiro procurava um lugar para despejá-los. Todavia, depositar aquela carga classe 4 em qualquer lugar poderia se desdobrar em uma catástrofe. Sábio, o carroceiro seguiu a procurar, mas quando passou em frente aquela casa, não pôde deixar de viajar no dedilhado de Paco. Entendeu que não deveria ficar ali parado. Levou para longe a carroça dos discursos. Cambaleava a carroça cheida dos achismos técnicos, políticos e espirituais. Lá no fundo, soterrados, poemas de amor envelopados, sem abrir. Dejetos não são bem vistos, lixo não traz o nome do dono. Silenciosa batata quente empurrada de mão em mão até chegar à carroça. Cheiro de palavras velhas. O nariz coçava e o espirro era como uma trovoada. As rodas o levaram a seu destino. A carroça voltou leve do aterro. O carroceiro assobiava “entre dos aguas”. 


Não se pode alcançar o cume do olhar dele pela janela. Uma hipérbole que atravessou fronteiras até encontrar lá, além da distância, a razão do eterno retorno. Seu piscar sonolentos olhos selou toda uma era de sonhos e esperança. Ele voltou para a cozinha. Calado, sem canções, sem poemas, cortou dentes de alho, queijo provolone, dourou no azeite, despejou sobre a massa fresca. Comeu sem pensamentos, acompanhado de um vinho libertador.  Pensou seriamente em ir ... mas a lembrança do conta-gotas tirou sua atenção. O silêncio do hospital, a luz impessoal das placas de sinalização interna. Nenhuma que o indicasse o caminho desejado. Perdeu o acesso, ou a bolsa acabou. Importa pouco, pois era então o momento de sair dali. 


A plataforma o esperava. Um faixa laranja no chão marcava onde deveria esperar. Alta noite, ninguém com os pés na água. Chovia lá fora, sem grandes estardalhaços. Chovia e ponto. Os poucos corpos se movimentaram pelo salão sem empatia, sem envolvimento. Tinha no ar um suave cheiro de lêvedo. Uma padaria o convidava para o café. Ele atravessou o corredor determinado a escrever para Paca.


Ele andava vagarosamente, como se tivesse uma trava no corpo. A trava do tempo?, pensou ele efusivo. Caminharia assim, com ela de braços dados, reencontrando-a no outro giro da vida, quando a rotação atinge outra percepção. Iria ela o reconhecer?  Ela tinha um amor pelos animais que ele tentou alcançar. Uma vez ela ajudou um pintinho sair da casca. Com um colher e o cabo de uma faca de cozinha ela o ajudou a nascer. Depois, em uma espécie de frigideira de madeira, o colocou sobre um caixote, bem embaixo de um foco de luz amarela, aquecendo-o. Ele via todo esse carinho com ternura. Embora admirasse os animais, ele ainda não havia alcançado tanto amor assim, a ponto de ser espontâneo, o amor pelos animais. E não o somos todos?  Já não se contava tanto. Bastava o por do sol magnífico que conseguia ver mudar as cores do céu e o contraste com a montanha na curva do horizonte.  Minas foi seu berço, Minas era seu refúgio. 


Toda dor, das renúncias e frustrações. Do corpo tentando cicatrizar cortes tão profundos, era inominável. Parecia que nunca iria acabar. É assim com todos, não havia nada des especial, até começar a fazer falta. O argumento de ser vítima, de se isolar, de estar à parte no pandemônio urbano onde casamento sabe o que fazer de melhor na vida do outro. A dor possibilitava até então esconder no semblante os sentimentos e verdadeiros pensamentos, as limitações de ser pleno no convívio social. A dor era o placebo, mas também era física. O que fariam quando ela acabasse? Ele não sabia. A estranha sensação se apoderava dele às vezes. Era um ir sem distanciar-se, acabando. Sumindo esquecido na cena. 


Afastou seu filho para que não visse o pai adoecer. Enquanto seu pai desfalecia, eles cresciam. À medida em que pai deixava de abrir portas, escrever cartas, fazer jantares, sorrir, ter o semblante leve; ao redor os algozes não percebiam o que estavam fazendo e o culpavam por mudar. Ele se deixou ser morto, por um amor estranho, ou por um cansaço de se debater sem saber nadar, de estar no meio do salão sem saber dançar, de gritar na sala dos surdos, sendo considerado o único cego. Ele que nunca havia desistido,  naquele momento era tomado de uma tristeza tão densa que podia ser tocada. Como algodão doce. Amarga como açúcar queimado, a Realidade o colocou na prensa, espremia ele entre as consequências das escolhas próprias e das que os outros tinham para ele. Naquela carta ele ficou entre se apresentar, contar uma trajetória que deixasse evidente quem ele era, como via a vida, o que sentia. Atravessou florestas de lágrimas em busca do romantismo e amor tão belo e salvador que tinha por ela, mas talvez ela não conseguisse interpretar aquelas linhas, molhadas, borradas do grito da alma. Fez breve desabafo, permitindo que mesmo no escuro a distância fosse tocada, compreendida. Relatou gozos e feridas e terminou a carta com um convite.


Quem era o jovem cidadão a cruzar a rima e deixar aberto o portão? Há muito não recebia uma visita daquelas. Não eram enciclopédias, acesso ao paraíso ou crédito fácil, o jovem queria se apresentar como o futuro representante local na política. Contudo, depois de ouvir sobre saneamento básico, ensino residencial, pró-labore, segurança pública firme, religião controlada;  assustou-se com a proposta da morte da Diversidade, a começar pelas prateleiras das bibliotecas. Interrompeu a conversa, ofereceu água, fechou o portão vendo ir para a casa ao lado aquele que parecia jovem, levar um velho discurso em prol de um cidadão que não existe. 


De volta à mesa, dobrou a carta com cuidado. Com amor fechou o envelope, encerrado dentro do seu peito. Na esperança de que voltasse a pulsar.  


Sempre foi reconfortante as sinceras conversas. Aquelas sem interesse de vitória, de conquista, de ferir o outro. Eram conversas sobre os mais variados assuntos, eram papos que transpassaram as madrugadas, até cadeiras irem pra cima das mesas, até o bocejo ser o convite para última taça, o abraço. 


Lá fora, uma multidão de “lives” adestrava milhões de espectadores, que presos à tela, e escravos da Realidade, esqueceram-se do que um dia estava ao lado, vivo.  Ele foi dormir. Tentou silenciar as ideias. Calou sua dor na madrugada. Sabia muito bem que era apenas mais um dos 7 bilhões vivos, e dos incontáveis que já passaram pela vida. Milhões ilhados em celulares, ou conectados por meio deles. Por mais que se chore e muito se declare. Quase ninguém se ama, se toca, se ama além das imagens postadas em redes sociais. O clichê da miséria social e falência do que se conhece  como grupo, seladas nas entrelinhas tecnológicas, boa suspiros cibernéticos soterrados na enorme, fria, onda; sem limitação de caracteres ou segundos. Finalmente. Ele dormiu.


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