quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Soro - 15ml

 


Precisou sair da cidade por alguns dias para um trabalho simples. Levou consigo a paz, livros e vinhos. Seriam dias breves. Uma construção de pedras bem arquitetadas. Cor creme, eco moderado. Pelas paredes conduz-se o vento frio mesmo em dias de forte sol. Atravessava-se uma ponte, também de pedra, encontrava então um úmido jardim, pista de pouso de borboletas, e ao final uma praça rústica, em que era possível assentar-se e assistir as pessoas, os pássaros, o tempo, quando esse passava. Quando ele passou por ali, teve ainda mais certeza da sua pequenez diante das grandiosidades construídas, das maravilhas constituídas, e da encantadora natureza. 

Vasto mundo. Estruturas turísticas comerciais, emocionais, espirituais; espaços de moradia e transição. Tanto a se conhecer, e vivenciar. Cada qual com sua porção acostumada da vida, do que é possível conhecer, chegar e ir além. Alguns, mochileiros em essência, outros, residentes do mesmo metro quadrado. Todos habitantes do agora. Entrou naquelas padarias típicas em que de tudo um pouco se encontrava; de componentes eletrônicos para celulares a arcaicos instrumentos domésticos. O essencial muitas das vezes está no fundo. Café forte, biscoito de nata no ponto em que derrete rapidamente na língua.

Tudo costumava fazer mais sentido. Se fosse para ser óbvio, ele seria uma bula, com todo o rigor da técnica. O quadro dentro do quadro. Ele sabia transitar, mas até quando iria querer? 

Lives sobre lives. Artigos sobre isolamentos, fronteiras extrapoladas e discursos ocos de uma mente embriagada pela Realidade. Precisava cuidar da sanidade, pois ao seu redor as pessoas doentes alimentavam a doença no sorriso, tentavam contaminar os outros, ao deixar o ambiente todo com a lente da doença. Não o vírus, mas seu hospedeiro o verdadeiro perigo.

Folha 54, livro 45; ele estava habilitado a trabalhar onde estivesse. Mas agora era diferente. Seu ambiente era outro. No quarto escuro, deitado à cama, com fone de ouvido, música alta e pensamento distante. Era ele. Todas as canções pareciam retratar suas experiências ou anseios. Em uma nova dimensão, ele conhecia amores, perfumes e tencionava a lógica, sentindo tudo ao mesmo tempo, naquele agora. Há anos, esta era a única ação dele para isolar a Realidade. Agora não precisava mais do fone, e nem mesmo da música alta. Naquele tempo, ele apenas desejava experimentar das sensações que estava além do agora. Tolo, antecipou rugas, dores e uma percepção da vida que castrou sua capacidade de alienação. No instante em que o tempo não passa, ele então compreendeu o artifício da espera. Junto à espera, a sobreposição das inércias sociais como estratégia de perpassar os núcleos de convívio, visualizar a mobilidade do epicentro do padrão cultural.

O trânsito e o vendedor de pano. O semáforo fecha, é o tempo que muitos precisam. Para conferir mensagens no celular, pra enviar mensagens, conferir o espelho. Respirar. Para outros a angústia na ponta do acelerador. Para eles parar era um atraso de vida, para o vendedor de panos, a oportunidade. Enquanto uns olhavam para o sinal e acelerando, torcendo para o verde não ficar amarelo; outros não viam a hora do vermelho dar passagem a possibilidade de ganhar o pão de cada dia. O vendedor de pano o ensinou mais sobre espera e pressa. Parado, com o carro na fila, observou o ritmo do vendedor, e a receptividade dos motoristas. As cores e sons e o conflito das intenções, concebidas pelo famigerados pré-conceitos. Ele nem os tocava, seguia conforme possível era. Comprou 5 panos de prato, um pano de chão; já não entornava muito as coisas, mas precisava manter limpas as mãos.

O processo. A ladainha dos pormenores, o encanto dos detalhes frutos do esforço. Melhor resultado é o processo, pois o desfecho é tão volúvel, instável, e perecível. O processo fica marcado. Ele atravessou o processo como quem ultrapassa a densa fumaça sem respirar, sem parar, sem enxergar.

Chegou em casa sem pressa. Subiu para descansar, renovando o vinho, o livro, o caderno de anotações e um pedaço de pão. A corrente de ar parecia trazer algo mais no oco do vento úmido, mas o que ocorria era o despertar de pensamentos por associação de sensações de outras experiências. Cada detalhe ao redor despertava nele a lembrança. Cada gesto dele acrescentava ao passado mais significado, mas não projetava para o futuro. A pedra fria da pia, farinha de trigo e vinho. A levedura, o cheiro, o calor, a espera. O provolone sendo cortado lentamente, os barulhos ao redor sumindo de sua cabeça, as imagens ficando estáticas, desfocadas e distantes, ele cada instante ainda mais dentro de si. Viu isso, e era bom.

Azeite e palavra. Temperatura, tempero e silêncio. Ele dosava tudo no olhar e na intensidade das mãos preparou o pão. Sentou-se na varanda para esperar ficar pronto. Enquanto isso, pegou o livro surrado que comprou no sebo, em uma barraca que funcionava dentro de uma feira. Capa cansada, bordas com sinal de muito manuseio, páginas dobradas, marcações; um total desassossego naquele desarranjo temporal. Era seu autor predileto. Lia pausadamente, enquanto o vinho percorria sua garganta, descia pelo esôfago até o estômago. 

As moléculas de etanol absorvidas entram no sangue e outras vão para o intestino, onde absorvidas também se integram à corrente sanguínea. A viagem do vinho dentro dele era intensa e rápida. Pelo sangue, percorria todos os tecidos do corpo; fígado, rins, cérebro e coração. Dilatação de vasos, restrição de filtros mentais. O álcool. Parte vertia do corpo pelos poros, atrelados ao suor que interrompe aquela fala para ser limpo. Um pouco era exalado na respiração, como o suspiro do poema que dói. O que não sai pela urina, vira o andarilho de Nietzsche rumo ao eterno retorno. No fim, gás carbônico, água e mágoa. Até que o fígado consiga eliminar o álcool e seus poros despejarem o que não cabia nele. A mágoa, no entanto, era afogada. A bebida era o gatilho do pensamento encadeado de sentimentos. O cheiro da rolha marcando as esperas da maturação; o rótulo escondendo a história entre as eiras da vinícola. Como a fila de dominós a cair, o vinho era a primeira peça à mente. Corpo em reação, mente transubstanciação. Ele permanecia em paz.

Ele olhou ao redor, quieto. Era como se algum sentido fosse saltar das coisas. Das capas dos livros, das receitas mal anotadas dentro de um livro, dos antigos pertences, das lembranças e suspiros. Não é que ele supervaloriza os sabores, cores, sensações e desdobramentos; mas trata-se de não depositar toda a energia e relevância em um instante que nem ainda existe.

Sentiu mudar a pressão do ar. Tinha ciência de que fora dele, todos se submetiam à Realidade, de uma forma ou de outra. No entanto, como ele, ninguém. seu pensamento ultrapassou fronteiras, até chegar a ela. Encontrou-a ouvindo Weder, enquanto alcançava Bhujangasana, tendo passado por Padmasana, da pinça ao camelo, até terminar na pose de criança. A distância era só um fundo desfocado. Seja de frente, ou de perfil, Paca tinha o olhar penetrante. Ela não fugia com o olhar. Apontava-o diretamente. Bailava no ar, com gestos, hábitos e um jeito tão verdadeiro de ser. Ele se encantou desde a primeira vez. Escreveria para ela naquela noite. Embora talvez ela nunca fosse ler.

A sutileza dela dormir não cabe num poema. Muitas experiências não podem ser representadas por um texto. Há alguns lugares que acolhem a mente, mas são indescritíveis. Principalmente quando estamos diante de uma situação sufocante; a distância. Que nos desfaz em cada detalhe, cada sobrepeso de responsabilidade, cada frustração que brota no chão. Como caminhar descalço sobre os rasos corais em uma praia em que a profundidade é sempre a mesma. Ele percebia. Não imaginou o que viria. Dias de sol sem poder caminhar, dias nublados sem poder assistir um filme e roçar nos pés dela. Talvez Paca tenha se tornado a Dulcinéia, ou o Santo Graal. Ou a esperança de felicidade de uma linha temporal alternativa, que ele sabe da existência, mas nunca iria acessar. Sua salvação no encontro. Sua perdição na busca. Sua paz no sonho. A distância então o golpeou, como o pássaro que ataca o reflexo na janela em um voo suicida.

Um amontoado de livros isolava do mundo o que ele pensava alto às vezes. Por horas cheirando as páginas antigas em busca de uma novidade, que breve como emerge o sentido da palavra lida, o salvasse do impasse da vida que tinha. Uma série de tosse em meio ao cheiro de cânfora revelava que até ambientes novos podem atacar as mais brandas rinites. Seu corpo o distraía das questões elementares interrompendo automatismos. Engasgou com a vírgula de suas escolhas. Não era o espelho ou o universo a confrontá-lo todas as manhãs. Ele aprendeu à sua maneira. Desenvolveu seu traço, mas não ficaram rastros brilhantes, apenas aqueles que se confundem com o dos outros, tornando cansativa e desinteressante a jornada atrás deles. Preparou para si um café bem forte. Com um gole inundou seus sonhos.


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