quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Soro - 19ml

 

Quão suave a sensação de um peso ser retirado de seus ombros. De suas costas; e você desconhecer o peso, mas ter fé de que quem o retirou, o fez para seu bem. Ele amanheceu com mais ternura no olhar. Em lentos instantes intensos ele percebia. O peso reduzia ainda mais. Era bom respirar o ar fresco das manhãs. Leve, era possível perpassar lugares, versos, escalar estrofes, montanhas, contornos, curvas, poros. Cobogós da alma. Passaporte na estante, documentos na mala.


Suas viagens tornaram-se algo mais que um passeio. Ele nunca havia estado ali. Lembrou-se de um restaurante à beira da estrada, com seus decks sobre lagos, mas aquilo ali era diferente. Longínqua extensão de madeira sobre um lago, contando ao meio a paisagem de bosques, brejos e água, muita água. O sol não apressava seus passos, tampouco o vento o freava. Com parcimônia atravessou, sem fazer fotos, sem dar vazão às lembranças. Era passo e sentimento. Endla estava ainda mais natural. Afora a névoa das manhãs. O frio, a distância o aproximava. As ideias às vezes se organizam como uma floresta. Caminhar por ela é assumir uma pequenez, vulnerabilidade e falta do senso de direção, de visão a respeito de onde começa e onde termina. Atravessou campos sem montanhas, cidades modernas e povoados pacatos. Cruzou o mar rumo ao seu continente, pois o seu retorno era a continuação da ida. Duas poltronas à janela. Vinho e torradas. 


Varreu silenciosamente os cômodos da casa retirando mais do que poeira. Não estava cansado, mas de certa forma sentia estar próximo de algum acontecimento. Não sabia se seria destes que marcam a trajetória, ou se era daqueles que a interrompe. Se alegre, rumo à paz e felicidade, ou se entregaria ao desespero suas preces. Ele não se preocupou. Sentia cada vez mais leve. Cada vez mais, menos peso. Não pensou nela. Sua xícara de café gerava muito mais do que epigenética. Transportava suas ideias no silêncio de um dia que começou frio. A paralaxe dos argumentos movimenta a sociedade e alimenta seus conflitos sem as pessoas perceberem.


Era versátil, sempre foi. Aprendeu na prática o funcionalismo do mimetismo, dos automatismos e da quebra de paradigmas. Não precisa utilizar as máscaras sociais que abafam não a respiração, mas a essência. Ele era pura essência. Em esperança, em paz. A melancolia fora lançada sobre a Realidade, e esta não mais podia o tocar.


A sensação de leveza o trazia aconchego. Algo aconteceria. Embora não soubesse o quê, tinha a certeza de que bom ou ruim era o que deveria acontecer. No entanto a paz em seu espírito indicava que seria algo bom, pleno. A serenidade se apoderou dele com uma maturidade. Isto não significa que sua irritabilidade desapareceu, mas que ele a controlava, nem que fosse mordendo maçãs. Sobre a mesa de centro, a bola de metal contorcido era o elo com quem um dia ele foi.


Um passo não é maior do que as pernas. O pulo às vezes o é. O pulo envolve entrega. A ousadia de tirar os pés de um lado sem ter nada mais que o vislumbre do firmamento da queda. Repouso dos pés. O passo é razão, o pulo é um passo de fé. Se tudo o que é sólido se desmancha no ar de Karl, tudo o que está no ar, em algum momento há de entrar por nossas narinas. E o que será então de nossas (tão nossas quanto dos outros) ideias? A pureza das intenções e a rispidez das ações. A morte da inércia e seu renascimento. Teimosia não é persistência e muito menos perseverança. Perdas e Danos. Clichês. Dionaea muscipula. A inércia é rompida. Lágrimas teimam em escorrer. Para obter a beleza das flores, fere-se a terra, trata-se do ferimento com matéria orgânica em decomposição. Mata-se a vegetação competitiva. Para despertar sorrisos, arrancam-se flores. Se deixadas ligadas ao solo, em breve murcham, fechando o ciclo. Mais matéria orgânica. Ciclos fechados não possibilitam transcender, e a Realidade sabia disso, sem saber um modo eficiente de torná-los perenes. Ele estava livre dos ciclos. Pulou.


Mesa para dois. Sentado no canto do bar, estilo pub, quase uma taberna. Pediu primeiro um café, para abrir as ideias antes de fechar os sentimentos. Observou que do outro lado, um idoso de brilho nos olhos sorria timidamente ao acaso. A pele cansada de apanhar da realidade, os lábios ressecados, após tanto pender palavras, esvaziando-se diante da profundidade das pessoas rasas. A ponto de desistir. A realidade o sustentava pelo cruel fio de vida, forçando-o a vivenciar todas aquelas mazelas, geração por geração. Pensou em chamar o velho para um trago, porém o fardo já estava selado. Acenou, como se o reconhecesse, e saiu levando as rugas e o silêncio. Café terminado, sua caipivodka chegou acompanhada de uma mini tábua de frios, e mandioca na manteiga.


Contemplar não era a única ação dele naquela noite. Todavia, o instante não havia chegado. Neste ínterim, contemplava os casais e os suspiros clichês dos olhares e feromônios. Os embates das gerações, os conflitos de relacionamentos em crise à silenciosa mesa. O casal dançando no centro do salão. Corpo no corpo, o balanço do verso à meia luz. O senhor respeitoso, a senhora aconchegada no movimento do corpo do marido. Era bonito ver como diferentes águas se encontram formando o mar. A música os balançava semelhante às ondas. Ninguém assistia. Ele contemplava a todos como quem vê o próprio corpo no espelho, submetido aos argumentos da Realidade. A desilusão pode alimentar processos criativos conforme pode afundar as pessoas em um processo melancólico de distanciamento e ruína. Não era o que acontecia ali. Ele podia sentir o chão e ainda assim não perceber peso algum. Ele podia sentir seu corpo, sem ter nos ombros nada; nem patente, nem correntes.


O cheiro de canela vinha da madeira do balcão. O perfume agradável, que o pescou, vinha da altiva, porém momentaneamente cabisbaixa, mulher de lábios vivos. Ela lia um livro cuja capa ele não conseguiu identificar. Quem leria à meia luz de um pub? O que leria?


Seus ombros não estavam pesados, mas suas pálpebras o traiam. Não correspondiam à vontade de se aproximar, de estar acordado. Ele insistiu. Precisava mais do que compreender, mas se envolver com aquela mulher tão especial, ainda sendo desconhecida, ele sabia o que sentia, e engano não tinha poder algum ali. Era mais que desejo, era o encaixe perfeito, a integração entre sonho, possibilidade e circunstância. Chegou perto dela, a ponto de ver intimamente a tatuagem com a face e poesias de Dali, o contraste na costela. Quando percebeu que ela o olhava profundamente, tropeçou em si e caiu dentro do livro, afogando-se nas páginas. Não compreendia como tantas palavras surgiam o distanciando do significado. Letras e letras em quilômetros, abarrotando metros cúbicos de sílabas. Acordou atônito. O cheiro de canela emanava do café à mesa. Duas xícaras e um livro.


Era o pássaro. Lutando contra o vento. Batia as asas tentando o movimento e encontrando apenas a resistência. Ele observava, era o que mais gostava de fazer, agora que vivia fora do alcance da Realidade. O céu anunciou a chuva. Seus lábios ainda ardiam. Mordidas sinceras o interessam. Explicações não cabiam. Ele rompeu não apenas a força do vento, mas conseguia transitar pelo pub sem tropeçar, sem se censurar. Era o pássaro cravado em sua pele. “Um pássaro livre que não poderia mudar”.


Um pombo no telhado. Apenas um pombo. A silhueta de um homem no alto de uma construção o chamou a atenção. Era mais uma moradia rumo ao céu. O pombo o distraiu, e contra a luz do sol ele corria para espantar o columba livia que teimava em marcar a massa fresca. Ver de longe aquele baile era a diversão das manhãs de forte sol. Ele estava sóbrio. Decidiu ir à feira, pois ao escritório não iria mais. Com uma sacola feita de lona, saiu a pé em direção à praça, dobrando a esquina, rumo à feira. Chegou sem saber como. Foi direto à barraca de frutas em busca do que poderia harmonizar com sua noite de filé, pimenta, manjericão, vinho e risadas. Abacaxi.  


Faca afiada gerando fatias, cubos e pequenos pedaços. Panela no fogo, molho borbulhando e forno aquecido. Nina Simone cantando para acalmá-lo. Manteiga derretida, lâminas de alho perfumando a cozinha. O instante correto de entrar com cada ingrediente. Não uma receita, mas um sentimento. Pimenta do reino moída na hora, colher de pau, pano de prato surrado, mas limpo. O alimento brilha no prato limpo. A textura forma uma paisagem na louça. O cheiro perfuma toda a cozinha e a copa, abrindo o piloro, trazendo os corpos à mesa. Os sons, como a famigerada cena de Hair, ou a canção Panis et circenses. Talheres apenas, palavras depois. Olhares nas entrelinhas. Plano e contraplano com ela. Ficar calado deixou de ser a opção, pois ela não iria sair dali.




Extensa carga cultural atravessa a maneira como a sociedade se organiza. Não pára mais para comer assim; cozinhar então? Transição de comportamentos, tecnologias e interpretação da vida. Soterrar sonhos, pisotear os jardins das individualidades calçados de ego. Viver não é para amadores e isso muita gente diz. Pode-se passar ingenuamente pela vida, mas não pode ignorar as implicações de se estar vivo. E não existem amadores.


Fácil falar quando se está na sua posição.


Acontece que não a escolhi, tampouco penso a respeito de escolher se estar onde se está. Todavia não renego o que sou.


Não é suficiente.


Quando é?


Não delegue ao tempo tamanha responsabilidade. Ele nem sabe se passa. Tampouco pense em envolver a distância como argumento. Você se esquiva.


Você sempre me superestimou.


Não sabe o que fala.


Já se ouviu?


Já viu além do que você representa?




Não havia hostilidade nas falas, embora ela entoasse certo desconforto e desespero. Ele permanecia sóbrio, elegante e satisfeito com os sabores à mesa. A sobremesa era o próximo passo. Entretanto não seria à mesa. Foram para a varanda, lá do alto, perto do muro limítrofe. Portais de madeira, cortinas brancas nas laterais, um balanço à frente. Confortáveis poltronas de palha de bambu. Marrom e branco. Trouxe junto da sobremesa uma manta para aquecer. Um bolo compacto, chocolate, de densidade e consistência intensas, sem pesar o estômago. Brownie. Trouxe o tabuleiro, com o potinho de sorvete de doce de leite, com pedaços, sem muito açúcar. Lamber os dedos e o pingo que foge ao queixo. Iluminação que gera aconchego.




A paisagem que atenua seus pecados diariamente é corrompida com seus pedidos de perdão. O frescor que toca sua pele dificilmente alcança sua alma. Embora seus ombros estejam leves, há certo peso no seu olhar, a certa profundidade nas pegadas que deixa por onde passa.


Inevitável deixar marcas. Pois até mesmo quando penso que não; estou a fazê-las. No entanto em você nada fiz. Ouvi sua tosse, senti sua pele, seu perfume, sua risada. Seu olhar no relicário me trouxe a certeza do que sentia, do que eu sinto. A espontaneidade de sorrir e não se importar, mesmo que tenham talhado o molho de queijo gorgonzola. O que comemos naquele dia foi pano de fundo para as trocas. Uma conversa íntima, a primeira, e foi como se nos conhecêssemos além do que o tempo. [Tocou seus cabelos vendo os dedos sumirem, inclinou a cabeça para cheirar seu pescoço, sua nuca, torre de marfim. Paladares se misturam. Expectativas são vaga-lumes rondando a copa da árvore.]


Está me confundindo.


Eu sei que Paca não é Realidade. Eu sei quem é você.


A ressaca da memória dos dias tristes o impedia muitas vezes de compreender que o momento era outro. Como escrever palavras belas com os dedos sangrando, com o coração e a mente cheios de uma dor atemporal? A morena de olhos de ressaca o observou no mercado. Fermento biológico. Quem compra fermento biológico à noite? Fermento e queijo defumado. Ela deu o troco sem contar as moedas. Sua atenção estava no que ele levava dentro da sacola. Ele não se importava se as pessoas se interessavam ou avaliavam suas combinações. Nem toda sobremesa deve ser apreciada depois do jantar. Algumas cabem bem como entrada, e um espresso. Assim as palavras. Algumas não devem ser deixadas à mesa, nem no final. Devem vir logo de entrada. Ele as entregou para Paca, de primeira, no relicário. A Realidade interviu. Ele sofreu. Resignado em sua insignificância. 


Queijo defumado, mel, pão caseiro, merlot na taça. O formigamento que domou seu corpo, poro por poro, o repousou na rede, com vistas para as estrelas.


Deliciosa a sensação de estar cada dia mais leve. Com direito a espasmos infantis de sorrisos espontâneos logo pela manhã. As canções tinham um movimento diferente no corpo dele. Não temia a Realidade, não mais estava submetido a ela. Percebeu que a intensidade mudou, talvez o amadurecimento com a idade; mas não. Era outra coisa e sabia que não era doença. 


Clichês derramados no mataborrão da vida. Cada luz com uma história, cada solidão um silêncio e nele um texto, cada escuridão a ansiedade da sensação, das sensações. O entendimento assim como o sentido, extrapolam as lógicas de uma sociedade contemporânea. A mancha da xícara diz mais que teu olhar a rondar meus pensamentos. As construções têm mais que tijolo e massa. Significado. Café para dois.




O mundo está cheio de lugares que nunca conhecerei, pessoas que nem saberei que existiram, o que fizeram, por onde passaram. Há lugares dentro de minha casa que ainda nem coloquei meu olhar, anos se passaram. Díspares arredores, não posso me render. Mantenho-me distante da Realidade, enquanto ela me rodeia, a sufocar-me com arredores díspares de olhos fixados, alienados na rede social e vida de terceiros; e eu sigo em meu isolamento, protegendo-me com minha membrana, tensão superficial. Sutilmente, meus anjos, em compasso os corações, recebi a paz, intangível, que você realidade não pode tocar. Díspares arredores ruidosos de um amor calado, de uma convivência usurpada. Descalço, integro-me ao jardim; desapareço na noite até que o orvalho me amanhece.




Sublime olhar. Cativante semblante. Ela é um anjo com todas as perfeições e imperfeições. Não uma santa, mas um anjo. Inspiração das belas telas de Dali, dos poemas de Pessoa, das mais especiais canções, dos inexprimíveis acordes. Ela despertava nele o que existe após as expectativas; a certeza.


Díspares arredores; olhares arredios. Altivez de arqueadas sobrancelhas; a lógica da psicopatia social, silenciada pela chuva, fossilizada na pele no voo de um colibri. Girondino café em uma tarde entre cortinas. Ela juntava-se a todas; juntas em um só ser. Ele ficou de olhar fixado na imagem dela.


Seu sorriso era capaz de iluminar o dia e aquecer a noite em aconchego, e transportá-lo para a vida. Contudo, a distância, juntamente com a Realidade a conduziu aos braços de estereótipos da cultura, da intelectualidade, e ele ficou resignado à possibilidade do que nunca foi. Tantos planos; tantas canções e suspiros. Ele mudou. Mas quando o café está frio na xícara, não adianta coar novamente. Quiz acreditar em um amor coldbrew que venceria a distância e o tempo. Cruel, a realidade ria alto, esganiçada, mal criada. A Realidade usava máscaras para esconder a falsidade e a fragilidade; para conter e filtrar as palavras. 


A seringa translúcida anestesiava o corpo depois de queimar as veias. O amargo do remédio chegava até a boca. Ele não queria mais as enfermeiras da verdade, embaralhando prontuários, distribuindo seringas sobre receitas. Ele não foi para se curar. A Realidade sabia.




Tudo tão branco. A sala de espera. Não percebemos que estamos nela enquanto nos imaginamos livres. Esquecer é uma benção para quem esquece, mas um fardo para aqueles que se lembram.




Ele não tinha esse privilégio. Persistia atento, sensível. Mesmo que ninguém o compreenda. Ainda que sua arte fosse vã e apenas relevante para um pequeno grupo. Ele sabia que a sinceridade não era soberana, que melindrosa na massa, funcionava melhor em grupos pequenos. Quem tem escolha? Quê? Cada um em compasso próprio. Rebeldia dos impacientes; aflição dos imediatistas. O ser humano perambulava diante dele, cada um na pura versão, egoísta.


Ele não tentava entender, mas respeitava. Era pouco remédio para tanta dor. Muita canção para poucos ouvidos. Pouca liberdade para tanta escravidão. Muita tentativa para pouco pódio. Desespero de corpo. Crueldade da rima. A Realidade achava-se soberana. Transfigurava-se à medida em que tudo mudava. Estava em seus últimos recursos, não havia margem para outra tentativa com ele. Ela sabia. Ele recostou a cabeça na poltrona enquanto imaginava.


Tantas tonturas, tantas texturas. Quando ela saiu, ele não a reconheceu. Era outra. Tanto contexto e tão pouco respiro. Outrossim, Paca estava viva dentro dele. Não uma lembrança, ou prisioneira, tampouco um devaneio, possessão ou premonição. Ele sentia a conexão. Paca estava viva dentro dele. Embora ela não sentisse o mesmo. A Realidade pensou em humilhá-lo. Embora ela não fugisse dela, mas sobrevivesse.


A Realidade não o acessava mais. Nem para humilhá-lo. Ele preparou o café com parcimônia e comeu acompanhado de um queijo meia cura. Manhã e tarde. O balanço da rede e sono intermitente. Malbec e queijo curado. Sorvete de amendoim com chocolate. Sabores suaves. Crocância histórica. Nada acentuado. Equilibrado, o ambiente antevia seus gestos. Concentrado. Ele estava entregue e nunca mais a Realidade iria o subjugar. Não sentia o aperto no peito. Não sentia o gosto da mágoa. Não encontrou porta de saída. Apenas soube não estar mais lá.




Caminhei pelo salão vazio daquele lugar. Corredores escuros ou mal iluminados de um porcelanato hospitalar. Outrora estive nas ruas, escuras, unidas. Ouvindo de longe o grito dos feirantes. Ruminavam. Ela cortinou de luz e depois fechou meu céu. Meu cansado coração pesou. Eu a vi desaparecer diante de meus olhos. Primeiro suplicando misericórdia, com marejados olhos avermelhando-se no canto. Depois, indo.... esmaecendo .... partindo e deixando pra mim um olhar vazio. Eu não mais a reconheci. O tempo nos engana enquanto nos movemos. Como a lua nos persegue no céu. Sem ao menos se aproximar. O beija-flor, atravessou o cobogó, pousou no fio, sob a chuva branda. Olhou para mim, até que eu o reconhecesse. Voou ao meu encontro, e foi além do meu horizonte. Minha costela ardeu.




Caminhar de olhos abertos. Sentir o vento, o frescor e leve rubor. Aquecer o corpo no atrito. Experimentar os antônimos de todas as mazelas e dores. Num instante, no voo certeiro do colibri. Por instantes pensou como seria envelhecer longe dali. Catas Altas, Alto Caparaó, aeroportos. Um dia em Vieste, tranquilo, percebendo o anoitecer em uma taça de vinho, tendo a vista do Adriático como refúgio de suas lembranças. Melhorar, mas não alterar os sabores básicos. Pratos brancos gastos, forros surrados mas limpos, feitos à mão. As viagens eram eternos retornos aos paradoxos que criou enquanto envelhecia. Desde o nascimento, até o auge dos movimentos limitados. Mover a carne cansado ao vento tornou-se um exercício não mais automático. Movimentos pensados no paraíso da Puglia. 


A Realidade e seu compasso descabido. O desejo de controle, de brincar com as realizações e anseios alheios, de colocar freio em potenciais e sobrecarregar talentos para desfazê-los. Uma briga de egos em escalada; não percebem que junto com os corpos, muito mais cai.


Cada um diminui o sofrimento do outro. Tornar a dor em amenidades permite que cada qual mantenha a luz de palco em si. Quando se tem saúde, é o que desejam tirar de você. Quando sorri com leveza e facilidade, é isto que tiram de você. Quando se tem dinheiro, retirar de você via tributos, boletos e interesses escusos de quem o circunda.


Lapso do tempo ter possibilitado envelhecimento à distância que assim perdeu sua elasticidade e então permitiu uma experiência outra; que a Realidade não consegue perceber, tampouco compreender. Ele sentia o seu lugar na história, mas isso não enchia seu coração, todavia o deixava sozinho dentro de si. 


Vago, perdido na distância e insuficiência. Tinha distância mas não havia espaço. Abriu a boca e sentiu a pressão nos ouvidos. Engoliu a saliva e voltou a ouvir novamente. Era como se o ambiente se adequasse aos pensamentos e sua mente orquestrasse tudo. 


Uma rachadura na tela dos contrastes. Um limiar diferente dos que os livros prometeram. Uma canção que completa os poemas de uma madrugada longa. Jorravam ao redor e dentro os efeitos... ele soube, mais uma vez, tudo estaria diferente.  Escorreu pela janela a gota concisa dos seus argumentos, os sonhos, a esperança, a vitalidade de suportar a gravidade. Gravidade. Épico dia de levezas pueris, a seriedade da vida diluída em um equipo. Um coração de cicatrizes, à leitura em braille, só se encontra amor; mesmo tendo dor nas entrelinhas; encontra-se apenas amor.


Belas curvas da carne na roupa. Tons variados, perfumes diversos. O magnetismo dos reflexos. O sol estava lindo com sua contendeu calor sobre os objetos. Certa beleza e paz vinha do desfile da luz sobre as árvores, através dos vidros, pelo granito do corredor. Ele sabia que o som de seus passo tinham o peso do seu cansaço. Urgências coletivas são bandeiras. As efetivas são individuais. E as pessoas lidam com elas no âmbito coletivo, mas o viés final sempre é individual.  Que tarde de adjetivos e onomatopeias! Ele por um mínimo instante até pensou que tudo mudará. A dança que não anuncia o próximo passo, o clima que muda repentinamente e fez de nuvens um teto acolchoado. Choveu intensamente. Setenta e sete minutos. A mudança de um dos três pólos da terra. Ele sentiu. Mudanças irreversíveis; estavam na prateleira de cima, mas ele sempre tropeçou nelas ao chão. Os ponteiros não davam conta do tempo. 


A névoa desceu a montanha silenciosamente. Ele via de longe, sem saber que ela chegaria até ele. Estava preparado. Sem intercorrências, seus pensamentos consonantes aos sentimentos e às sensações. Enquanto transpunha as ruas, na janela lateral do carro percebia a névoa continuar a descer, cobrindo estruturas e emoções. Ela veio com densa, com um frio e frescor, permitindo um calorzinho vindo com a luz do sol. Ela veio úmida. Cada gota um sorriso. Um modo diferente de vivenciar a natureza, o movimento da vida. Saiu dos caminhos conhecidos, se desconectou do último fio. Parou o carro na ponta da estrada. Não havia porteira ou cerca. Penetrou a mata virgem, guiado pelos sons.


Quando o sol atravessou as nuvens naquela manhã encontrou seu corpo estendido. Sua pele sobre a pedra levemente aquecida pela manhã. Seu corpo em contornos, como os relógios da persistência da memória. As formigas respeitavam a distância, os insetos não chegavam perto. Leve, a brisa balançava as flores, violetas, azuis, vermelhas, lírios, flores selvagens, amarelas e laranja. O corpo dele permanecia imóvel. Do alto da árvore o colibri o fitava. No mergulho do voo, passou perto de seus ouvidos, como quem conta um segredo. Ele abriu os olhos. 


A gramínea fria da manhã, o som solitário mas ensurdecedor da cachoeira. Lavou o rosto na margem. Bebeu daquela água cristalina. Os ruídos tinham a mesma intensidade. Equilibrada. Nada destoava do que se esperava que fosse. Se o comportamento da sociedade refletisse aquele instante, talvez haveria lugar para a Realidade em sua vida. O som das muitas águas. O brilho das pedras molhadas. Ele se permitiu a entrar naquelas gélidas águas. Sentiu o peso da água sobre seus ombros, o protegendo, limpando-o das mazelas sociais, dos rótulos e expectativas. Tirando de sua mente todo sofrimento, iluminando suas ideias e o fazendo concentrar em sua respiração; embora tão automática e espontânea, carregava a complexidade da existência. Asas de borboleta e tempestade. O cheiro de café ainda forte nas narinas.


Conseguia a ver perto dele. Ela tinha a pele suave. O sol exitava em tocar com firmeza, então ele perpassa cada poro com elegância e certa comoção. O vento freava, e paulatinamente acariciava cada curva daquele monumento de beleza que encanta pela leveza sustentável de ser. Ela plena em seu momento yoga. Ela caminhou ao sol, fez carinho nas flores e tinha um encanto de sorrir com os olhos, que era capaz de suspender o tempo e revirar a Realidade. Ele conseguia vê-la, mas não tocar.


O agradável calor da manhã remetia a um abraço. O sutil balançar dos galhos era dança, era afago. Suspiro era poesia diante do céu límpido, de poucas nuvens, fazendo silhuetas à luz do sol e a lua bem ao canto, ainda à vista, os pássaros voando sem grandes pretensões; viuvinhas, bem-te-vis, e perpassando os pensamentos, o rasante voo do colibri.


Cheiro de canela. Casca solta no chão, formigas nas rosas selvagens. Percebeu a vida. Improvisou um fogareiro, lenha estala, água quase ferve, café com canela. A paz tinha cheiro naquele jardim sem dono.



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