quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Soro - 20ml

 

Ele lembrou das histórias que contou para seus filhos antes de tudo. O leão e o colibri. O peixe azul na saga em busca da bola. O leão que espantava a todos e a quem todos temia; até que o colibri chegou bem perto. Qual o motivo de todos temerem a mim? Talvez seja porque sempre está a rugir. Mas não sei falar de outra forma; e você porque não foges. Não teme? Bem perto da boca do leão diz o colibri: Aprendi a vivenciar o medo.O papagaio. Um papagaio lindo. Verde intenso. Psittaciformes com um potencial de vida imenso. Rasgava o céu com sua formosura, absorvendo do ambiente o melhor e ecoando fascinação, até que caiu nas armadilhas das palavras. Em cativeiro, desaprendeu a liberdade na confusão de assobios, sílabas, gargalhadas, ruídos na madrugada, pão molhado no café, asas cortadas no chão. Uma poesia sem sentido repetida ao vento. Na solidão de décadas. Lembrou do sorriso dos filhos ao ouvir as histórias. Isso a Realidade nunca conseguiu tirar dele, tampouco imputar sofrimento.

Razão do amanhecer. Porta-retratos brilham. Sem peso. Seguindo o ritmo dos dias, mas no meio dos minutos, o aperto no peito e a desfiguração da natureza humana diante de si, o fez piscar os olhos e perceber vazios; porta-retratos. Ele acordou com o resto do gosto de um café bem forte. Era a ressaca de quem dorme de olhos abertos. Sua moka estava sem cabo. Com as mãos nuas preparava o café, com um pano de prato surrado, mas ainda aveludado, pegava-a quente e vertia café à xícara. Era triste, em um dia tão lindo, de frescor, calor aconchegante do sol da manhã, bela paisagem e danças dos pássaros, o ser humano definhando em suas próprias mazelas comportamentais. A necessidade de hierarquizar pontos de vista, castrar o sorriso dos outros em função de certa acidez interna. Ele viu, com certo distanciamento, os ciclos da dor se renovarem. Percebeu a atrofia de entendimento dos que o circundam, e entendeu que o mundo está cada vez mais constituído de continentes daquele perfil, e que ele, assim semelhante a milhares, era mais uma ilha, sumindo no evoluir das marés. Culpar a lua? Ela não revela sua face oculta, porque só é oculta para quem se mantém à distância.

Cada parte desanimada. Impossível contextualizar os pedaços. Outrossim os anjos são a sobrevida no cansaço. Sentiu, o corpo se entregar, função após função, rumo ao abismo que alimentamos desde a infância. Distante. Distante. Distância entrou nele e se multiplicou. Percebi que ela era só Distância, dos sonhos, da sensação de prazer, da sensação de estar descansado. Ainda assim ele estava em paz. Estranhamente o colibri o seguia. Entrava pelo telhado ou pela janela e pontuava o instante com sua presença.

Intrigante, o pássaro não se limitou ao tempo, não se restringiu às fronteiras; fluiu de uma forma silenciosa, sutil, na paisagem. Chegou à esplanada, encontrou Paca, mas ela não o percebeu, não abriu a janela para ele. O colibri ficou dias, noites e luares pousado à janela de Paca. Até que no rompante despertar foi com o vento. Alto mar, profunda cachoeira; a noite dos escritores na rua da Bahia. O colibri sabia que não ainda havia palavras aptas a suportar seu texto. Então se calou de vez. Retumbante e reluzente pouso silencioso. 

As canções intensas embrenharam-se pelos poros iam além dos cílios auriculares, as ondas sonoras movimentavam dentro dele. Ele compreendeu que se tornou, antes de se libertar, uma pessoa que o deixava em desconforto, desalento. Pedia perdão sem ouvir a resposta. Acreditava que sua redenção não seria possível enquanto fosse torturado e moldado pela Realidade. Porém, agora, ela já não tinha sobre ele o poder de outrora. Ela tropeçou no fio da navalha , ele cuidou de suas feridas antes de partir. O colibri, calado, a tudo observou. Ao certo do que de perto sente e ao largo antevê, o amor sobrepunha a distância e ignorava o tempo.

Tomba e escorre pelas frestas penetra; a matéria transfigura-se além da lógica; o passo do tropeço é dança dos incautos; explicar ruminar sem precisar, um voar sem asas no asfalto quente. Tombado, selado. O sentimento lacrado na palavra soterrada por tanto cotidiano. 

Modelos matemáticos movimentando a natureza e sociedade. Toda fórmula já foi devaneio. Todo texto foi pretexto da manifestação de um sentimento que pulsa dentro de nós. Antes de calcular movimentos e interações de matéria, massa e elementos, tudo foi ideia borbulhante no caldeirão do caos, ou na calma superfície fria do equilíbrio emocional.

A mistura. Tons sabores e ruídos. Corpos. Carnes com tonalidades diferente por fora, mas por dentro do mesmo jeito. Carne, semelhante à gados, ou qualquer criação. Muda a cor da derme e o peso do bolso, mas o sangue ainda é sangue. Não se pode recalcular o passado, mas a base de dados pode ser ignorada ou reinterpretada para os cálculos presente de um futuro em efervescência. Outrossim,  enquanto muitos sofrem por estar desconectado a ela, ele de forma plena passou a transitar. Lembra do começo de sua libertação, quanto passou apenas a flertar com a Realidade. Tinha instantes de raiva, tristeza, conforto, comodismo e euforia. A Realidade não confessa, não se dobra, não parece se preocupar com ninguém, mas dele... sentia algo. Pois a maneira como ele se dissociou dela era peculiar.

Vaidades despencaram dos telhados, como uma chuva de sapos, socou a cabeça de quem estava nas ruas, nos escritórios, nas calçadas. Ele ainda respirava. A sensação bucólica de estar além, livre da frondosa estrutura de egos em um processo de canibalismo. Ele ainda se encantava com as amenidades de uma xícara de café quente, sem açúcar, com afeto.

A luz do sol atravessou a janela do carro. Não o ofuscou. Não o aqueceu, mas encantou seu olhar sobre as árvores, silhuetas das montanhas, bater de asas de pássaros, ir e vir de pessoas. A recorrência de palavras não era limitação do seu vocabulário, mas a repetição da vida ao seu redor, dentro dele.

Intercorrências do cotidiano. Tudo começa no ritmo em que as pessoas estão acostumadas, e de repente as mudanças fazem franzir testas ou desanuviar olhares; contudo, ele estava inerte. 

Se esvazia tentando se encher. O ser humano que não se contenta cria a falta do que não tem necessidade, só para alimentar a frustração.  Um penduricalho na janela dança ao vento. Barra poeira e ideias erradas. Ele ficava no horizonte inexistente o olhar. Seu lugar no mundo. Seu ponto na paisagem. Sua função da expectativa dos outros. Seu pensamento corria pelas ruas, as veias da cidade, até encontrar a terra virgem, sem marcas, sem cercas, sem traço da mão do homem. Até ver no canto um copo descartável amassado e compreender que a praga humana se entranhou em tudo, dos ambientes aos sonhos. Um parasita que quase chegou aos céus. Não resistiria tal chuva. O penduricalho na janela o lembrou de piscar.

O corpo leve caminhou ao sol, sem as amarras daqueles dias, mas no silêncio percebia toda a dor e aflição, superadas sozinho. Ele não transferiu culpa, não se vitimava com as circunstâncias, mas compreendia ser para ele, sem tornar-se epicentro de coisa alguma. O som de seus passos no chão, o cantar dos pássaros ao longe, o colibri rodeando as flores ao redor dele. Por instantes, sentiu-se como Mr. Nobody. Pensou em Paca. Difícil mensurar de forma límpida os sentimentos de outrora. O transcorrer da morte na vida. O apodrecer da matéria para ser adubo ao novo. Recompor de nutrientes o meio. As palavras erguidas como estandarte da razão serem rasgadas, usadas como arma para abafar um coração que sem regras lógicas, sem compreensão alheia, habita nas intermitências do tempo que não passa, não estaciona, apenas é. Não é o tempo que passa, mas a matéria que se consome, no conflito das energias do meio, dentro e fora. Sobram as ideias como dente de leão ao vento; esse que só é se houver o movimento. Por instantes ouviu o nome de Paca vir no vento, pensou mais uma vez em Mr. Nobody.



Não tenho gavetas. Não que precise. Não tenho o metro quadrado devido para repousar a cabeça. Tudo me é emprestado, concedido, alienado mesmo quando meu. Decidi deixar escrito para Paca um dia ler e quem sabe ficar sabendo. Mas minhas palavras não são tão evidente quanto meu puro sentimento. Tampouco os desdobramentos corresponde corretamente ao Tempo, Distância e Realidade, à luz da Expectativa (morta, petrificada ao olhar para trás). Não tenho linhagem, ou legado afetivo que não fora roubado de mim. Indivíduos ávidos por seres essenciais, necessários e insubstituíveis, fazem de sua razão de vida interferir e se apropriar da vida do outro. Tenho asas. “E este pássaro livre não se pode mudar”.



Era manhã. Um pássaro estava pousado no topo do que sobrou de uma rosa que foi botão e se despetalou. As demais rosas ainda molhadas pelas gotículas do orvalho. O Pássaro olhava para frente. Estático. Não se sabe se pensava no voo, procurava pouso, descansava ou apenas esperava, ou ainda hesitava a mover-se. Era o dia agarrando-se para não acabar? Era o ser humano tornando-se outra coisa. O pássaro nem piscou.

Mesmo sem ver o que esperava no céu, sabia que o dia estava lindo. Mesmo com as alternâncias climáticas, ele sabia apreciar o instante, embora às vezes confortavelmente entorpecido pela Realidade. Foram tempos, e metade dos tempos. Agora à frente teria outro compasso. Sem a Realidade a controlar o acontece dentro dele. Ninguém percebia, tampouco conseguiria compreender. Eram todos carne sobre ossos, uns com gordura, outros apenas pele e argumentos. Eram carne e concreto, armado pelas cifras que chicoteiam ponteiros, movimentando a sociedade. Ele não mais.

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