quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Soro - 22ml

 

Seus pés, do frio chão ao gelado da grama, até a madeira seca, aquecida. Com o olhar fixado no horizonte de dentro. Sentado na varanda superior, no quintal. A xícara na mesa de centro. Envelopes perfumados abertos no canto, gotículas de café na borda. Ele começou a ler com a sensação não de surpresa, mas de aconchego. Não de ilusão, mas do que há além de parâmetros, expectativa e automatismos sociais. Era outra dimensão ali alcançada.

Eram palavras libertadoras. Elas saíram do papel, iam letra a letra, entrando no íntimo dele, correndo por suas veias, irrigando seu cérebro. Eram as palavras verdadeiras de Paca. Não a projeção que ele fizera, não a expectativa humana do reconhecimento pelo outro, não a poesia em fragmentada linha reta do amor, da vida. Eram as puras e plenas palavras de Paca para ele. Não se tratava de correspondência extraviada, o nome dele estava nos envelopes, no texto, onde ele ganhou até mesmo um apelido. Ela se lembrava dele. Ele nunca a esqueceu. 

Seu corpo formigava na sensação agradável do lacrar dos poros. O arrepio que ao passar traz um relaxamento. Estava em paz, o sol o alcançava sem algazarra. O vento não atrapalhou sua leitura, mas era uma mão a fazer afagos em sua face encantada pelas palavras de Paca. A Realidade se contorceu lá fora; ela não sabia das cartas, nem de quem eram, nem o que continham, mas percebeu que algo mudou.

No final da primeira carta ele parou. Tocou com delicadeza o papel e o cheirou. Se espreguiçou ao sol, sentado na confortável poltrona. Estava pronto para ler as próximas. A segunda era ainda mais intensa, então a conta-gotas ele a lia. Cada frase, uma dose do elixir imensurável, inominável, inesquecível. Sentia irradiar de energia em seus meridianos. Finalmente a cura, para o que não era doença.

Nem percebeu que cochilou ali mesmo na varanda. De pior os pesadelos e sonhos têm o momento em que parecem ser realidade.  Não se concebe quando acabará e assim angústia-se quem sobrevive às madornas. Enfrentando as ondas com a jangada rachada. Indo de encontro à lua. Sem notas, sem desafinar, o silêncio que conduz a alma pelos ambientes e prova da sensação de paz que é não se conectar aos padrões sociais, às vãs expectativas. Uma nova taça. Um brigadeiro de café, um pedaço de parmesão. Retornou à leitura. Cada carta lida era a certeza de sua liberdade, do novo instante que o revigora, o transforma. Paca mostrou o conhecer, mesmo no que ela nem imaginou. Ela sabia que ele não conhecia o mundo, que não cruzou tantas fronteiras; então, contou para ele de cada viagem, cada experiência, cada show de rock, cada café que provou, os sorrisos que colheu, os girassóis que viu se curvarem no horizonte em direção a ela. Tão modesta, vivia além da gravidade. Ela trazia equilíbrio ao dia, conforto a noite. Sua existência tinha bem definida e percebida vocação. Na quinta carta ela o levou à Europa.  Ele se encantou, pelas ruas de Paris à meia noite; pelos campos de vinícolas tão humanas, poéticas. Circularam por lugares especiais pela simplicidade de ser. Foi mágico.

Na sexta carta caminhou com ela em Santiago. Em silêncio. Reflexivo. Foi intensa a maneira que se integrou à ela. Casa frase um trecho. Cada palavra um passo. Cada letra um respiro. Ele compreendeu o quão profundo e irreversível é olhar para dentro.

A sétima carta ele guardou para ler depois do jantar. Ficou inspirado a voltar a cozinhar como água para chocolate. Cardápio adaptado. Alho-poró, dente de alho, pétalas de rosas, filé de salmão. Vinho tinto. Luz centralizada. Cozinha ritmada, colher de pau. O azeite na frigideira perfumou com alecrim o alho que perdia alvura e exalava um aroma encantador. O peixe. Cantava na frigideira espalhando o suspense do vir a ser; do alcançar o ponto certo. Gradativamente ele corou em camadas, mantendo suculência e elegância. Na frigideira ao lado, as pétalas e o alho-poró, uma folha de manjericão. Reduzido, encorpado, equilibrado. A frase perfeita, lançada sobre o peixe ao prato. O vinho já havia respirado, agora deu vazão a poesias. A sétima carta era a sobremesa e já avisava que outras iriam chegar.


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