quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Soro - 23ml

 


Acordar sem a sensação de estar atrasado era magnífica. Na fila do pão, achou triste, porém irônico, a mulher se preocupar mais com os problemas pessoais das blogueiras que ela seguia pelo celular, do que o conflito existencial do marido ao seu lado.

Cada qual fazia tremular a bandeira dos argumentos. Todos querendo estar certos, ninguém queria a solução, pois ela poderia significar estar errado por um momento. Escolheu o pão. Geleia de morango. Queijo provolone. Caminhou devagar até que viu ao longe o carteiro dobrar a rua. Deixou ele alguma carta? Não apressou os passos, mas foi com aquela inquietação na barriga, digna de quem sabe estar próximo a receber um presente. A carta estava à sua espera.

A letra dela era um convite a passear por traços de encanto; fascinação. Ela descreveu para ele sobre as novas canções, o repertório para ler, correr, meditar. Sobre os momentos de leitura deitada à rede que tinha na sala. Eles tinham o semelhante gosto musical, sem forçar; espontâneo encontro de almas. Ela contou como era trabalhar com a mente humana, esse ser nevoeiro; enigmático. O modo como ela caminhava com leveza pelos momentos de tensão era encantador. Um anjo. Ela falou de filmes, e da vontade de assistir uma boa peça de teatro. Ele tinha no peito uma pequena dor de não ter sido mais corajoso. O compasso. Quando estava pronto, não a encontrava, quando a via um entrave havia. Quando tinha sede, nem uma gota. Tremendo de frio, a chuva o mirava do alto. Quando recitava a poesia certa ninguém ouvia. Quando escrevia ninguém lia. Ao tropeçar, todos apontavam o dedo. Quando novo, desencanto; ao estar pronto para amar, apenas amarras. Até aquele momento, ele não tinha entendido o compasso e o seu lugar. Afora o desejo, a certeza que traz paz. Ele leu com amor cada curva da escrita. Reduzia o ritmo com medo de que acabasse logo. Apressava-se pois era o seu instante no universo. E quando acabasse aquela, iniciaria a espera pela próxima carta.

Reparou em como ela pingava os is. Percebeu as palavras que se repetiam, marcando o repertório, enaltecendo a mensagem. Os momentos de respiro e até breves arrepios. Estavam íntimos de uma maneira que não havia ainda sido possível, por causa da distância, da realidade e do tempo. Entre uma página e outra da carta ele respirava. Sentia o fresco ar pelas suas narinas trazerem o refrigério ao corpo. Alguém ainda lê cartas assim? Ele re-aprendeu a ler. Não eram as cartas que ele lia, mas Paca; seus traços, curvas, pausas e voos. Embora a trajetória canse o corpo, a alma, a mente se renova diante de tanta ternura, verdade e entrega mútua.

No jornal leu o artigo sensato de uma gestora de comunicação ícone nacional, a respeito das intempéries transformarem os modelos de comunicação e as pessoas, propiciando que todos se tornem mais humanos, no que concerne à empatia. Um texto sem agressões, certa soberba nas entrelinhas, mas humildade na pontuação. "Seja sua própria audiência." Repetiu mentalmente até alcançar os diversos desdobramentos do sentido da frase, ressignificando-a. Semelhante às ondas subsequentes ao jogar um limão na água. Ele sorriu, pagou o jornal e voltou.

Não precisamos de muitas palavras. Ele passou o dia sem as perturbações das pessoas que de tão determinadas em alimentar o ego, esquecem de respirar, de reduzir o ritmo, de falar baixo, degustar com calma. Evitar incomodar. Caminhando pelas tranquilas ruas do bairro ele foi ao Sebo. A essência do sebo não estava na guarda, mas na brevidade da estadia.  O ritmo marítimo do ir e vir de ondas. Os livros deveriam continuar a chegar para assim, permanecerem a partir. Ele circulava pelos corredores, sentindo o cheiro de cânfora, de papel envelhecido e histórias à espreita. Sem o nariz coçar, sem as mãos sujar. Folheava as obras imaginando não a história em si, mas o quanto do escritor estava revelado ali. Um sonho lúcido.

Paca de manhã, refastelando-se no lençol e na preguiça. Bowie lá atrás na parede mandava não a incomodarem. Ela era aquela sensação boa que vem do nada e transforma o seu dia.  Talvez ela não soubesse. Docemente elegante, fora de rótulos. Ela não precisa de um. Uma pessoa que ama o próximo e só quer o bem, só faz o bem; mesmo sem perceber. Ele só tinha bons pensamentos em relação a ela, pensamento de paz e ternura. Desejava que ela fosse feliz. Sem grandes justificativas e desdobramentos. Que ela pudesse do abrir ao fechar os olhos, ter o peito aconchegado pela paz de ser. Que ela além de vivenciar cada instante, soubesse a maravilha que é sua vida e trajetória. Ele fechava os olhos e conseguia ver Paca flutuando pelo turbilhão urbano daquela cidade avião de onde decolam sonhos, mazelas, vibrações e esperança. Ele percebia que ela encontrava aconchego em meio a tanto concreto. O colibri pousado no fio alçou voo, abriu os olhos fechando o envelope com mais uma carta. Decidiu fazer gnocchi. 

A virtuose da espera. Enquanto à volta tudo acontece. Enquanto todos correm, paredes golpeadas, nomes gritados ao vento, difamados em portas de banheiro. Enquanto números atravessam o tempo todo pela cidade, sem respeitar sinais e faixas. A espera in natura, sem traumas ou amarras. A lágrima se precipita mas não escorre. O indivíduo grato tem visão melhor sobre as texturas da realidade, sobre os instantes da espera. A gratidão, a compaixão, não fraquezas do modo em que Nietzsche aborda; mas fraquezas  do sujeito social, que fortalecem o indivíduo. E no fim, há o indivíduo; mesmo que compartilhando experiências, vivendo junto, cada um sendo o "outro" uns dos outros. O legado não é gritado ao longo das gerações. Ele é acolhido espontaneamente, sem metalinguagem, sem prolixidade. Aprendeu a esperar. O silêncio é um universo à parte no qual ele aprendeu a habitar. Degustava cada ausência entendendo o que há de presença no silêncio. A profusão de ideias, rimas e ideais.

Café forte, sem rodeios. Amargo sem comprometer o paladar. Bolo de queijo com goiabada. Fofinho, cremoso, doce sem ser enjoativo. Novamente em uma casa de ecos. No alto do vale, longe das barragens. O lugar tinha nome de símio. Povoado vazio. Pontos de emergência por toda a parte. Mas nenhum ponto para ele. Pegou a cafeteira moka, sem cabo. Fazia café utilizando um pano de prato para se servir. Era possível tocar a névoa da manhã, por instantes, até o sol a dissipar com sua forte luz que não aquece, mas ilumina. Ele estava feliz. Seu desejo era permanecer ali, naquele ambiente, naquele povoado e naquela rotina. Contudo, sua estadia era momentânea. Estava de passagem. A Realidade não tinha fôlego para o alcançar naquela altitude. Ele nem se lembrava dela. Aproveitou a os dias ali, pois seriam os últimos. Retornou para a cidade na certeza de mais uma carta o esperar para ser lida. Ele faria tapioca no lanche. Café forte. 

A gratidão faz florescer uma sensação maravilhosa. Mesmo que em silêncio, ou isolado, de forma que ninguém perceba. Estar grato é revigorante. Atenua a maneira como sentimos bater o próprio coração, o modo como a respiração nos mantém na dinâmica mecânica do corpo em movimento. Ele transpirava gratidão. Seus poros exalam o perfume da paz. Estava ciente do chão que pisava. Piscava os olhos com parcimônia. Sentou-se para ler mais uma carta. Esta demorou para chegar.

Paca também tinha seus momentos de preguiça. Não apenas a correria na lagoa, o ioga e a mágica no trabalho. Ela tinha momentos reflexivos, de cansaço e também os de preguiça. Nestes, a letra revelava. Havia a preguiça diante do turbilhão da sociedade que se devora; porém pairava o sentimento arrastado do dia que estaciona, ou que segue, mas ficamos fincados no instante. Às vezes, o prazer de ter um livro para ler e não o fazer. Tal qual como disse pessoa. 

Sentado, limpando o restante de canela e açúcar do canto dos lábios, ele deixava a xícara sobre a mesa. No guardanapo respingado de ristretto, ele arriscava.


Penso no quanto escorro do tempo, a rima torpe que conduz meu coração. Passo ao largo do que se curva o horizonte; sentindo golpear-me as nuances de uma Realidade nua. Estabeleço comigo o anti-pacto para drenar a poça do não escorre mais. Águas turvas escondem minhas frustrações e despertam energia aos meus sonhos.


Nas manhãs frias, gostava de ler Fiódor, com café e vodka. A xícara de café. O mergulhar em uma manhã fria. Ouviu que a carteiro passou, ao escutar o barulho da bolsa. Mordiscou do biscoito de canela antes de ler a próxima carta.

Enquanto alguns engoliam o pôr do sol, ele os soprava com o olhar até se encontrar com ela. No luar, lançava facetas de esperança, captada pelo brilho refletido, na expectativa de tocá-la. Os desencontros foram massivamente a harmonia, regida pela distância, controlada pela realidade.

A carta tinha um cor diferente. A caneta acabou ou fora outra. Uma emprestada ou uma nova dedicada àquelas letras? Fato é que conseguiu ver a mão de Paca sobre o papel, debruçada sobre si, registrando nos traços o que não cabe no som. Ela contou do seu dia de trabalho, da visita aos pais, dos quitutes típicos do encontro de família. Ele lia duas vezes cada frase, como quem escreve forte sobre o papel, marcando a folha de trás. 

Não pensava em mais nada. Sabia de sua interferência na vida dos outros. Mas sabia também que com  o tempo ele vira poeira que se vai ao vento ou que gruda e ninguém vê. Pensava em nada enquanto soltou as amarras do olhar. Aquela carta era demasiadamente íntima; fez de sua pele papel carbono, sentiu as palavras entrarem pelos seus poros, seguirem pelo corpo todo, percorrendo becos, ruas, alamedas, avenidas, vias expressas, rodovias, inundando o coração, seguindo rumo ao cérebro, irrigando-o de uma sensação veemente especial.

Passo o dia como pássaro molhado na chuva, pousado; observando entre as gotas. Se aquecendo internamente.


Suntuosas curvas da paisagem. A montanha com rocha exposta, gramíneas rompendo a alvorada, sobrevivendo ao frio. Pássaros sem rota de voo, só verso e estrofe no céu que está sobre todos. Ele estava paralisado naquela manhã. Sem grandes gestos que pudesse mudar aquela encantadora paisagem. Na mesa de centro da varanda ainda estava o envelope e a última carta. Uma nova estava no assento. Havia mais volume, a letra estava ainda mais natural. 

O vínculo com a história muitos dizem. Enquanto a história é escrita nem nos damos conta. Tanto escapa pelos dedos de tal forma que fica registrado não a totalidade, mas o que desponta; seja pela relevância, seja pela irreverência, ou pelo poder de intervenção em quem está com a pena nas mãos diante do papiro. Os mesmos atributos naturais marcam o tempo. Não era ele o cansaço, ou o silêncio. Ele era pessoa, com marcas, mas sem amarras.


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