quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Soro - 21ml

 

Vasto mundo de coisas belas. Ele aprendeu a destinar mais atenção, sem tensão, às belas paisagens, detalhes, sabores e sensações. Aspectos naturais que independem do ser humano. E que por diversas vezes é atrapalhado ou até mesmo extinto, pela manifestação da vontade social. Alimentados por picuinhas. Seres humanos se amontoam fazendo da insatisfação do outro o seu gozo. Ele se desvinculou por completo. Não havia mais preço. Estavam separados os hábitos de convívio social para subsistência e o que perpassa seu íntimo. Seu processo de limpeza, de elucidação, não se baseia em religião, doutrina, ou receita. Foi um processo natural.

Uma prisão. O Sol era forte e estridente o grito das expectativas. Um prisioneiro das ansiedades, das amenidades, da dependência que tinham dele. Prisioneiro calado, com frases prontas para equilibrar o convívio social. cansado. Torrava sua liberdade ao sol. Queima a pele, ofusca a visão; calor que atordoa, ilumina os poros de forma desnecessária. Aprisionado sem sinal, sem bateria, sem ter fechadas as feridas. Uma prisão, a narrativa dos outros, a vistoria que faziam nas redes sociais. Sem a devida leitura, Ele estava com a alma cansada, não o corpo. Tampouco a mente. Ele estava com a alma cansada. Uma ferida aberta; as risadas esganiçadas dos outros ecoavam pelas celas. A Realidade carcereira doutrinava sonhadores e necessidades.

As pessoas não percebem. Talvez ele perceba pois estava na sobrevida. Naquela parte que é a mais. Em que reconhece a beleza e maravilha da vida, mas não se agarra à vida, às mazelas, às vaidades, aos vitimistas como os que erguem o estandarte de tais aspectos meramentes sociais. A vida começa e termina todos os dias, em cada instante. Debruçada no orgulho, na vontade, na necessidade;com aquele hálito matinal de frustração. “Eu não sei na verdade quem eu sou” e nem isso o incomodava. A mente como um pássaro, vai longe e trás alimento. Carregava nas asas a possibilidade, e assim sobrepunha-se a mais um dia. Aconchegando-se nas maravilhas dos detalhes que as pessoas não observam.

A proporção da entrega versus a retirada não segue parâmetros; às vezes parece ter vida própria o desequilíbrio; tanta dor. Tanto vazio que nem cabe o medo. Os instantes alternam. Ele escrevia cartas. A gota. Um universo elementar condensado em uma partícula, Se lágrima, suor ou saliva. Era o corpo anunciando estar intensamente insuportável e por isso, escorreu. Não era mais possível conter.



Fizeram novamente, me entende? Acorrentaram as emoções. Dias tortuosos à beira da morte, dos outros. E diante da atrofia, certo arrepio. Novamente fizeram novamente. A censura velada do que o fazia humano; não podia pensar, não podia. Não iria respirar em outro ritmo. O rito social era extremamente cruel. Ninguém novamente sabia da saúde mental dele. Fizeram novamente e desta vez ele não gritou, nem chorou. Entretanto, a sobreposição das páginas tapava a dor, substituía o silêncio pela revelação do amor que ela nunca vá ler. Novamente fizeram e foi atordoante. Ele não era visto. Não trombaram nele A luz atravessava ele. Sem som. De repente, o equilíbrio. O lindo dia de sol, o vinho, a mandioca frita, sequinha, salgada na manteiga. O afável convívio. A esperança respira nos detalhes, pulsa. Meus anjos rodeiam-me, compreendem-me sem o saber; cuidam de mim na proporção que deles cuido. Demorei a conceber que no espelho, ele era eu. Tentando me ajudar, me privaram, duas vezes e quase três de criar o vínculo natalício com meus anjos. Tentando me ajudar, me anularam, e o pior, se regozijam de serem mais importantes e influentes, sendo que ao me ajudar, me substituíram. Percebi que com isso tornei-me outra coisa, que ainda não colocaram no dicionário, que ainda não se fala nos cultos, missas e funerais. Embrenhei-me nas possibilidades de uma maneira que tornei-me perene na memória deles, na psique. Contudo minhas feridas ninguém as vê, abertas, em uma lenta cicatrização lenta, profunda. O vinho também nestes momentos faz-se remédio para as ideias. Eu quis dizer a eles: Não anule meu amor com o seu amor. Não diminua meus abraços ao reduzir meu alcance. Não faça de sua carência motivo de se afirmar tentando me apagar, pois meu brilho é outro. Calei-me. Os anjos me conhecem além da distância e cuidam de mim na paradoxal proporção de que deles cuido. Falaria para você de mim, ouviria você, escreveríamos sobre nós dois juntos. O texto além das projeções. Afora a realidade, o que realmente existe. Cruel papel que finda, em uma madrugada de taça vazia. Leve,traga, leve; sopre, encante como canta o tempo, escorre como a lembrança; crave como a experiência, grave, forte, seja leve. E eu, a vírgula na frase, sem grandes pretensões, a vírgula.Essa trilha litoral que tortura os nossos olhos, é desdobrar montanha no cerrado, é compreender que além de nós perpetua-se o pôr do sol. Que o sorriso é mais do que parece; que o julgamento todo tolo é e sem os fundamentos que seriam necessários. Sentimentos em cova rasa florescem e sem embrenham no vento. Pode-se sentir o vento com as mãos, mas não o segurar, pode-se sentir a fumaça com as narinas, mas não a tocar. Nem a névoa, o vento, ou o tempo. Não saber o porvir já não dói. Sem se mexer, você instaura no ambiente a paz, a ternura, sem precedentes, sem responsabilizações. Você é. Agora.



Caminhou pela casa sem acender uma lâmpada sequer. Guiado pelo luar que se instalava através da janela, foi se deitar, pensando que em breve haveriam outros porta-retratos, com outros sorrisos, outros brilhos.

A Realidade não compreendeu o entusiasmo dos pássaros naquela manhã. Bem-te-vis e beija-flores. Era a anunciação. Ele tomou café, acompanhado de um brownie que comprou na padaria no dia anterior. Daquelas padarias pequenas, cativantes, especiais como um bom livro. O brownie estava especialmente preparado, com o aroma equilibrado de café, chocolate e esperança. O café, sem açúcar, intenso. Sentiu seu peito pulsar com o canto dos pássaros e o voo do beija-flor que o acompanha desde quando tudo turvo ainda era. Descalço, trocava temperatura com o chão. A grandiosidade não cabia no silêncio, não poderia ser compreendida pela Realidade. Caso estivesse alguma pessoa por perto, tampouco poderia compreender. Não porque ele era especial, mas ele estava diferente. 

A caixa de correspondência. Seus olhos percorreram o contraste da lata, com o papel. As primeiras cartas chegaram. Juntas. Como palavras que estavam emperradas na garganta. Ele as organizou por data de emissão. Não lhe ocorreu como ela conseguiu seu endereço, porém não seria difícil. Afinal ela sabia que ele existiu, mas não que o sentimento era em in natura; sem interferência da Realidade, sem parâmetros. Reconheceu no envelope a letra de Paca, que ele nunca havia lido.

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