quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Soro - 18ml

 


Eram várias as solidões. A solidão da criatividade, autoconhecimento e introspecção. A solidão da sobrecarga, cheia de gente por perto. A solidão do abandono.

Eles estavam criando uma geração que não podia sentir dor. Os espasmos aprendendo a controlar os músculos da face controlar os músculos do abdômen o intestino ninguém queria que ele sentisse dor. A dor da distância a dor de entender que o outro sente dor e por isso tem que se afastar. As pessoas queriam evitar que as gerações mais novas sentissem dor. “Quem é  dor”? Perguntavam as crianças. Ele não soube responder.

No dia do seu aniversário Paca não ligou. Não questionou porquê dele não ter sido ainda mais óbvio. Não cobrou dele experiências de viajar o mundo e conhecer diversas culturas diversos sabores. Não jogou na cara dele a limitação que ele tinha em relação a paleta de cores dos ambientes e dos horizontes que o mundo havia guardado. Paca não ligou cobrando dele saber tocar um instrumento musical, recitar grandes poemas, compreender de questões metafísicas quânticas filosóficas; ela não ligou. Não se frustrou em saber que ele não conhecia o mundo e seus sabores. Ela não tinha interesse no conhecimento dele em trocar fraldas, cuidar de um infante febril, deixar em ordem uma casa. Não ficou cansada de saber que ele não havia ido a grandes shows de rock e que não se lembrava muito das histórias e canções das bandas que ambos gostavam. Ela não respondeu a mensagem. Ela não ligou. Se ao menos ele tivesse a chance. A chance.

Assistir os episódios antigos de Friends não apenas o conectava-o às lembranças da adolescência, onde sorrisos espontâneos eram seu refrigério na solidão. Com o passar dos anos, cada vez que assistia era um momento ingenuamente especial, pois estranhamente os conectava através da distância, embora ela não soubesse. O sorriso despretensioso aliviava a tensão dos dias, mas durava menos que qualquer princípio ativo dos remédios.

No sofá, percebeu o céu escuro da madrugada dar espaço a um amanhecer tão belo, daqueles sem cobrança, que proporciona paz e frescor. Era bom estar ali sozinho, mas se pudesse ter a leve companhia, seria ainda melhor. Contudo, ele entendia, era aquele instante sua melhor chance. Aconchegou-se no sofá. Amanheceu com sol, sem calor. O cheiro de café era palpável.

O que satisfaz? Uma recorrente pergunta retroalimentada a cada conquista ou frustração. Seja o âmbito que for. Acúmulo de bens, de experiências, de rótulos, sabores e sensações. Os instantes recorrentes de satisfação traduzidos em felicidade. A intermitente rotina de lutar para subsistir, desfrutar dos resultados. Renovar ciclos. Ser algoz, às vezes sem perceber, ser vítima. A instabilidade emocional que evoca o Narciso dentro do poço do abismo que há dentro de cada um, como justificativa para decisões de autopreservação. As pessoas desistem umas das outras. Trancafiando uns aos outros em solidões. O som úmido da voz dela no vento, comentando sobre a vida, o gesto sutil de arrumar o cabelo que coça a face.


Queijo provolone, picado. Mel jogado em cima. Um vinho generoso. As mesmas páginas de um livro recorrente. Ali no balcão, da cozinha de casa, lia como se relacionasse com uma pessoa. Tinha respeito pelo livro. A audácia do escritor em lançar palavras organizadas sobre o papel, sem imaginar a profundidade dos desdobramentos das páginas ao longo do tempo. Longo, tempo. A brasa estalou lá fora. O peixe já estava temperado. O filé também. Geleia de abacaxi com pimenta reservada. Manteiga com alecrim no ramekin. Atravessou o gramado, saindo da cozinha. A grama fria massageou seus pés. O piso de madeira. Sentou-se na varanda. Porção para dois.

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