quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Soro - 5 ml

 


O controle ineficaz do corpo à madrugada.

Nem sono, nem sonho. Nem liberdade, nem prisão. A tecedura de uma rotina de esmurrar o vento, no pensamento, buscando paz. Pingava a gota no equipo. Uma caiu do teto, em sua testa. Outra emergiu de seus poros. Uma derradeira escorreu pela janela do quarto. O ato de observar funcionava como um ponteiro. Era como se o tempo passasse, em inércia, dentro de um gota que não trouxe cura, nem alívio. Ela o observava de longe, esgueirando à porta; a Realidade. Ele nem mais a ignorava, nem a percebia. Talvez fosse a doença, pensava ela.


Papel hario v60, alvo, à espera da água. Noventa e dois graus sobre o pó moído minutos atrás. Eram grãos colhidos nas Gerais. Ele preparou uma bela xícara, foi até o quintal para tomar seu café. No pires, biscoitos de nata recheados com goiabada. A sensação da grama aos pés descalços, o aroma do café, o sabor do biscoito e os pensamentos que giravam em carrossel em sua mente cansada.


Não tinha como saber a maneira que trascorreriam suas lágrimas depois que partiam do coração, preciptavam pelos olhos e desciam pelo rosto rumo ao chão. Se densa, infiltra no solo, nutre raízes e ainda assim penetra os lençóis freáticos e flui pelas entrelinhas. Se leve, ainda na superfície evapora, não desaparece, muda de forma.


Anuviado céu das expectativas e correria urbana. Com o sopro de uma ideia se desfaz a tempestade, embora fique aquele vento.


Ele se levantou; pronto; caminhou até o trabalho. As ruas apresentavam uma paleta de cores emocionais, o embate delas ao invés de formar um arco-íris, causava confusão. Ele estava cansado. Chegou ao trabalho e com a mesma intensidade de todos os dias foi assertivo e ciente dos riscos e dos resultados. Não ficou nenhuma pendência. Ela se espantava.


Apenas ela sabia da doença. A Realidade. Talvez por ter percebido ele se afastar dela, não por loucura, desespero, mas outra coisa, que ela entendeu ser uma doença. Ele não se importava com ela, dissociou-se.


Ela deixou de fazer sentido no seu dia a dia, ele nem a percebia mais; não a via. Ele observou a borboleta errante, certa de si, voando de forma a pincelar no céu cores de encanto e esperança. No fundo o azul céu e a certeza de que os rumos mudaram. Ele ainda podia sentir. Talvez tamanha fosse a intensidade dos seus sentimentos, que o dia a dia ali naquele escritório fosse percebido de forma diferente.


Com sorriso nos olhos, perpassou a brisa rumo à cafeteria dos fins de tarde. O cheiro de livros junto aos aromas de café eram seu predileto clichê. Ela o perseguiu até a porta, mas não entrou, não se sabia se era por causa da doença dele.


O expediente terminou e ele se permitiu a caminhos diferentes. Subiu a rua que fazia arder a panturrilha. Desviou-se dos ombros na estreita calçada. Escolheu um caminho diferente.


A chuva vinha sempre do mesmo lado do céu. Dos montes verdes, ao longe, atrás da sua casa. Ele sempre gostou de observar a formação das nuvens e esperar pela precipitação após os ventos. Era este sempre um momento de contemplação, de acessar lembranças e de esvaziar-se. Neste dia lembrou de como a conheceu. Passava de carro pela rua em horário tranquilo quando a viu desfilando na calçada. Ela, de pele alva, ou era jambo, de cabelos loiros ou morena flor, passava despercebida pelos beija-flores. Ele chegou bem perto com o carro, diminuiu a velocidade, abriu o vidro de foi categórico:


  • Bom Dia! Entre. Venha ser a co-piloto de todos os meus dias, permitindo a mim ser o seu. Você será a flor que em si é o próprio jardim, o elixir do sentimento que mantém a vida, a esperança, a paz.



Ela olhou com estranhamento. Ele possivelmente diz a todas, pensou. E se com o passar do tempo, diante das aparas de um relacionamento ele o mesmo fizer em outra rua qualquer? Ela titubeou. Entretanto, quanta sinceridade no olhar, ela se encantou. Ele insistiu. Ela entrou.


A maneira como ela saiu o marcou de uma forma tão peculiar, a ponto de não ser percebido pelos tantos personagens do seu dia a dia. Ele sabia das mudanças, pois sabia olhar pela janela. Acontece que pouco a pouco ele perdeu a prática de voar no olhar, de pousar no pensamento. Talvez fosse a doença; entretanto apenas a Realidade parecia saber.


Ele às vezes tinha espasmos de recordação de sensações de outrora. Seus dedos transformando a massa, sua mente se desvencilhando de qualquer pensamento que causasse dor. Ali, de pé na cozinha, enquanto de forma calma manejava a faca, cortava a massa já temperada, formando pequenos travesseiros. Via-os emergir da fervente água e os dava um choque na água gelada. Ponderadamente, dispunha a massa no refratário e por cima colocava o molho, temperado com parcimônia. Comeu à mesa, sozinho, olhando para o gramado lá de fora. Anotações perdidas iam com o vento pelo chão. Nem se importava mais em colocar no papel tudo o que pela cabeça passava. Não que não visse propósito, mas que já não tinha o mesmo sabor.


Os dias de trabalho eram mais uma das tantas contagens regressivas. Ele terminava o serviço diário mais uma vez sem deixar pendências. Saiu sem perceber ambas.


Comma. Invariável. O poder dos lábios dela sobre o vento ao balbuciar algo em direção a ele. Entretanto as palavras de Comma já não passavam pelos ouvidos dele. De longe, impiedosa, a Realidade observava o esmaecer da expectativa, mas a persistência de um sentimento. 


O toque involuntário de seus corpos em um corredor, no disputar desatento por uma folha na máquina de fotocópia, por um copo descartável na copa, por um lugar no elevador. Era mais do que o esbarrar, eram lampejos de esperança. Entretanto, ele não alimentou. Talvez fosse a doença, e só a Realidade percebia.


A Realidade a afasta dele. O escritório era uma sucursal de uma dimensão onde a humanidade era sensível, vulnerável, desesperadamente carente e cruel.


  • Ninguém me vê. Não me sentem ou me conhecem. Não se trata de fama, ou máscara, é outro reconhecimento. Ninguém vê a ninguém. Quando precisamos de nos agarrar em algo, quando lançamos o olhar em busca de um afago que nos proporcione respiro, muitas vezes desfalecemos dentro do crescente poço dentro de nós. [Comma encontrou um ponto final]


Ele não se tocou. Não percebia os sentimentos que orbitavam sua pele, tampouco tinha ciência das lágrimas que ainda corriam de seus olhos à noite. Ele não conseguia nem mesmo se sentir. Paulatinamente perdeu o contato consigo mesmo. O que poderia o retirar do automatismo modo de abster-se? Nem mesmo a Realidade o alcançava. A doença beirava seu estágio final.


Doença? Seria a apatia controlada um sintoma? Desprender-se da realidade de forma a nada, intensamente, fazer algum sentido, sentimento, importunar, pressionar ou encantar. Ele, exilado de si e do outro, seguia na silenciosa e sem lamúria marcação de versos, dia, noite, tardes, manhãs e madrugadas. A Realidade não concebia como normal alguém se dissociar dela; seja de perto ou longe. Rotulando anomalias, transformando-as em doenças. Contudo, a ele nada mais tinha assim tanta importância. Era como se ele não estivesse fora, mas completamente dentro e sem amarras.



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