quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Soro - 4 ml

 


A expectativa. Poderia ser o título daquele dia.

Ele saiu de casa, mas já na esquina teve de retornar, esqueceu de algo sem saber o que era. Tocou os bolsos, como todos o fazem, não sentiu falta de nada, mas sabia que faltava algo. Dentro de casa percorreu os cômodos à procura do que não sabia. Comeu maçã, bebeu suco, coçou a cabeça, olhou tudo e foi para o quintal. Lá no fundo, sentou-se no banco de madeira, daqueles de praça, mas confortáveis. Estava em uma posição privilegiada, no aclive. Encontrou. Era a paz. Gostava de sentar ali e observar a paisagem, ouvir as poesias gritadas pelas suas lembranças. Retendo momentaneamente o tempo que não mais passa. Os pés descalços trocavam energia com o solo. Às vezes, o piscar dos olhos nos apresenta tudo em um timelapse especial, tão particular, que só faz sentido enquanto os olhos estão fechados. E este universo, em expansão, é inacessível até mesmo para si, quando as pálpebras se recolhem. Seus olhos brilhavam regendo o silêncio. Saiu de casa novamente. Todavia, o piscar de olhos a conta-gotas, permeia todos os seus instantes.


A pasta feita de papel pardo às mãos quase pendia ao chão. Seus passos firmes sempre paravam nos setenta e sete degraus. Ele habitava aquela estação de trabalho durante a semana. 


Os poetas na estante não o avisaram, tampouco o prepararam. Hoje ela estava diferente. Arredia, traiçoeira, firme, às vezes afável, outrora cruel; a Realidade fazia questão de o lembrar do que ele não esquecia. 


Sem tropeços ou soluços ele foi assertivo em cumprir todas as atividades daquele dia. Nenhuma pendência ficou para outro tempo. Sem deflagrar dos poros suor, sem ter a derme rasgada por mais uma ruga, ele planava pelo dia.


Comma, este era o nome dela. Sempre o recebia com um olhar de ternura. 


  • Difícil a tentativa de dar conta do universo de realização de alguém. Tão complexo e complicado. Quase não tenho a capacidade de cuidar do meu universo, das minhas coisas. Enquanto no rádio escuto “everybody is gonna learn sometimes”; no umbral o pássaro negro repete “never more”. Fico entre os silêncios, o eco, a canção e o retrato.

  • Não se prenda.


Embaraçada nos conceitos, distanciando-se dos clichês, compreendeu não de imediato, sobre o que ele a disse. Ela se via nos olhos dele. Sentia paz na respiração dele tão perto de seu rosto, o calor de suas mãos quando as tocava despretensiosamente, a maneira dele beber café, o modo como escrevia nos livros e deixava-os para ela ler. Ele ampliava as obras. Contudo não sabia ela que se tratava de um testamento. Ele não falava da doença, ninguém a percebia. A gota do soro pingava como uma maçaneta de bumbo, soava dentro dele a dança do tempo com a esperança. Enquanto o enquadramento de como ele via o gotejar lembrava um filme de Ritchie, a trilha sonora tinha o som de Tom Yorke e Bjork, tendo ao fundo as risadas de uma mulher de branco, batom vermelho, estilo Almodóvar.

 

Se breve delírio, ou o quadro real, o silêncio acobertava a certeza, e ele a carregava todos os dias, indo trabalhar sem transparecer, ou falar sobre a doença. Se solução, se espontânea estratégia, se peripécia do destino, ou livre desatino, importa menos do que as interrelações que ele passou naqueles dias.


Nem mesmo seus passos tinham ciência de sua caminhada solitária, cheio de animais e pessoas ao redor, repleto de emoções, pensamentos e silêncio dentro. As tardes em seu fim sempre tinham algo diferente no vento, nas cores do céu e no cheiro do ar. Há tempos foi acolhido. O filhote amadureceu. Chopin vinha com suas patas, como se no chão tocasse piano. Era o nobre escudeiro, acompanharia ele durante toda a doença e além dela. Madrugadas de luar e sem luar, sentado em seu universo particular, com o escudeiro ao lado, com o caderno nas mãos. Seu renovar estava fora dos padrões, seu anseio por reconhecimento não seguia o clichê. Talvez fosse a doença.


Quando o dia estava para dar vírgula; quando suas pálpebras pesaram; ela ligou. Ele não entendeu. Estava tão perto. Os diálogos passaram a ser apenas bites e bytes. Vocalizar era fruto de garimpo, ainda assim, ele se levantou e foi, mas nunca chegou. Talvez fosse a doença.


Ela não entendia como ele insistia em viver sozinho naquela casa vazia. Não compreendia a energia dele para trabalhar sem deixar pendências, sem fazer laços, sem estender o expediente, sem reclamar, sem falar das lembranças, sem amontoar bitucas no corredor. Ela não sabia, mas talvez fosse a doença.



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