foto:Ramon Bruin |
Muitos estranharam o rebuliço dos últimos tons exibidos nos cinemas, sob
a direção de Sam Taylor-Johnson e impressos nas intrigantes páginas
de E. L. James (50 tons de Cinza). Filas, risadas contidas de um
pudor e excitação social que até remetia a outras eras. A sociedade como uma
nova Babilônia sem os jardins suspensos. Entretanto, nos é tão natural o que
nos impressiona. Indivíduos reprimidos, assumem costumeiramente seu papel de
ser social, defendendo uma posição conservadora, neutra, ou pseudo-liberal.
Antes de pensar sobre como a narrativa trabalha o mundo das possibilidades e
sobreposição de paradigmas é importante atentar para alguns aspectos em cena:
Homem novo, esteticamente aceitável pelos padrões de beleza, bem
sucedido financeiramente e intelectualmente. Solteiro, com firmeza de atitudes
e escolhas, até mesmo quando precisa ser sutil. Com certo mistério sobre sua
vida pessoal e um toque de trauma psicológico que o torna suscetível a mudança.
Com sabedoria no que diz respeito ao corpo e suas reações. Pilota, dirige, toca,
manda, bate, fode e assopra. Do outro lado, ela: Jovem, bonita, frágil, bem
humorada, inocente, porém determinada. Solteira, independente, culta, virgem,
disposta a descobertas. Fiel, acredita em relações sentimentais duradouras,
baseadas em cumplicidade e transparência. Capaz de assumir o controle em
discussões, domando o outro por meio do desejo e da mente.
Esses aspectos de certa forma manifestam o tão sonhado imaginário dos
gêneros. Representa as projeções psíquicas que os indivíduos fazem na busca
pelo parceiro ideal. Nem tanto sacro, nem exageradamente profano. Algo que
supra a demanda pelo equilíbrio entre dominar e ser dominado. Produzir um gesto
que tenha intensidade, força e ainda sim sutileza. A partir desses elementos, a
narrativa perpassa por linguagens que atingem o imaginário coletivo, e
simultaneamente afagam as projeções íntimas de cada espectador, que em silêncio
reage e cautelosamente esboça (ou constrói) sua interpretação para a sociedade
em que vive.
Um corpo contido nas poltronas, o princípio de furor entre as pernas.
Uma história é exibida na tela, com fotografia e trilha sonora fantásticas.
Ritmada por cortes concatenados com suspiros, mover de pálpebras e até mesmo o
molhar os lábios. Outras histórias são compostas ou remexidas no cérebro de
cada um. A liberdade do silêncio, no escuro de uma sala de cinema.
O que se perde com o piscar dos olhos? As sensações que ainda não
traduzimos em imagem, tampouco em palavras. O que há além dos créditos finais?
O volúvel ser humano e suas possibilidades de relacionamento.
O relacionamento humano a todo o tempo rompe paradigmas com a
instituição de novos paradigmas. O elemento paradoxal deste fato nos faz
perceber que um significativo aspecto que caracteriza uma sociedade é a maneira
como o coletivo concebe conceitos, manifesta e reproduz interpretações a
respeito de sentimentos. As ambições individuais e coletivas nutrem sentimentos
que orquestram os gestos. A sobreposição dos gestos e sua aceitação pelo grupo
consolidam tradições e paradigmas, sobre tudo: religião, política, sexo,
espiritualidade e etc. Neste sentido, transcender não é extinguir, mas expandir
as fronteiras da percepção e do comportamento. Trata-se de romper um paradigma
com outro, sem a preocupação, ou a consciência, de que pode se repetir neste movimento
quase de dança. E o sexo também pode ser visto sob o viés desta dança.
Se
todas as possibilidades na ordem e relação das forças já não estivessem
esgotadas, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justamente porque isto
tem de ser, não há mais nenhuma possibilidade nova e é necessário que tudo já
tenha estado aí, inúmeras vezes. (Friedrich Wilhelm Nietzsche).
O sexo em película vai além do que se pode projetar em um quarto escuro,
mas reverbera no obscuro da constituição do “ID” do indivíduo simultaneamente à
sua constituição como ser social. O teatro não conseguiu explicitar em cena
todo a pandemônio da Casa dos Budas Ditosos (livro de João Ubaldo Ribeiro sobre
a Luxúria, em 1999), As duas partes da Ninfomaníaca (lançado em 2013) do dinamarquês
L. V Trier chegaram perto do quão cru é a realidade, o desejo, vontade e
representação; o quão belo e trágico é coexistir. Contudo, o ápice das obras
não está no clímax apresentado na tela, mas no efeito em quem assiste, em como
a absorção daquele conteúdo consolida ou refaz conceitos, interfere na
constituição do indivíduo, sendo o prelúdio de suas próximas escolhas. A
vanguarda pulsante que autores buscam vai além do produto de sua arte; mas
depende do efeito no outro e da continuidade da interação com a mensagem da
obra cinematográfica.
Neste ínterim, percebe-se que o pano de fundo da reflexão sobre o sexo
no cinema é a construção de valores e sua atribuição aos paradigmas vigentes ou
aos que virão por ser estabelecidos como item de uma nova ordem social mundial.
Esse processo acaba por definir também o que é polêmico. Quando temas polêmicos
são abordados na tela do cinema, nas páginas de livros ou conversas ao ermo,
não se trata de um gesto impensado, mas construção de mensagens que se propõem como
pílulas de reflexão. Se placebo ou cura para um mal social, apenas sua absorção
ao longo do tempo indicará uma resposta; todavia não esgotará o assunto, pois
ele se renova.
Afora o que se concebe em palavras, há de se
desdobrar o diálogo, buscar compreender e vivenciar os efeitos de mensagens da
sétima arte, vendo-as e sendo-as como uma obra de Dali... ou como as migalhas
da Casa de Budas Ditosos e a intensidade melancólica de L.Von Trier.
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