Regimes Democráticos contemporâneos e a iminência da ruptura
O
retrato social revela um comportamento popular que exemplifica as
interferências sociais do sistema político vigente. A sociedade leiloa seus
direitos a poderes e representantes que mais empatia geram. Legislativo,
executivo e judiciário estão repletos de protagonistas que defendem um projeto
político que manipula a população em função das facilidades de sempre: aumento
e garantia de poder aquisitivo. Uma reforma do sistema político deve partir do
rompimento deste paradigma: o das facilidades e das riquezas. Quando o fazer
política, uma vocação natural humana, deixar de ser um negócio, quando passar a
reunir a sociedade de forma que ela possa compreender as ferramentas que possui
para forjar um novo sistema que vá além dos precedentes.
Desta
feita, é máster promover uma releitura de como o pensamento político e visão da
sociedade percorreu a história e estruturação dos regimes que organizam e regem
a sociedade além das gerações. Mas o que possibilita o pensamento de que o
sistema político vigente precisa de uma ruptura e sucessão? O trânsito livre
pelo mercado integrado pela acessibilidade da globalização revolucionou as
concepções de liberdade e desenvolvimento, diálogos culturais, mas também
acentuou as mazelas do indivíduo, expondo fragilidades.
Forjada
nas frustrações sociais, a democracia foi usada como brasão de um sistema de
ordem social. “A crença democrática é a crença no homem comum… é a crença na
capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida”. DEWEY (1939).
Concebida como o governo do povo, a democracia foi disseminada para todos como
um mecanismo para todos, mas suas especificidades não eram expostas. Desde a
Grécia antiga, passando por suas diversas releituras, a democracia embutia em
sua operacionalização a exclusão do próprio povo, pela seleção das vozes
interferentes do que vem a ser a ideologia democrática. Se conceitualmente povo
representava uma sociedade de homens livres e de direitos iguais, na prática,
essa concepção de povo se referia ao povo controlado, mas o povo interventor
nas políticas públicas não tinha a voz de mulheres, escravos, e jovens menores
de 18 anos.
Assim,
podia-se dizer que o sistema político ateniense era constituído por homens
livres selecionados, pois uma triagem era realizada para definir quem pertence
como interventor no referido sistema. A esfera pública então, não representa o
povo em sua totalidade, mas o controla sob o argumento de representar a voz
popular.
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada
para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da
vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir
comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em
sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.
(HABERMAS, 2003: 92).
Assim, é possível também perceber que
a opinião pública não representa a representação popular, da sociedade, mas sim
a manifestação da vontade de um grupo dominante que se impõe como consenso,
como opinião da massa.
"Uma das dimensões muito importantes da
teatralização é a teatralização do interesse pelo interesse geral; é a
teatralização da convicção do interesse pelo universal, do desinteresse do
homem político – teatralização da fé no padre, da convição do homem político,
de sua confiança naquilo que faz. Se a teatralização da convicção faz parte das
condições tácitas do exercício da profissão de clérigo – se um professor de
filosofia deve parecer acreditar na filosofia -, é porque é a homenagem
fundamental do personagem oficial para com a autoridade; é aquilo que precisa
conceder à autoridade para ser uma autoridade, para ser um verdadeiro
personagem oficial. O desinteresse não é uma virtude secundária: é a virtude
política de todos os mandatários. As escapadelas dos padres, os escândalos
políticos são o colapso dessa espécie de fé política na qual todos estão de má-fé,
a fé sendo uma espécie de má-fé coletiva, no sentido sartriano: um jogo no qual
todos mentem a si mesmos e aos outros, sabendo que os outros também mentem a si
mesmos". (Bourdieu 2012)
Durante
muito tempo o modo de controle popular, de subjugar a opinião pública, pela
castração do direito de participar do processo decisório. A observação quanto
aos argumentos de Bobbio (2000) quanto a democracia, o controle e legitimação
do controle introspectados nela evoca
uma reflexão além de paradigmas. A massa tem força para intervir, mas não tem
união e direcionamento. Sua voz é forte, mas seus argumentos não tem
continuidade.
O
poder de intervenção da massa está na sua expansão territorial, envolvimento
nas diversas camadas produtivas da sociedade e pelo seu quantitativo em grupo.
Se cada indivíduo estiver alinhando e com a cultura de mudança e participação
política como principio introjetado
em sua constituição pessoal, quando em grupo ele se comportará de maneira
alinhada aos demais e assim propiciará a construção de um consenso, de uma
multifacetada voz de intervenção política e social.
Bobbio
em sua obra discorre sobre os aspectos que orquestraram a dissolução da
sociedade orgânica em prol de ideologias individualistas de sociedade, baseadas
na sobreposição de poderes e supressão de direitos. O contratualismo, e sua
hipótese de estado de natureza, na qual o povo deveria aceitar soberanos
naturais em acordo para reger a sociedade rumo a vida e liberdade remete às
defesas de argumento de Hitler na estruturação e seu governo. Soma-se a isso a
economia política e sus visão do indivíduo singular como membro ativo
(economicamente) e a filosofia utilitarista considerando estados essencialmente
individuais.
Neste
cenário, a democracia então propiciou o surgimento do liberalismo. Se um
defende a voz e participação política do povo, o outro defende as liberdades
individuais, e especialmente a liberdade econômica. O Estado era visto como um
personagem a parte no mercado, dessa forma nasceu uma sociedade industrial
capitalista, focada na conquista de mercado para alimentar liberdades
individuais e potencializar o consumo dos sujeitos como alimento para o mercado
e sistema de produção.
Em
uma sociedade liberal, onde as decisões por meio de práticas democráticas
previam deliberação pela votação de agentes racionais. A valorização do
coletivo era modulada pela aceitação do poder decisório da maioria sobre a
minoria. Então, a soberania popular foi compreendida como verdade com a
instituição do sufrágio universal a partir do século XIX. No entanto, a
liberdade do voto era cerceada pelos interesses políticos e econômicos do grupo
dominante do sistema vigente. A democracia como o consenso a partir de
tradições e nacionalismo, o liberalismo como a constante quebra de paradigmas
em prol das liberdades individuais, mesmo que isso represente suprimir os
direitos de um grupo menor.
... o que distingue um sistema democrático dos sistemas
não-democráticos é um conjunto de regras do jogo. Mais precisamente, o que
distingue um sistema democrático não é apenas o fato de possuir as suas regras
do jogo (todo sistema as tem, mais ou menos claras, mais ou menos complexas),
mas sobretudo o fato de que estas regras, amadurecidas ao longo de séculos de
provas e contraprovas, são muito mais elaboradas do que as regras de outros
sistemas e encontram-se hoje, quase por toda parte (BOBBIO, 2000, p. 77-78).
As
democracias modernas então, para subsistir, dependem da limitação da maioria;
procedimentos eleitorais com fluxos definidos; transmissão do poder dos
representantes em um processo complexo e fechado. O desafio da
operacionalização de um sistema democrático não está apenas na definição e
garantia dos fluxos, mas sobretudo, na conquista da credibilidade e confiança
junto à sociedade. A população deve estar convencida de que o processo vigente
é o mais eficiente e confiável possível para definição do poder representativo
e constituição de políticas públicas.
Sabemos por experiência própria que no momento mesmo em
que a democracia se expande ela corre o risco de se corromper, já que se
encontra continuamente diante de obstáculos não previstos que precisam ser
superados sem que se altere a sua própria natureza, e está obrigada a se
adaptar continuamente à invenção de novos meios de comunicação e de formação da
opinião pública, que podem ser usados tanto para infundir-lhe nova vida quanto
para entorpecê-la (BOBBIO, 2000, p. 17).
Na
constituição de um regime democrático, a oposição precisa não ser morna, mas
oscilar entre o ser “fria” e ser “quente” para assim justificar as transições e
até mesmo reforçar regimes. Neste mesmo cenário, a miséria e a apatia da
sociedade devem ser controladas para garantir que o regime político flua sem
grandes obstáculos e ruína. Percebe-se então que a desigualdade deve sempre
existir, mas nunca em demasia ou escassez, tendo um pluralismo subcultural
baixo como mecanismo de participação política.
As
nações em que o método democrático supracitado mais ocorrem são as grandes
nações industriais. Neste sentido, para favorecer esta estrutura precis de
alguns aspectos tais como: Grupo dominante (mateil humano da política de alta
qualidade); limitar o centro de decisões; formalizar os fluxos em uma
burocracia tradicional, bem treinada; Controle e aceitação dos limites
democráticos. Ou seja, o controle da participação e da aceitação é primordial
para a perenidade do sistema.
Acredito, e já o disse muitas vezes, que não deve o
sapateiro ir além do sapato. Não creio em versatilidade. Recorro ao sapateiro
quando quero sapatos e não ideias. Creio que o governo deve caber àqueles que
sabem, e os outros devem, para seu próprio bem, seguir suas recomendações, tal
como seguem as do médico (STONE: 1998)
Schumpeter
apresenta uma perspectiva que corrobora com o pensamento de que no socialismo a
produção e distribuição de bens e serviços atenderia as necessidades autênticas
da população. Sem considerar as nuances do capitalismo que renovariam o mercado
e o potencial de cada indivíduo em empreender e rever as relações de trabalho e
produção (ex: tecnologias e livre mercado), Schumpeter via uma transição do
capitalismo para o socialismo como algo necessário para sanar as mazelas
sociais. Contudo, a burguesia sempre temeu a ascensão dos pobres e por isso
sempre teve nas restrições do sufrágio um mecanismo de defesa.
No
terceiro milênio, a esquerda entrou em colapso ao não conseguir se estruturar
de forma a coexistir com o capitalismo, uma vez que as interferências e
interdependências financeiras e das relações comerciais conflitam o pensamento
de esquerda no que concerne a democracia e desenvolvimento.
O
capitalismo de forma natural suprimiu a democracia liberal, que defendia a
liberdade do indivíduo e sua interação e voz enquanto povo. Entretanto, o
pleito pela igualdade no acesso a recursos (bens e serviços) cada vez mais
crescente não tem ganhado espaço no centro decisório, uma vez que a opinião
pública castrada não consegue se estabelecer coo interlocutor de um contexto
social pujante, na iminência de mudança, em face de ruptura com o sistema
vigente. Assim as manifestações sociais ganham mais força e recorrência, pois se
instalam no contexto social como uma terceira vertente entre a narrativa do
poder e a narrativa da suposta opinião pública.
A
democracia é o poder do contra. É o fluxo alternado das decisões padronizadas
pelo grupo dominante. O voto censitário, o sufrágio universal; tentativas de
encontrar um modo de viabilizar a materialização de conceitos e práticas de uma
política que viabilize a sociedade de forma organizada e aprazível para todos.
O Estado alternou suas formatações de patrimonial, absolutista, e de direito ao
longo das gerações, adequando-se à nova dinâmica de uso e ocupação territorial,
com os movimentos populares sendo imponderados. Os Estados atuais intercalam
entre democracia clássica, democracia progressista ou socialista e autoritário.
Enquanto os democráticos possuem sistemas parlamentarista, presidencialista e
de assembleia, os autoritários se baseiam em cesarismo, ditadura e o poder
individualizado.
Os
autoritários defendem a ideologia de um grupo dominante, representada pelas
vontades de uma liderança, enquanto os regimes democráticos deverias estar
focados na realização da pessoa humana, na satisfação do indivíduo visto como
comum (destituído de poderes interventores no grupo dominante da sociedade).
Todavia,
é relevante para a compreensão da coexistência dos diversos sistemas políticos
e regimes a licença social. A aceitação da massa quanto ao que lhe é imposto.
Aceitam o sistema, mas não necessariamente as ideias isoladas e demais
deliberações. A alienação controlada nos sistemas autoritários faz com que o
indivíduo tenha a limitada sensação de liberdade em busca da satisfação pessoal
(para atingir seus fins da maneira que desejarem sem que esses fins interfiram
na dimensão política) e se sinta um cidadão capaz de contribuir na organização
e desenvolvimento da sociedade.
Stork
e Echevarría tratam da liberdade social como algo "em que os ideais possam
ser vividos, e que toda pessoa tenha em suas mãos, a possibilidade de realizar
suas metas". Nesta linha, Kant aborda a liberdade como o direito do
indivíduo de dar próprias regras e moral à vida, e não apenas exercer vontades.
Trata-se de algo construído, o livre arbítrio. Sartre a vê como condição
natural do ser humano, manifestado pela vontade. Marx a vê como atributo dos
indivíduos em relação aos bens materiais e serviços. Tantas outras são as
leituras do que vem a ser liberdade e qual a liberdade ideal e qual a almejada
pela sociedade.
A
liberdade como premissa de ser “mestre de si mesmo” não pode existir com os
padrões de organização social contemporâneos. Uma estrutura de vanguarda seria
necessária, pois ao observarmos o Estado Liberal de Direito, com a democracia
clássica (estruturada no sufrágio universal / equilíbrio de poder / pluralismo
partidário / autogoverno locais / supremacia da lei) e a atual configuração de
conflitos sociais, percebe-se seu colapso.
A
estabilidade social não está ligada à estabilidade política, uma vez que
percebemos que a configuração social segmentou suas expectativas e confiança do
sistema político. Desta forma, um processo de entropia está instalado na
sociedade, de forma que os conceitos como democracia e liberdade perderam sua
força social e tornaram-se bandeira de movimentos e manifestações.
A
trajetória de tentativas e erros da comunidade primitiva, escravidão,
feudalismo, capitalismo, socialismo mostra uma busca do ser humano por
harmonia, paz, perenidade, personalidade, conforto, subsistência, igualdade e
liberdade. Não há mais espaço para sistemas amparados em violência e força como
imposição social e argumentação política (Facismo). A pseudodemocracia garantiu
ascensão política de ideologias e indivíduos que afetaram a psique social de
forma fazer emergir guerras como instrumentos de harmonização da comunidade
local, nacional e mundial.
Os
conflitos passaram a ser concebidos como instrumento de resolução de
controvérsias sociais e interesses divergentes. Seja na escala local, com
manifestações de classes, ao invés do diálogo instituído, seja pelas guerras
civis, crimes organizados, guerras entre nações.
O
retrato social reforça o quanto estão obsoletos os sistemas percorridos, e
evoca uma mudança, sem receitas, sem caminhos, apenas rumos. As decisões
políticas e ideologias não podem mais serem tratadas com ortodoxia, como dogmas
da organização social.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. (2000). O futuro da democracia. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
BOURDIEU, Pierre. Fonte: Le Monde Diplomatique – Il
manifesto, via micromega Janeiro de 2012 / Tradução: Mario S. Mieli
Cf. Stone, I, F. (1988). O julgamento
de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Cf. Dewey,
John (1939). “Creative Democracy: the task before us” in The Essential Dewey:
Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública:
investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro,1984.
SCHUMPETER,
J. Capitalismo, socialismo, democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
pp. 305-366.