quarta-feira, 21 de julho de 2021

Soro - 1ml

 


Sopro. Conta-gotas do soro no hospital. Imagem em close da gota que cai. Adoram close. Pinga a roupa estendida no varal. Hoje lavei roupa, como em muitos dias. Hoje a lua estava esplêndida, semelhante a muitas semanas. Procurei em tantas coisas o antídoto da realidade, que sempre soube que estava ali, no silêncio dela ao dormir, no movimento dos meus filhos a dormir. Na maneira sublime e plena deles interagirem com o que existe, com o que conhecem e o que passam a conhecer. Não era antídoto que precisava, não estava com virose, foi apenas a enfermidade da falta do tempo. Conta-gotas. Abertas janelas acenam a dobra do horizonte. Sabemos, não há feitiço, nem tempo. Estamos. Não preciso dizer meu nome. Você está olhando para mim.


Piscou. A princípio como um pano de fundo, depois um risco no céu. Choveu; de poucas gotas no vidro a rios ruidosos descendo fachadas, escorrendo pelas ruas. Piscou. As pálpebras ainda estavam cansadas. Chorou. Não foi uma gota apenas, mas um riacho que brevemente secou-se no silêncio do quarto frio.


Esse medo da morte, iminente rompimento na nossa ideia bairrista de eternidade. Essa mania de desejar que tudo dure para sempre para si, mas não para o outro, uma vez que não pensamos no espaço para o outro, e no que implica a intermitência da morte; uma vez já desdobrada por Saramago. A perenidade como estandarte de uma sociedade paradoxal, pois se alimenta do caráter punitivo que compartilha através de gerações.


Um humor sem traje trejeitos e trajetória era o alívio cômico. Olhar pela janela lateral sempre foi tão agradável quanto olhar pela frente. O que de fato encanta é a dinâmica do horizonte. Intocável enquanto distante, dissipado quando se aproxima, pois o corpo em movimento não concebe o que é vivenciar a proximidade, a inserção no horizonte, mas apenas consegue o contemplar, na esperança de alcançá-lo, mas ter no lugar um novo horizonte para olhar.


Antes de avançar, necessário perceber o que há ao redor. Um giro lento, porém breve de cabeça. Se outrora estive na casa de cartas, enterrando décadas de habilidade em desviar de articulações maldosas e de sanguessugas da alma, por outro me restabeleci em uma associação de gentis malucos, um universo à parte, com o resumo de todos os estereótipos do mundo. Estava feliz. Entre tantos heterônimos de pessoas tão peculiares.


Um deles, perdido na fórmula alcalina das bebidas que traziam um pouco de sanidade a ele, juntamente com o tabaco. Andar era seu escape, como uma panela de pressão soltando vapor. Seu silêncio e semblante enigmático marcavam sua personalidade que às vezes fora da realidade, às vezes integrado em demasia a ela, rasgava o ar com uma gargalhada insana. 


Um outro, insatisfeito com a vida como as pessoas se portam nela, pois ele enfrentou situações extremas para conseguir suprir as básicas necessidades sociais. Não tolerava o performismo social e se portava com indignação, a não ser que esteja bêbado ou galanteando alguma mulher, que não a sua. Ele empossava a voz para ler bulas de remédio e reclamar de tudo o que seu olhar tocasse. Cansado da vida, seu rejuvenescimento era etílico, ou entre os poros de uma mulher.


Era possível uma pessoa se transformar? Ou ela apenas tem um caráter volúvel que se manifesta de uma forma para cada núcleo social que habita? Sendo que o conflito nasce dos desencontros de núcleos divergentes. Perfis semelhantes em instantes diferentes. Tinha um que de perto, era o contrário de tudo o que diziam dele, e até mesmo, o contrário de quem ele realmente foi durante décadas. Ele, quando de baixa guarda, revelava com o semblante o cansaço de uma vida. A fé o restaurou, e ele transitava entre o buscar se integrar aos novos tempos e saciar-se da paz de estar entre pessoas queridas.


Havia também o ancião. Exausto, mas com um vigor. Uma memória que cabia milhares de civilizações, personagens e desdobramentos, da fundação à extinção. Era a enciclopédia orgânica, com um olhar apurado sobre a realidade e um senso estético de espantar a muitos jovens. Bem humorado, suas piadas eram sem rir, as melhores. Entretanto, quando confuso, não raro, em um rompante fazia tremer as paredes com a rouca voz de ira. Paradoxo das passionais pessoas amáveis. Oscilar entre a doçura e o amargor, conforme a temperatura da realidade. 


A maneira como se desdobram os dramas de cada um nos permite compreender que cada um, em seu universo particular, tem dores e amores que direcionam suas lágrimas e seus suspiros. Seja de dor, torpor. Isso nos ajuda a permanecer dentro de nossos quintais emocionais, sem fazer estardalhaço do que nos dói ou faz sorrir. A intermitência da lâmpada fluorescente, como um abajur de Thompson, me lembrou o porquê de ter trocado tudo em casa por Led. 


Conta-gotas. A chuva se lança das nuvens e começa a fazer barulho. Os intervalos entre uma gota e outra. Cai no metal, nas grossas folhas das plantas, na terra, no plástico dos toldos, nos telhados de metal, na minha face, dentro de mim. Aumenta o ritmo, o frio vem com o frescor. Sem trovões, raios ou plateia, a chuva de ritmo marcado me banhou naquela manhã. A narrativa da intermitência me faz pensar no comportamento das pessoas, algumas tantas que se portam como algozes dos demais. cansa, minhas memórias escorrem com as lágrimas na chuva. Barato clichê.


Os intervalos me eram de refrigério. Os sinos tocaram na pizzaria. O som agudo nos inquietava. O desconforto e o encantamento trouxeram paz e iluminaram meu modo de perceber a vida; mais uma vez. A criança era puro voo, batendo talheres nos pratos, fazendo música ao coração de quem o pedia para continuar, de quem o via crescer, de quem o viu nascer. Um momento simples, mágico e dependendo do ponto de vista até mesmo irritante, mas encantador. Meus filhos. Anjos atemporais. Eu era o transitar sem amarras pela malha social. Aprendi a me encantar com o que há de sutil, silencioso e sem palavras.


Quando o simples sonho realizado ressoa pela sala, reverberando as paredes, é encantador o modo como transforma as rugas em estandartes do sorriso de satisfação. O corpo passa sem a consciência do que carrega. Olhares se entrecortam sem perceberem o que entregam. Semente.


Curioso, pois chove. E com ela toda elegância das sonoras gotas da madrugada; o frescor abafado do beijo silencioso da brisa, que passa ainda em contraste com o que me resta de luz, que da lua vem. Ela me lança, então, sutilmente provando meu desconhecimento de mais palavras capazes de manifestar em plenitude o que vem a ser depois da chuva, enquanto chove.


  • Seu tempo acabou.


Levantei-me e saí. Compreendendo que ninguém dispõe de muito tempo para conhecer a névoa que é caminhar na mente das outras pessoas. E olha que eu nem estava em um divã. Apenas um café. Desci a escadaria do beco com pressa, mas sem desespero. Cogitei a ideia de levar algo para comer no escritório, mas eu não trabalhava em um escritório. Passando em frente a loja de livros usados, meu templo, meu cemitério, pensei em levar uma edição rara de o Burrinho Alpinista para presentear. Não haviam braços para meus abraços, ouvidos para minhas palavras, olhares para meus traços. Desde o dia. Desde o dia. Meus passos marcam na cidade o rumo daquele que fica. Porque não podemos escolher entre sonhar e estar acordados? Sonâmbulos. A consciência da aparência oscila. A sonoridade de algumas palavras me fazem mais sentido que o conteúdo, conceito, lembrança, o rastro. Estranha sensação. Estar acordado em Shell Beach. E uma vez assim, não se volta a dormir como antes. Vejo as pessoas em seus automatismos e suas percepções; afogados no fazer prático. Tenho a estranha sensação de que nada novo há de ser, como traçou Wilhelm, a não ser viver de forma plena, intensa e em paz, cada instante. Apoteótica como vem, se vai; a realidade.

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