quarta-feira, 28 de julho de 2021

Soro - 2ml

 


A tela do smartphone se destacou. O close-up de um leão sério. Como se houvesse outra expressão em um leão. Entrou em modo de economia de energia, 

mas a imagem imponente do leão permanecia olhando para ele. Ficou 

pensativo,  a selva na qual era

bem-vindo o abandonou. 

Nem isso mais importava.

Ele finalmente estava em paz.


As pessoas não querem paz. O coletivo. Quando se juntam, o assunto gira pelas dores, amores, anseios, frustrações e sobre a vida do outro. Os diálogos se tornaram cansativos embates. Não se aprecia um silêncio compartilhado, tampouco a conversa despretensiosa, sobre os detalhes da vida que suportam a sociedade. A dureza dos muros e fachadas. Pessoas que se erguem como edifícios, que se escondem na intensidade do fluxo das grandes cidades. Olhos marejados, querendo a tranquilidade do acordar, tomar o café, estar em paz. Desfrutar da paisagem o alto da serra, ou no quintal, seja noite, dia ou madrugada. Respirar. Procurava o ar. Lembrou-se dos shows, quando no meio da plateia, ele conseguia olhar para cima, e respirar o ar fresco acima da camada abafada. Procurou o ar, no silêncio, no vento, nas páginas.


Ninguém percebia mais; ele cumpria suas tarefas do dia e saía. Na cafeteria, sentava-se à mesa perto do vitral. Era como estar acompanhado durante o café, por uma bela companhia. Em silêncio, ele não parava de conversar. Descontrolado, pois se ouvidos não têm pálpebras, imagina os ouvidos internos. Não conseguia silenciar-se, pois estava a construir a morada de suas angústias, muito mais eficiente do que a caixa de Pandora. Ainda mais efetiva do que as paredes de Dédalos. E fruto de uma jornada maior do que os círculos de Dante.


Não era mais um na multidão, pois não se tratava de uma grande cidade. Não era o misterioso estrangeiro de Camus que se esgueira pela sociedade, pois todos que o olhavam percebiam e se lembrava daquele dia, de alguma forma, pensavam nele e seguiam. Alguns rostos parecem ter a mesma fôrma.


A taça de vinho estava pela metade. Não era incômodo assentar-se sozinho à mesa no restaurante. De fato, era até reconfortante. Após os devaneios de uma mente solitária, ele passava a assistir o derredor e suas peculiaridades.


Neste dia, na mesa ao lado tinha a conversa de um casal. O homem contava uma história de uma empresa, apelidada carinhosamente de o Grande Faraó, que trai que por ele derrama sangue e suor. A mulher ouvia a tudo com bastante atenção. Os escravos faziam de tudo para o Faraó: cortavam cabelo, riam das histórias repetidas, mentiam em juízo, cuidavam de aspectos pessoais como trabalho escolar da filha, levar a filha para vacinar, para se inscrever em escola, e tudo o mais que concerne a um bom escravo. O curioso era que o Grande Faraó utilizava recursos de impostos para fazer propaganda de seu reinado, tudo com a chancela de uma visão social sobre as cidadelas em que tinha terras. Avançando neste modelo, ela começou a utilizar os escravos para eles criarem projetos, que com os recursos dos impostos, defenderiam o nome e legado do grande faraó. Anos se passaram e agora esta estratégia enraizada no reino se tornou também medida para que o Faraó não desse aumento de salários aos escravos, pois deu a eles pagamento via parte dos impostos, e ainda tornou-se esta medida em defesa, quando a grande praga matizes chegou ao reino. Entretanto, algumas pragas surgem para equilibrar o ambiente. Faraó não percebeu. Então, a estratégia de usar os escravos como terceiros em ações viabilizadas com recursos de impostos do reino serviu para acabar com a praga criando um marco social bem no meio do ambiente conflituoso, para dar publicidade ao altruísmo do Faraó, para amenizar os ânimos dos camponeses em mais outras três cidadelas onde havia intenso conflito com o Faraó (que a todos cala com poder, palavras e dinheiro). No entanto, percebendo que de tão usual, tornou-se vulnerável a imagem do governo perante a sociedade por usar esta estratégia, o Faraó decidiu queimar os escravos em praça e eximir-se de qualquer envolvimento. Contudo, os escravos não morreram; e no ressequido solo do deserto a flor se ergueu, floresceu um oásis.


A mulher ao final da história desligou o gravador. Da mesa ao lado, ele percebeu que o casal não estava em um momento íntimo de troca de confidências, mas que tratava-se de uma entrevista, daquelas boas de se ouvir, pois em versos miúdos, o homem dava nomes, cifras, endereços e demais atributos para completar as lacunas da história com fatos que soltos estão mudos, mas conectados formam toda a trama, não capaz de derrubar o faraó, mas pelo menos mudar seu rosto.


A taça de vinho secou. A resposta muitas vezes está nas perguntas sem resposta.



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