quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Soro - 10ml

 


Forma redonda, borda quebradiça. Uma quiche dourada chamava atenção no balcão. O cheiro, a cor. As possibilidades. O interesse vem pelos sentidos, pela necessidade, pelo mecanismo individual de prazer. O clichê a calma, chuva sem trovões, café quente, uma torta e um espaço vazio. Música ambiente é opcional.  

  • Ando sem paciência para o sentimentalismo alheio. Nem é falta de paciência. Assemelha-se mais a uma apatia controlada. Não sei ao certo como explicar. Pode ser algo transitório, ou uma degenerativa reação da minha mente à realidade. Encanto-me ao ver as crianças brincando na rua, em casa, nas árvores, nas poças d'água. É mágico observar como elas lidam com a realidade. Admiro o modo como os idosos se desfazem do tempo. Como transitam pelos espaços, pelas expectativas e frustrações de uma sociedade que os ignora. lembrados apenas nas datas comemorativas e em discursos corporativos. Esquecem-se todos que se não morrerem jovens, todos estão rumo ao envelhecimento; da carne. O envelhecimento do espírito depende essencialmente do que escolhemos.


Este pensamento, dito “auto” no escuro do banheiro, talvez tenha sido o que despertou a Realidade, sempre à espreita, para fazer o que fez.

Enquanto esperava o café ficar pronto, permaneceu pensativo, remexendo coisas antigas em sua mesa de canto. Era como se escondesse do presente, remexendo no passado. Assim, o futuro dificilmente poria as mãos nele. Embora o risco estivesse na Realidade.

Um monolito em contraste na paisagem escarlate. A figurinha de um chocolate. Surpresa. O registro de paisagens que talvez ele nunca fosse conhecer de perto, a não ser que aproximasse a foto bem perto ao rosto.

Ficou por instantes observando a foto. Pensou em colar no álbum. O sorriso de canto de boca era a manifestação de suas memórias empoeiradas. Sentiu o afago da lembrança da infância. O que a princípio era uma boa recordação, rapidamente tornou-se uma insípida sensação de distância. De quem um dia foi, da simplicidade que um dia teve, e da ingenuidade de se divertir com madeira, ferro contorcido, bola, fogo, avião de papel. 

Duas latas de achocolatado. Dois bastões de madeira. Duas crianças.  Cada um em uma extremidade da rua. A noite acobertou dois infantes sujos em busca de um pouco mais de diversão. Primeiro amassar as latas, depois o revezamento de bater na lata imaginando ser um jogador de baseball, de golf, ou apenas um desordeiro do Conte Comigo a exterminar caixas de correspondências. A cada batida na lata ela se deformava e voava para o outro lado da rua à espera do golpe conseguinte. Assim ambas ficaram de um lado para o outro, sofrendo golpes, deformando-se. A matéria que sofre pelo prazer de quem a domina. Imagina se fosse uma pessoa, submetida a um sofrimento em função da necessidade, ou vontade, do outro de se satisfazer com o exercício do controle. Controle. Brincadeira de criança não tem controle. Tem início, tem fim. A madeira subjugando o ferro. A natureza deformando o objeto criado. O homem criando a partir da destruição. A coisa ganhando significado. Ele não se lembra, mas na calçada, a Realidade analisava sonhos.

Guardou a foto e as lembranças. Decidiu que o expediente do dia seria outro. Subiu a serra sem pressa. Carro de vidros abertos e o som bem baixo. Se o frescor das montanhas fariam bem às ideias, isto importava menos. Ele não percebia a Realidade, mesmo se ela gritasse. Exilado em si? Parou o carro, bem estacionado, no canto da estrada. 

Andar pela trilha de terra despertava uma sensação de paz que sobrepunha a angústia e resignação do cotidiano. Escutar os sons dos atritos. Pés com a terra, borracha com madeira, com a terra, com folhas secas. O chão úmido insinuava ser região de cachoeiras. O som ao fundo confirmava e a brisa excitava os poros com as gotículas misteriosas e poderosas que uma cachoeira despeja no vento. Completamente diferente do conflito de argumentos e egos ao largo das cidades, lá embaixo.

Deitado, debaixo da queda d´água ele sentia sua mente ser lavada, sentia-se isento do passado, do presente, imune a Comma, a Realidade, mas não imaginava como Soro iria influenciar não apenas seu corpo, mas também o modo de se relacionar com a Realidade.

Antes do crepúsculo decidiu retornar. O caminho de volta, na verdade é uma nova ida. Ele estava disposto a seguir, afora os obstáculos que pudesse encontrar. Seu carro parecia conhecer o caminho de casa, pois distraído, ele dirigia de forma autômata, olhando a paisagem, dando vazão, no olhar, aos pensamentos.

O som da chuva nas folhas o acalmava. O silêncio de um ambiente sem ninguém acordado por perto era aconchegante. Era como se ele houvesse naquele instante; assim, poderia pedir perdão pelos pecados, perdoar-se, compreender, em uma leitura em braile, todas as cicatrizes emocionais. Era possível, sem expectativas, perpassar os sonhos sem a necessidade de compreender.

No escritório sua mesa permanecia com a mesma falta de pendências. Tudo em dia. No entanto, ao puxar a cadeira para sentar percebeu no assento o bilhete.

Suas pernas tremeram, seu corpo  já tinha esquecido desta reação. O bilhete era um convite. Aceitar implicaria em mudar a trajetória de seus rumos. Ele tinha ciência disso; que era um momento em que o desdobramento da escolha iria interferir em sua rotina, física, psíquica e emocional.

Chegou ao café, a mesa já estava reservada, mas não por ele. Um brownie especial. Um jornal encardido. Uma flor ressequida. Era alguém que o conhecia. 


  • Não se preocupe. Ela não virá.


Surpreso, repetiu mentalmente a frase do garçom até compreender a profundidade do impacto daquelas palavras. Atônito, demorou a tomar o café, tomou-o frio. Quase não comeria o brownie. Enquanto lentamente comia, o garçom chegou com outro café; quente.


  • Ela disse que o primeiro esfriaria.


Ela… que ela? Como conhecia tão bem meu paladar a ponto de escolher a minha mesa, o meu cardápio, o meu tipo de leitura? Ela não virá… [A cada gole uma palavra, a cada pensamento um sabor. O brownie acabou e junto da conta, que já estava paga, veio outro bilhete. Desta vez com um endereço novo. Suas pernas não tremeram, seu corpo em equilíbrio; conhecia aquela rua. Beco das livrarias.

O cheiro do mofo das paredes externas não chegava até o hall das livrarias. Leve perfume de cânfora pontua as estantes mais úmidas. Ele conhecia a posição dos livros. Sabia onde estavam os trechos prediletos. Surpreendia-se com uma sorrateira poesia sorteada em um breve devaneio do olhar sobre as páginas. Ali ele estava em paz. Até então nada, a não ser os livros, podia o alcançar naquele local.

O clichê do de repente se fez presente além da rima. O vento fez bater a janela ao fundo, ele virou para olhar e não percebeu o esbarrão da criança que saía feliz com um livro na mão. Quando se voltou para a estante deparou-se com o atendente, mas não o de sempre.


  • Ela não virá, menos ainda no vento, ou no solavanco das ideias em inércia.


Gradativamente voltou a sentir. O efeito da anestesia desfeito na brisa. O cheiro das páginas e seus sentidos além dos sentimentos e trocadilhos. Assentou-se no sofá do canto. Não na poltrona isolada, mas no sofá, onde caberia pelo menos mais uma pessoa. Não estava com fome. Já tinha lido o jornal. Nem ainda tinha dado saudade dos livros. Olhou ao redor em busca de um novo bilhete, procurando por algo que talvez o fizesse tremer novamente as pernas. Não encontrou. Era dia de ser encontrado.

A sensação era de ser observado. No entanto não viu ninguém suspeito. Como se soubesse, a este momento, o que seria uma pessoa suspeita. Todavia, a sensação não era de tensão, de opressão ou desconforto. Era a de ser observado com carinho, proteção.

Enquanto folheou as páginas do livro do desassossego, sentiu como se ao tropeçar na preposição caísse em queda livre em um universo tão introspectivo que chega a perder a sequência lógica. Com olhos vidrados, passava as páginas a ermo tendo a atenção presa no que passou em sua mente. Atônitos, assistimos à derrocada do nosso vocabulário, em contínuo processo de atrofia. Um processo inversamente proporcional ao movimento de expansão do universo. As palavras ficam repetidas, perdem visibilidade e até mesmo sentido. Abreviações dos valores, sentimentos e razões. As páginas dos livros parecem ter importância maior quando à estantande do que em nossas mentes. Cada qual rei e executor de uma verdade própria, que pouco contribui para a manutenção da vida. Somos reféns de nossos olhares, tornamo-nos insanos em função dos nossos desejos. Quando distinguimos sonhos de realidade, damos início ao processo de registro das frustrações. Surge então também uma limitação em dizer algo novo; talvez por não haver no universo das coisas criadas, o ineditismo, mas quem sabe ao menos, em determinadas circunstâncias, a limitação ter como trava um grande trauma. Daqueles tão peculiares.

Ela virá, mas nem tanto importa. As ações dela já o impactaram sem que ela estivesse presente. Aquele momento extasiado diante do livro, viajando em seus pensamentos sem filtro, sem as amarras de ter de explicar algo ou fornecer resultado numérico, alguma frase com ponto final. Ela virá.



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