quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Soro - 7 ml

 


A xícara sobre a bancada da cozinha. O café de gosto intenso o despertava dos momentos de devaneio. Era uma manhã diferente. Ele, embora despertado, não estava eufórico, não se precipitou a ponto de deixar brecha para que a Realidade pudesse interferir mais uma vez em sua vida. Conseguiu se desprender dela. Se virtude, evolução ou doença,  importava menos.

O tempo fechou. Chovia opiniões alheias lá fora. Ele saiu sem guarda-chuva, nada mais o atingia. Conseguiu entender.

O traço encontra um rumo, como água, como vento, um a mais elemento da natureza de quem existe, além das rimas, quinas e esquinas. Em um café em Viena, um cappuccino em Praga; seja nas fotos, entre os animais noturnos, seja na ligação de Natal não atendida. Ele sentiu.

Curioso, pois chove. E com ela toda elegância das sonoras gotas da madrugada ressoam no dia. 

O frescor abafado do beijo silencioso da brisa, que passa ainda em contraste com o que me resta da luz que da lua vem. Ela me alcança então, sutilmente provando que não conheço mais palavras capazes de manifestar em plenitude o que vem a ser depois da chuva, enquanto chove. Persisto sentindo em cada poro o desafio de existir. Além das bandeiras sociais, consigo ver um pouco além, à frente. Consegui conceber o que há ou que algo há, afora as fronteiras. Minha cabeça então separava-se de mim, o que vejo é menos do que é mais do que sei.

Rajada lateral, o silêncio transita pontuando espaços, pensamentos e transformando sensações. Desta feita, o famigerado olhar percebe de forma diferente o derredor, rompe membranas sociais, alcança um novo aspecto, dissocia-se para habitar-se.

Percebia as diferenças, as incoerências, inconsistências, rimas das pessoas, dos instantes. A fragilidade do corpo, as doenças, dores, limitações. A carne em processo de morte, a mente liberta dos paradigmas sociais, de uma organização social que castra, para manter a imagem do equilíbrio. O distanciamento da massa, tornando-se invisível é mito. Sempre alguém o percebe. Entretanto, o distanciamento da massa por meio do desvincular-se da crítica, é sim revigorante, e duradouro. Confinar-se à amplitude de estar apenas com os amigos, sem deixar de ter ciência de onde estão os inimigos. Todavia, sem necessidade de os prejudicar. Percebia como a temperatura alterava a sensação e sabor das coisas.

A beleza do céu, das cores e cheiros, dos movimentos espontâneos da vida, sincronizados, encantadoramente simples, em uma trama complexa; a vida evoluiu, com mais sabor e paz. Com mais sabor e sentimento. Com mais vida.

Afora os clichês, a naturalidade de ser, sentir, vivenciar a textura dos instantes sendo em si um mesmo, diferente. Ele não havia se decidido sobre sair de casa hoje.

Volúvel como o clima. Distante sem medidas. Inerte; perpasso minha vida pelo divã dos meus sentimentos e minha razão. Intenso como o tempo, transformo-me e tenho adaptado o olhar além das cercas vivas, das palavras mumificadas e dos padrões que acorrentam corações, escondendo a paz. Seu som descendo pelas minhas ideias. Escorre chuvisco matinal de uma manhã deliciosamente aconchegante, refrescante. O gosto de café e seu aromapoesia. A sensação de pertencer ao instante e não estar preso no voo, mas liberto no pensamento.

Doce trajeto de um singelo voo. Asas destino a dedilhar o olhar no vento. Aconchego do repouso das palavras que florescem sentimento. Sempre há o algoz sobre as cabeças a tentar conter a todos em aquários, coleiras, estábulos, estantes.

Trovões no amanhecer não assustam. Relâmpagos na curva do horizonte tampouco iluminam mais que o sol a contraponto. Saiu. Contudo, foi o rompante do porvir que o fez voltar. Estava à mercê do tempo que não mais passa, quando o vento subverteu a paleta de cores da paisagem e com a chuva mudou novamente. A mesa para o vinho, o banco para sentar-se e ter a vista. O cão no quintal, sem pelo alto, sem grandes peripécias, mas com lealdade. Una, a escrita sem hostilidade, sem ser desinteressante e sem despertar o interesse em função da dor. As dobras, as rimas; o ser humano desvinculado, descolado da membrana social que a aprisiona, pune e brinda a ideologia da dor. Lembrou da definição de andarilho. O andarilho de Nietzsche.

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