quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Soro - 11ml

 


Saiu para andar pensando nas alternâncias e repetições dos noticiários. Após as costumeiras horas na livraria, caminhou pelo centro do bairro, até chegar à praça. O jardim dos canteiros tornava o sentar nos bancos um admirável espetáculo. Sua alma deliciou-se na paz do instante em que o tempo não passa, que as palavras não ferem e que cada olhar sustenta no ar a sensação viva que não cabe em palavras. Ele ficou ali, entre as flores, jasmim gardênia, lírios, copos de leite, petúnias, beija-flores, abelhas sem ferrão e o vento catando folhas, cantando poemas indecifráveis. Ela estava ali, e ele nem precisou ver.


Pronto para voltar, ele passou na única banca de jornais e revistas que a cidade ainda tinha. O jornal do dia contava em um canto de página a história do fim da vida de um jovem; na estrada, entre as ferragens. Ele não o conhecia, mas naquele instante teve uma empatia.  O rapaz era filho de uma mãe, um pai. Provavelmente tinha dissabores na vida, mas também despertara brilho a olhares. Alguém deve ter sentido falta dele. Alguém. 


No garimpo de notícias se deparou com o caderno de cultura. Novos filmes de velhas histórias. A intermitência da morte, de Saramago, iria para as telas, bem como refilmagens ruminantes de 1984, Assassinos por natureza e Forrest Gump. Ele se perguntava qual a necessidade disso. Lembrou que necessidade, seguindo a rima social, havia sucumbido à vontade. Desta vez não levou o jornal para casa. Passou na padaria do beco, comprou pão de azeitona, queijo e chocolate amargo.


Enquanto o vinho gelava, tomou seu banho sem pressa. Ouvia os pássaros recorrentes na árvore do quintal. Pão cortado à mesa, queijo em pequenas fatias. A marca da taça deixava pequenos elipses no tampo da mesa. Estava pronto para ela.


O dia anunciou sua presença. Equilíbrio de luz e sombra no céu, sem que fizesse calor ou frio demais. A janela poderia ficar aberta e a brisa era extremamente convidativa ao gole.  Uma torra especial de café, vinda no ninho da águia, do alto das Gerais. Ele conseguiu perceber. Abriu a porta e a recebeu como há muito tempo não o fazia. A Realidade se debatia lá fora, sem poder entrar, sem compreender o que estava para acontecer.


Vinho, queijo, pão e café. Ele e Soro. Sem verbo. O afago no cabelo como caminhar tocando a relva, despertando perfume no ar. Integrando-se. Soro corria pelos seus poros, embrenhou-se além da curva dos sentimentos e lembranças, habitou mais que suas veias, fez mais do que revigorar; transformou-se.


Ele acordou cedo. Vazia, a casa fazia o pensamento ricochetear pelos cômodos provocando eco e retornando a ele transformado. Olhava para o horizonte e não via que a Realidade passou a noite à espreita, debaixo do poste. 


Saiu para caminhar, pois assim reunia as forças necessárias para mais aquele dia. Sua apatia evolui para cansaço. Não o físico, ou mental, mas o cansaço in natura. O conceito em sua essência flutuante na sociedade. Ele sabia, a Realidade nunca voltaria a tocá-lo.


Não iria adiantar o artifício do tempo para demovê-lo do rumo da trajetória escolhida. Escolhas nunca são isoladas, elas emergem de forma interdependente às escolhas dos outros, que às vezes nem têm ciência do poder de influência de pequenas ou complexas decisões diárias. Cada pincelada na paisagem carrega em si o universo da imagem que será criada, mesmo sem a mostrar à priori. Ele não apenas sabia, mas sentia isso de uma forma plena.


A forma súbita com que foi golpeado pelas circunstâncias. Era como se ele fosse uma lata de achocolatado, no meio de uma brincadeira de duas crianças, que com um taco nas mãos batiam nele com firmeza, de um lado para o outro em uma rua fria, semi-iluminada, silenciosa. O som do metal sendo golpeado rasgava o eco das risadas das duas crianças. Ele era uma das crianças, ele era o taco, ele era a lata. Seu paradoxo era compreender os instantes. Em que instante ele estaria. Um estrangeiro à situação pouco entenderia ou até mesmo poderia ajudar. Certos corações são item de museu, outros são pesos de papel, esquecidos no canto da sala. Mas os que ainda batem?

A indumentária das pessoas na rua não chamavam sua atenção; mais o despertava o cheiro de pão fresco que saía da janela dos fundos da padaria. Ele gostava de passar por ali naquele horário, pois o cheiro do pão era mais um gatilho para um bom café. Como se para ele beber café precisasse de contexto, companhia ou gatilho.

Na mesa alta do canto da padaria comia seu pão na chapa e um expresso duplo, curtíssimo. Aquelas redondas, com dois banquinhos altos, mas que só é confortável para uma pessoa. Entre mordidas e goles ela chegou. Pediu um mocha. Sentou em frente a ele. Não se precisa trocar palavras para se comunicar. Muitas vezes as palavras não suportam todo o conteúdo de uma mensagem.

Ela, embora não soubesse do ocorrido, entendia as marcas. Breve leitura conseguia fazer ao olhar para ele. Outrora um lago de águas frias, escuras; outrora uma torrencial cachoeira de piscinas límpidas abaixo de um  azul infinito e um sol furtivo na perpendicular. Ela estava disposta, mas o que não sabia ainda, era de quem teria de se afastar. Aproximar-se é afastar-se. Ações e reações alternadas por ponto de vista, por instantes.

Consegue perceber quando um dia é determinante na sua vida? [Enquanto esperava o mocha esfriar um pouquinho ela deu seu passo à frente. Perto do salto.]

Não se vive os dias. Vive-se os instantes. São deles que lembramos. Eles são o mapa da memória. Eles são o trampolim da decisão. Você vai até o fim?

Referia-se ele à xícara ou ao salto, pouco importa. Trocaram olhares e sorrisos sem chamar a atenção. Ninguém os percebia. Pagaram e foram andar juntos. Ruas de blocos, casas antigas, cheiro de umidade, sons orgânicos de uma vida doméstica. Era diferente das ruas asfaltadas com frotas de desespero e prédios mausoléus da esperança, com os sons da solidão de uma adulta vida escrava das cifras, dos pixels, do concreto armado sobre os sonhos simples.


Paradoxal, a caminhada está presente em uma série de filmes em que gostam, em diversos enredos de livros, eles iam além dos clichês, sem ter essa preocupação. Não caminhavam rumo a tempos modernos, não estavam em uma cidade mineira de fontes de água, não buscavam lugares incríveis, tampouco eram andarilhos. Não estavam de mãos dadas, mas era ainda mais intensa a ligação entre eles. Não pensavam no que teria no fim do caminho, mas quando seria. Todavia, pensavam sem dor. 


Quando o vento se intensificou, jogou seu cabelo no rosto, ela moveu com ternura os braços para o arrumar e olhou para trás. Não conseguia, e nem tentava, ver ao longe, sentada na calçada, a Realidade. A distância era tanta, que já estava próxima demais dele. Estava dentro dele, como um soro. 

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