quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Soro - 8 ml

 



  • Era um farol no final da pista de ladrilhos no dia nublado do litoral do meu amor. Estava com a estranha sensação de que o vento me manteria firme ali. 


Não sabia se era castigo, ou mais um sintoma da doença. A Realidade esbarrava nele, mas não o alterava.


  • Escondido entre as palavras, nas páginas de livros. É o melhor ambiente para se guardar de quem não gosta de ler. Pode-se assim encontrar a certeira paz. Chegar ao instante em que as pessoas ao redor, as queridas, que nos sobrecarregam, que nos desfazem daquilo que éramos, daquilo que as encantou, não podem mais nos destituir de nós mesmos. Esse pensamento esquisito tem sentido, quando no espelho já não vejo meus olhos. As páginas dos livros me acolheram, então eles são para mim e não para os outros. Muita crueldade e muita coisa bela. Vejo por todos os lados Cobogós. Ver e interagir com o outro lado sem acessar de forma plena. Ver, ouvir e até sentir, mas limitado. Além de pausas na constância, para respiro, eles são portais dentro de nós. Os poros são os cobogós do corpo.  


Não se trata de abandono. Pouco menos do que o cheiro do chão antigo, surrado pelos pés insistentes, revelava. Ele estava lá de alguma forma. E, por mais que escassas, as interações ainda existiam, mas de um modo nem mecânico, não automático, tampouco orgânico. Era a dinâmica do esforço mínimo. Tanta história sobreposta no mundo, tanto livro de história em expansão; e ele apenas buscava perpassar suas memórias, a própria história, sem expectativas, e com cada vez menos espectadores. Não era a doença. No fechar dos olhos, seja noite, dia, em casa ou na rua. No fechar dos olhos sentia ser a solução.


  • Olhe para o céu. O modo como a lua dispersa as preocupações, a maneira em que as estrelas pontuam nossa escuridão com as possibilidades de seguir direções, mas nunca se abster das escolhas.


A solução corria por suas veias, ia além das trocas gasosas, sobrepunha ao gás carbônico. Ideias oxigenadas. A solução brilhava em seus olhos, mas a Realidade não foi capaz de alcançar.


Naquele dia pôde reconhecer a dimensão do seu clichê. Os encaixes da sociedade e as arestas. O modelo alimentar da sociedade mudou. Saudáveis por todos os lados. Doentes. Bistrôs e cafés também. Acabaram as locadoras, as bancas de revistas e jornais, as livrarias sucumbiram-se aos bytes. Ele assentava-se na varanda do café da esquina, pedia o misto com manjericão. Seu café predileto vinha junto, ao lado do prato, quente. Um pequeno pedaço de cana no pires. Um brigadeiro no ramekin. Desligado da realidade, mantinha a sanidade básica para enfrentar os dias.

 

Não apareceu uma vírgula para o “resgatar”. Não teve reviravolta do amor ou explícita explicação da situação em que ele se encontra. Terminou seu café, pediu outro. Comeu o misto, abriu um livro. Anotava nas bordas pensamentos sobre a obra, mas também a completava à medida em que lia e sentia. 


Ninguém verdadeiramente se importava com ele. Apenas usufruem de seu conhecimento, suas conquistas. Todavia, ninguém estava com ele na época em que ainda chorava. Agora, quem o observa de perto ou de longe, não tem ideia do que se passa ou passou. Mas ainda assim, especulam do conforto da respectiva posição de egoísmo.


Cada vez mais imerso, ele seguiu pela rua com a sensação de que os indivíduos são tratados como massa, para assim ninguém se preocupe ou sentir falta de um… ele lia as matérias sobre as baixas de guerras, milhares e milhões mortos. Números. Massa.


Essa mania de conversar com quem não fala. Ele girou a chave duas vezes, na tranca normal, na tetra chave. Não teria como entrar. Nem iriam tentar. Desceu a rua disputando espaço com a água da enxurrada da última noite. Ele não sabia, mas a Realidade tentaria uma tática diferente para se aproximar. Ela iria usar outra pessoa.


O dia foi diferente entre os umbrais do ambiente de trabalho. Ele prestou mais que consultoria e como retorno foi mais que resultados estatísticos, isso ficou de plano de fundo.


Pés descalços. Saiu do escritório com a pressão de palavras soterradas na mente, atrofiadas à garganta. Saiu do café com a certeza de que aquele era mais um momento de ruptura. Ela conseguiu o tocar. Retirou os sapatos e foi a caminhar pelo asfalto molhado. As chaves batiam entre si dentro do bolso. As ideias dela ricocheteiam em sua cabeça, apertavam-lhe o coração. Sentiu breve calafrio enquanto andava. Olhou ao redor e o respiro de alívio foi estar sozinho na rua. Sem espectadores. Sem juízes. Embora habituado com suas condições, ele fora perturbado. Trama da Realidade. Até quando ela insistiria? Ele viu esvaziar-se os porta-retratos, instalar-se o silêncio; porém, aquele desanuviar mexeu com ele. 


No dia em que nasceu, ela não imaginou que um dia a Realidade iria usá-la para diante dele, abrir um novo rumo na paisagem que até assinada já estava.


Natimorta esperança, não seriam suficientes todas as expectativas diante do choro forte da menina que nasceu sem saber nem ao menos quem era a Realidade. Sua mãe não teve dúvidas tampouco explicações para o nome escolhido para a doce infante.


Pele inteira, sem trincas, marcas de sol, cicatrizes. Olhos pujantes, e um gesticular no ar que parecia reger toda a sabedoria ao redor, com um simples e involuntário descobrir os membros do corpo e gargalhar. Crescia então em estatura, em conhecimento, em ternura. Sua fé estava além dos dogmas humanos. Ela tinha uma conexão e modo de compreensão. 


Um mundo sem ternura é a flor sem propósito. Ela também se fazia de flor, ao olhar de quem por ela passasse. Encantamento sem desejo, admiração e cuidado. Sobreviveu aos tropeços e dedicou-se a aprimorar seu catálogo de sensações e sabores. Ela atravessou as gerações até dar-se conta da presença da Realidade. 


Sorrateira, a Realidade nunca a deixou livre. Sempre pontuou seus sonhos e escolhas. Sempre esteve presente como o vulto que pisca no canto do campo de visão. Todavia, ela nunca se assustou, tampouco menosprezou a Realidade; apenas não a fez epicentro da vida.


Foi um dia de muita chuva. Foi uma rua de asfalto que se desfaz. Foi um café amargo. Um trânsito lento, sons estridentes de obras urbanas ao fundo, e ele à sua frente. Involuntariamente foram para o mesmo lugar. 


Mesas uma de frente para a outra. Em uma mesa mocaccino, na outra mesa cheesecake de frutas vermelhas e um espresso. No pires um biscoito de banana, zero açúcar, revestido de chocolate e canela. Ao lado da xícara um poema de Neruda no guardanapo, e um copo de dose, cheio não mais de água com gás.



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