segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Empatia em texto



Exercício social controlado. Em agosto de 2021, solicitei que meu filho mais velho escrevesse um texto. Não falei especificamente para quê era. Apenas disse que precisava da ajuda dele com uma redação, sem especificar o site, uma vez que há tempos escrevo no Obvious Magazine, tendo textos publicados no Observatório da Imprensa (motivo pelo qual ele não estranhou).

Apenas enviei para ele:

Tema: A empatia e a inteligência artificial na configuração da sociedade moderna.

Argumento: O comportamento das pessoas em convívio em sociedade, como está, como se dá e como será a empatia, considerando avanço da Inteligência artificial

1.000 palavras

Arial 12
Entrelinha 1,5
Prazo: 12/9
Hiperlink: relacionar com artigo científico

O motivo? Compreender como se estrutura a narrativa de um adolescente a respeito da empatia, do comportamento humano em tempos de muletas digitais cada vez mais incrustadas no perfil social. Estimular a reflexão sobre o que é a empatia e como ela está presente (ou ausente) nas famílias atualmente. Pensar também, argumentando em texto, como as facilidades tecnológicas, as interações com a inteligência artificial têm interferido no comportamento dos jovens, nas relações entre as gerações e no pensamento do indivíduo com os valores que o tornam humano e sociável (não no sentido do desejo, mas da necessidade de estar em sociedade). É interessante como se amparam nas tecnologias e alimentam lacunas que poderiam ser preenchidas com o que há ao redor. Alimentam por muitas vezes uma falta para forçar inconscientemente um amadurecimento pelo sofrimento da falta e da dúvida, ancorado na euforia da facilidade de assimilação de novas tecnologias, desprendimento em relação às tradições e conhecimentos de outrora. Fatidicamente, não percebem reafirmar o clico eterno do conflito de gerações. No entanto, agora cada vez mais exercendo uma apatia controlada em relação à realidade, tempo, valores, anseios e prazeres. Neste ínterim, as benesses das novas tecnologia evocam a sabedoria antiga para não refutar, mas incorporar com primazia o novo no presente possibilitando um futuro saudável, palatável a todas as gerações, sem destruir, mas muitas vezes modernizar, alguns aspectos fundamentais da sociedade.

O que se perde no percurso? Importa? Se viver estrutura-se em cumprir processos, qual a consciência perceptível do todo e dos detalhes e como isso se manifesta em nossos gestos, interferência e construção social? O que somos? Se nos propormos a ser globais excluindo os locais para assim não revelar e possibilitar que reconheçam o que somos.

Aguardei o texto com certa observação e expectativa. O que posso dizer do resultado? Antes de postar, algumas observações do processo. A curiosidade em levantar os dados, a liberdade para argumentar com as próprias palavras. No primeiro dia, o estranhamento de pensar algo assim. A receptividade, a desconfiança e a necessidade de cumprir a tarefa. No segundo, o primeiro parágrafo já pronto, e os gestos incorporados no ambiente de casa, talvez sem ele perceber. Acompanhar o texto ganhando forma, foi vivenciar o autor também se apropriando da narrativa, envolvendo-se na mensagem a ponto de se tornar mais leve, mais livre para se relacionar na família e pouco a pouco na sociedade, nos respectivos núcleos de convivência (claro, considerando todos os atributos psicossociais que envolvem a adolescência). Era como se um nova luz se acendesse sobre seus passos. Quanto tempo duraria ou o que verdadeiramente o levaria a incorporar em sua vida está fora de qualquer forma de persuasão ou controle. O exercício tem em si a capacidade de proporcionar a reflexão sobre o tema e sua discussão materializada no papel por meio da memória gráfica. Tenho esperança no que pode ter despertado nele. O depois é inalcançável, porém desejado. 

Embora o texto apresente uma necessidade de aprofundamento em algumas questões, trabalhando melhor o argumento em alguns pontos, gancho e demais atributos, é possível, a partir dele, compreender parte do olhar do autor. Após breve análise da narrativa, percebe-se o traço do autor em seus gestos e como o texto faz o autor à medida em que o autor faz o texto. 

Meses depois do exercício; posso dizer que não há espaço no segundo plano para o que deve permanecer no primeiro.


Abaixo segue o texto:

A empatia e a inteligência artificial na configuração da sociedade moderna

Gabriel Carlos Vieira Coutinho

A empatia, virtude a ser adquirida por todos, é a capacidade que o indivíduo tem de se colocar no lugar do próximo, seja conhecido ou não, é a maneira que o ser humano tem de compartilhar o sentimento e tomar ele como se fosse seu. Ao analisar a sociedade moderna no âmbito da ética e da empatia, percebe-se que ambos possuem tamanha importância para o equilíbrio perfeito de uma sociedade ideal. Entretanto, com a Revolução Industrial 4.0, houve o aumento de investimentos em áreas tecnológicas, que levou ao desenvolvimento da inteligência artificial e a sua ascensão no cotidiano das pessoas. Deste modo, pode-se analisar o real impacto, tanto positivo, quanto negativo, dessa inteligência no que tange a empatia na configuração da sociedade moderna.

Em primeira análise, sabe-se que, por natureza, o ser humano tem que formar grupos para viver em sociedade e isso é perceptível desde a época dos primitivos. As primeiras sociedades surgiram por meio de agrupamentos de pessoas que se migravam conforme a necessidade de conseguir alimentos para sobreviver, período conhecido na pré-história como paleolítico. Porém, com o passar do tempo o homem se tornou mais sedentário e deixou de ser nômade, se estabelecendo em um local com solo fértil, próximo aos rios e passaram a domesticar os animais, esse período se denominou como neolítico. Com base no exposto, fica evidente que independente se está fixo em um lugar ou mudando de acordo com a demanda, as pessoas sempre estiveram em grupos e tribos.

Além disso, é preciso observar a importância que as pessoas têm de estar em sociedade. Por mais bobo que pareça ser, o convívio social tem um papel significativo para o bem-estar físico e psicológico, pois os seres humanos têm uma necessidade de se interagir, cujo é cultivada desde cedo, quando ainda se é novo e está entrando na escola. Portanto, não é atoa que a primeira coisa que as instituições de ensino fazem é socializar as crianças, por meio de diferentes dinâmicas e brincadeiras, fazendo com que elas explorem seus sentimentos e aprendam a viver em conjunto.

Todavia, a inteligência artificial é um campo da ciência da computação mais recente, criada em 1956, a fim de buscar desenvolver novas criações e buscar respostas com auxílio da tecnologia. Para exemplificar, a A.I. “Artificial Intelligence” é o resultado dos avanços tecnológicos provenientes da revolução industrial e da globalização, com o foco de fazer com que as máquinas possam realizar tarefas que, até então, somente os humanos eram aptos a fazer.

A cada dia que passa a tecnologia está cada vez mais presente no cotidiano das pessoas, possuindo diferentes impactos na sociedade. Desde a criação da inteligência artificial, muitas empresas tem adotado ela como uma forma de facilitar e agilizar o trabalho, já que com a I.A a produção fica mais rentável para a empresa, pois há uma redução na quantidade de funcionários necessários e um aumento na rapidez e na produção em larga escala. Logo, esses pontos, tanto positivos, quanto negativos, têm grande relevância e influência na relação das pessoas.

Primeiramente, a I.A. auxilia grandemente nas empresas na otimização do processo, auxiliando na tomada de decisão das indústrias, pois a inteligência analisa os dados precisamente e busca selecionar sempre a melhor opção para determinado caso, reduzindo assim as falhas. Além disso, o avanço dessa tecnologia, juntamente com a globalização, permitiu a aproximação de pessoas que estão em diferentes lugares no mundo, fazendo com que os indivíduos estejam “próximos”, enquanto na verdade estão em locais geográficos totalmente opostos.

A inteligência também possui seus pontos negativos, pois ao substituir os funcionários por máquinas, a taxa de desemprego aumenta significativamente e isso impacta diretamente nos quesitos sociais e psicológicos da sociedade moderna. Uma das principais consequências do desemprego é o aumento da pobreza, da desigualdade social e o aumento da violência; quando se analisa o aspecto psicológico surge problemas relacionados a autoestima e insatisfação do trabalhador.

Ademais, este avanço causou um afastamento entre as pessoas, pois muitas ficaram alienadas a esta ferramenta e focaram demais no mundo virtual, esquecendo e se afastando do mundo real. Sabe-se que a alienação é quando um indivíduo fica indiferente aos acontecimentos da sociedade, ou seja, a pessoa passa a deixar de lado as coisas que ocorrem ao seu redor, dando ênfase somente aquilo que ela julga como importante e/ou interessante. Assim sendo, é indubitável que a inteligência artificial trouxe para a sociedade moderna diversos pontos positivos e negativos, cabe ao ser humano dosar e utilizá-la de uma maneira que irá auxiliar e não atrapalhar a relação de convivência das pessoas.

Nesse viés, pode-se destacar o renomado Georg Simmel, sociólogo alemão que abordou a atitude “blasé” como um comportamento padrão da sociedade contemporânea, de maneira simples, esse ato consiste em deixar de lado assuntos, quando na verdade deveria mostrar atenção. Desta forma, o indivíduo da sociedade moderna acaba se priorizando e se ocupando com seus próprios interesses, de maneira egocêntrica, deixando de lado o ato de se colocar no lugar do outro.

Sendo assim, com base no que foi exposto, a I.A. é bastante influente na sociedade contemporânea, pois ela ajuda na melhor integração entre as pessoas que estão distantes uma das outras, deixando tudo mais rápido e fácil. Porém, essa inteligência deixa as pessoas mal acostumadas ao ponto em que chegam a se tornar escravas e totalmente dependentes das tecnologias, fazendo com que o indivíduo perca valores fundamentais como por exemplo a ética e a empatia, pois o ser foca somente em si mesmo e no seu bem estar no mundo virtual, esquecendo muita das vezes do que se passa ao seu redor.

Nesse sentido, com o passar dos anos valores como a empatia, seja ela cognitiva, emocional ou compassiva, irão se perdendo, considerando o avanço da inteligência artificial. Portanto, cabe o Conselho Nacional da Educação, por meio de uma modificação da Base Nacional Comum Curricular, ingressar disciplinas que envolvam habilidades socioemocionais, como respeito e empatia. Essas disciplinas devem ser estudadas não só pelo ensino infantil, como é feito atualmente, e sim em todas as idades, para que dessa forma as pessoas continuem a dar valor para essas virtudes e não deixem em segundo plano, como foi abordado por Simmel.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

pormenores


Na comunicação dentro da empresa, na família, dentro da própria cabeça. Eles nos pegam desprevenidos, no meio do salto, o pé que agarra no argumento, no trauma, no sentimento. Pormenores da existência. Sem o espetáculo de grandes estratégias, sem fazer para ser premiado, mas para ser efetivo; e nem por isso lembrado; tampouco esquecido. Como equilibrar a intensidade, energia, exposição e tudo o mais? Atentar-se às particularidades das pessoas, do ambiente e do tempo (que nem sempre têm a ver com a narrativa, ou a mensagem). Sem receitas, apenas não plastificar a vivência.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Atos





Em tempos de streaming em demasia sobre heróis, os referenciais estão dia a dia petrificando uma imagem de sucesso que sabota o sujeito social (Eu sei, sempre foi assim, mas a sensação é de que o tempo de adaptação agora é menor do que antes). Assim, muitas vezes ele (o ator social) se percebe aquém do padrão aceitável e reconhecido na sociedade. Essa frustração pode ser verificada em seus atos, tentando corrigir o curso ou se entregando a ele. E ao contrário da máxima... os atos nem sempre revelam quem é o indivíduo, mas apenas como está o ator social.

O ato de coragem não é entrar na frente de um tiro, de um carro, em uma briga. Trata-se de impulso de resposta espontânea, ou se tem ou se desenvolve perante as circunstâncias. Congelar ou agir. Ser um herói não é saber fazer uma improvisada manobra cirúrgica com tampa de caneta de bico de garrafa de destilado, ou recolocar o braço deslocado, dirigir de forma sagaz em uma perseguição de fúria ou fuga. A coragem heroica está em vivenciar o automatismo dos dias sem deixar que o abatimento tome conta. É levantar grato por um novo dia, mas também atento, aos detalhes que se repetem ou se alternam, às dificuldades que não dão trégua, à impessoalidade que determina o conjunto, o todo. Olhar os filhos, cada qual em seu fluxo de descobertas, experimentação e aprendizado; sabendo que todo pai e mãe também é filho, em um fluxo mais avançado. Compreender a si para ser alguém melhor para o outro, sem ser do outro.

O romântico ato de coragem não depende dos músculos, das cifras acumuladas, dos cargos e posição de poder ocupadas. Não se firma nas capacidades intelectuais, habilidade de argumentação e elucubrações. O anti-herói. Habitante calado da terceira margem do rio chamado realidade. Esse que veste roupas comuns, não fala muito alto, gosta de sentir o vento no rosto, valoriza um ar fresco, reconhece a importância do calor do sol à face. Saboreia momentos sem grandes expectativas e plateia. Coloca no papel não mais que traços em uma fragmentada linha reta. Que vivencia a empatia, sem fazer dela um estandarte. Esse indivíduo que se vê além do ator social, se sente e se percebe na paisagem e fora dela. Que aprendeu o caminho para Casdorra; e uma vez lá, não sairá. 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

voltamos


 

Não sei o que se passa e o que pensa aí de cima. Aqui embaixo, a gente tenta se encaixar, levar os dias, conforme a maturidade que adquirimos, conforme os desejos, sonhos e a realidade possível. Não sei, e confesso que estou cansado. Não desiludido, pois vejo cada encanto por todo canto. Cada instante mais único e especial. Mas o cansaço vem sempre no silêncio. Nesse turbilhão de atropelos e abandono da sociedade. Na repetição, por mais que não percebam, dos ciclos sociais. A sustentação do sorriso às vezes se abala com as lágrimas. O meu rosto já está marcado e sei que não sou melhor do que ninguém; não procuro esse tipo de reconhecimento. Olho-me bem; buscando reconhecer esse rosto marcado no espelho, nas fotos e na vida. Reconhecer para acertar rumos e tentar driblar esse cansaço que agora controla o olhar. Voltamos a nós mesmos. Sem os mesmos encaixes e contexto, sem a mão da misericórdia sobre nossa ingenuidade de outrora. O eterno retorno do andarilho versus o caminhante. São os rumos... 

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Nos roubamos


Gerações sobrepostas comportamentos consolidados. Quanto mais tecnológica a sociedade, quanto mais conforto, mais abandonamos coisas essenciais?  Precisamos nos dedicar às trocas. Conhecer a versão dos fatos de quem viveu há tempos. Ouvir nossos pais e avós e sermos ouvidos pelos nossos filhos. Percebe-se a cada dia, que as novas gerações não apenas desconhecem as vivências dos antigos como as desmerecem. Não se valoriza os livros, filmes, peças e histórias. 

Outro dia acabou a energia elétrica. A internet caiu o sinal. Celulares sem bateria. Bundas na calçada, olhares para a lua. Quantas estrelas. As histórias surgiram. Tanta gente próxima que não se conhecia além dos automatismos do dia a dia. O que se faz com o que se sabe é outra coisa. Não precisamos complicar a mensagem, tampouco o comunicar. Precisamos ser efetivamente verdadeiros (não no sentido de ter a razão, mas de estar entregue ao processo de comunicar, interagir), transparentes, espontâneos.

Nos roubamos. Em busca de mais conforto, segurança, saciedade. Nos roubamos e nem percebemos, a não ser quando sentimos falta de nós mesmos entremeio a tanta máscara. Nos roubamos e não sabemos onde nos guardamos, ou para quem nos vendemos depois.


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Soro - 24ml

 


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O sol atravessou a brecha na cortina acordando-a. Sua pele delicada protegida pela fina camisola confortável, até os pés. Sorriu ao se espreguiçar. Ela sabia onde estava. Olhou-se com serenidade no espelho; lavou o rosto, escovou os dentes e desceu seguindo o cheiro de café, e de canela (provavelmente eram aqueles deliciosos biscoitos). Cada degrau recebia seus pés descalços com a energia de um belo dia. Quando virou, rumo aos últimos degraus, ela o viu. Aquele sorriso aqueceu o peito dela. Aquele olhar era a confirmação. O café da manhã a dois. Os porta-retratos estavam vívidos, receberam o registro para o qual foram criados para eternizar.

Suas mãos se tocaram novamente.


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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Soro - 23ml

 


Acordar sem a sensação de estar atrasado era magnífica. Na fila do pão, achou triste, porém irônico, a mulher se preocupar mais com os problemas pessoais das blogueiras que ela seguia pelo celular, do que o conflito existencial do marido ao seu lado.

Cada qual fazia tremular a bandeira dos argumentos. Todos querendo estar certos, ninguém queria a solução, pois ela poderia significar estar errado por um momento. Escolheu o pão. Geleia de morango. Queijo provolone. Caminhou devagar até que viu ao longe o carteiro dobrar a rua. Deixou ele alguma carta? Não apressou os passos, mas foi com aquela inquietação na barriga, digna de quem sabe estar próximo a receber um presente. A carta estava à sua espera.

A letra dela era um convite a passear por traços de encanto; fascinação. Ela descreveu para ele sobre as novas canções, o repertório para ler, correr, meditar. Sobre os momentos de leitura deitada à rede que tinha na sala. Eles tinham o semelhante gosto musical, sem forçar; espontâneo encontro de almas. Ela contou como era trabalhar com a mente humana, esse ser nevoeiro; enigmático. O modo como ela caminhava com leveza pelos momentos de tensão era encantador. Um anjo. Ela falou de filmes, e da vontade de assistir uma boa peça de teatro. Ele tinha no peito uma pequena dor de não ter sido mais corajoso. O compasso. Quando estava pronto, não a encontrava, quando a via um entrave havia. Quando tinha sede, nem uma gota. Tremendo de frio, a chuva o mirava do alto. Quando recitava a poesia certa ninguém ouvia. Quando escrevia ninguém lia. Ao tropeçar, todos apontavam o dedo. Quando novo, desencanto; ao estar pronto para amar, apenas amarras. Até aquele momento, ele não tinha entendido o compasso e o seu lugar. Afora o desejo, a certeza que traz paz. Ele leu com amor cada curva da escrita. Reduzia o ritmo com medo de que acabasse logo. Apressava-se pois era o seu instante no universo. E quando acabasse aquela, iniciaria a espera pela próxima carta.

Reparou em como ela pingava os is. Percebeu as palavras que se repetiam, marcando o repertório, enaltecendo a mensagem. Os momentos de respiro e até breves arrepios. Estavam íntimos de uma maneira que não havia ainda sido possível, por causa da distância, da realidade e do tempo. Entre uma página e outra da carta ele respirava. Sentia o fresco ar pelas suas narinas trazerem o refrigério ao corpo. Alguém ainda lê cartas assim? Ele re-aprendeu a ler. Não eram as cartas que ele lia, mas Paca; seus traços, curvas, pausas e voos. Embora a trajetória canse o corpo, a alma, a mente se renova diante de tanta ternura, verdade e entrega mútua.

No jornal leu o artigo sensato de uma gestora de comunicação ícone nacional, a respeito das intempéries transformarem os modelos de comunicação e as pessoas, propiciando que todos se tornem mais humanos, no que concerne à empatia. Um texto sem agressões, certa soberba nas entrelinhas, mas humildade na pontuação. "Seja sua própria audiência." Repetiu mentalmente até alcançar os diversos desdobramentos do sentido da frase, ressignificando-a. Semelhante às ondas subsequentes ao jogar um limão na água. Ele sorriu, pagou o jornal e voltou.

Não precisamos de muitas palavras. Ele passou o dia sem as perturbações das pessoas que de tão determinadas em alimentar o ego, esquecem de respirar, de reduzir o ritmo, de falar baixo, degustar com calma. Evitar incomodar. Caminhando pelas tranquilas ruas do bairro ele foi ao Sebo. A essência do sebo não estava na guarda, mas na brevidade da estadia.  O ritmo marítimo do ir e vir de ondas. Os livros deveriam continuar a chegar para assim, permanecerem a partir. Ele circulava pelos corredores, sentindo o cheiro de cânfora, de papel envelhecido e histórias à espreita. Sem o nariz coçar, sem as mãos sujar. Folheava as obras imaginando não a história em si, mas o quanto do escritor estava revelado ali. Um sonho lúcido.

Paca de manhã, refastelando-se no lençol e na preguiça. Bowie lá atrás na parede mandava não a incomodarem. Ela era aquela sensação boa que vem do nada e transforma o seu dia.  Talvez ela não soubesse. Docemente elegante, fora de rótulos. Ela não precisa de um. Uma pessoa que ama o próximo e só quer o bem, só faz o bem; mesmo sem perceber. Ele só tinha bons pensamentos em relação a ela, pensamento de paz e ternura. Desejava que ela fosse feliz. Sem grandes justificativas e desdobramentos. Que ela pudesse do abrir ao fechar os olhos, ter o peito aconchegado pela paz de ser. Que ela além de vivenciar cada instante, soubesse a maravilha que é sua vida e trajetória. Ele fechava os olhos e conseguia ver Paca flutuando pelo turbilhão urbano daquela cidade avião de onde decolam sonhos, mazelas, vibrações e esperança. Ele percebia que ela encontrava aconchego em meio a tanto concreto. O colibri pousado no fio alçou voo, abriu os olhos fechando o envelope com mais uma carta. Decidiu fazer gnocchi. 

A virtuose da espera. Enquanto à volta tudo acontece. Enquanto todos correm, paredes golpeadas, nomes gritados ao vento, difamados em portas de banheiro. Enquanto números atravessam o tempo todo pela cidade, sem respeitar sinais e faixas. A espera in natura, sem traumas ou amarras. A lágrima se precipita mas não escorre. O indivíduo grato tem visão melhor sobre as texturas da realidade, sobre os instantes da espera. A gratidão, a compaixão, não fraquezas do modo em que Nietzsche aborda; mas fraquezas  do sujeito social, que fortalecem o indivíduo. E no fim, há o indivíduo; mesmo que compartilhando experiências, vivendo junto, cada um sendo o "outro" uns dos outros. O legado não é gritado ao longo das gerações. Ele é acolhido espontaneamente, sem metalinguagem, sem prolixidade. Aprendeu a esperar. O silêncio é um universo à parte no qual ele aprendeu a habitar. Degustava cada ausência entendendo o que há de presença no silêncio. A profusão de ideias, rimas e ideais.

Café forte, sem rodeios. Amargo sem comprometer o paladar. Bolo de queijo com goiabada. Fofinho, cremoso, doce sem ser enjoativo. Novamente em uma casa de ecos. No alto do vale, longe das barragens. O lugar tinha nome de símio. Povoado vazio. Pontos de emergência por toda a parte. Mas nenhum ponto para ele. Pegou a cafeteira moka, sem cabo. Fazia café utilizando um pano de prato para se servir. Era possível tocar a névoa da manhã, por instantes, até o sol a dissipar com sua forte luz que não aquece, mas ilumina. Ele estava feliz. Seu desejo era permanecer ali, naquele ambiente, naquele povoado e naquela rotina. Contudo, sua estadia era momentânea. Estava de passagem. A Realidade não tinha fôlego para o alcançar naquela altitude. Ele nem se lembrava dela. Aproveitou a os dias ali, pois seriam os últimos. Retornou para a cidade na certeza de mais uma carta o esperar para ser lida. Ele faria tapioca no lanche. Café forte. 

A gratidão faz florescer uma sensação maravilhosa. Mesmo que em silêncio, ou isolado, de forma que ninguém perceba. Estar grato é revigorante. Atenua a maneira como sentimos bater o próprio coração, o modo como a respiração nos mantém na dinâmica mecânica do corpo em movimento. Ele transpirava gratidão. Seus poros exalam o perfume da paz. Estava ciente do chão que pisava. Piscava os olhos com parcimônia. Sentou-se para ler mais uma carta. Esta demorou para chegar.

Paca também tinha seus momentos de preguiça. Não apenas a correria na lagoa, o ioga e a mágica no trabalho. Ela tinha momentos reflexivos, de cansaço e também os de preguiça. Nestes, a letra revelava. Havia a preguiça diante do turbilhão da sociedade que se devora; porém pairava o sentimento arrastado do dia que estaciona, ou que segue, mas ficamos fincados no instante. Às vezes, o prazer de ter um livro para ler e não o fazer. Tal qual como disse pessoa. 

Sentado, limpando o restante de canela e açúcar do canto dos lábios, ele deixava a xícara sobre a mesa. No guardanapo respingado de ristretto, ele arriscava.


Penso no quanto escorro do tempo, a rima torpe que conduz meu coração. Passo ao largo do que se curva o horizonte; sentindo golpear-me as nuances de uma Realidade nua. Estabeleço comigo o anti-pacto para drenar a poça do não escorre mais. Águas turvas escondem minhas frustrações e despertam energia aos meus sonhos.


Nas manhãs frias, gostava de ler Fiódor, com café e vodka. A xícara de café. O mergulhar em uma manhã fria. Ouviu que a carteiro passou, ao escutar o barulho da bolsa. Mordiscou do biscoito de canela antes de ler a próxima carta.

Enquanto alguns engoliam o pôr do sol, ele os soprava com o olhar até se encontrar com ela. No luar, lançava facetas de esperança, captada pelo brilho refletido, na expectativa de tocá-la. Os desencontros foram massivamente a harmonia, regida pela distância, controlada pela realidade.

A carta tinha um cor diferente. A caneta acabou ou fora outra. Uma emprestada ou uma nova dedicada àquelas letras? Fato é que conseguiu ver a mão de Paca sobre o papel, debruçada sobre si, registrando nos traços o que não cabe no som. Ela contou do seu dia de trabalho, da visita aos pais, dos quitutes típicos do encontro de família. Ele lia duas vezes cada frase, como quem escreve forte sobre o papel, marcando a folha de trás. 

Não pensava em mais nada. Sabia de sua interferência na vida dos outros. Mas sabia também que com  o tempo ele vira poeira que se vai ao vento ou que gruda e ninguém vê. Pensava em nada enquanto soltou as amarras do olhar. Aquela carta era demasiadamente íntima; fez de sua pele papel carbono, sentiu as palavras entrarem pelos seus poros, seguirem pelo corpo todo, percorrendo becos, ruas, alamedas, avenidas, vias expressas, rodovias, inundando o coração, seguindo rumo ao cérebro, irrigando-o de uma sensação veemente especial.

Passo o dia como pássaro molhado na chuva, pousado; observando entre as gotas. Se aquecendo internamente.


Suntuosas curvas da paisagem. A montanha com rocha exposta, gramíneas rompendo a alvorada, sobrevivendo ao frio. Pássaros sem rota de voo, só verso e estrofe no céu que está sobre todos. Ele estava paralisado naquela manhã. Sem grandes gestos que pudesse mudar aquela encantadora paisagem. Na mesa de centro da varanda ainda estava o envelope e a última carta. Uma nova estava no assento. Havia mais volume, a letra estava ainda mais natural. 

O vínculo com a história muitos dizem. Enquanto a história é escrita nem nos damos conta. Tanto escapa pelos dedos de tal forma que fica registrado não a totalidade, mas o que desponta; seja pela relevância, seja pela irreverência, ou pelo poder de intervenção em quem está com a pena nas mãos diante do papiro. Os mesmos atributos naturais marcam o tempo. Não era ele o cansaço, ou o silêncio. Ele era pessoa, com marcas, mas sem amarras.


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Soro - 22ml

 

Seus pés, do frio chão ao gelado da grama, até a madeira seca, aquecida. Com o olhar fixado no horizonte de dentro. Sentado na varanda superior, no quintal. A xícara na mesa de centro. Envelopes perfumados abertos no canto, gotículas de café na borda. Ele começou a ler com a sensação não de surpresa, mas de aconchego. Não de ilusão, mas do que há além de parâmetros, expectativa e automatismos sociais. Era outra dimensão ali alcançada.

Eram palavras libertadoras. Elas saíram do papel, iam letra a letra, entrando no íntimo dele, correndo por suas veias, irrigando seu cérebro. Eram as palavras verdadeiras de Paca. Não a projeção que ele fizera, não a expectativa humana do reconhecimento pelo outro, não a poesia em fragmentada linha reta do amor, da vida. Eram as puras e plenas palavras de Paca para ele. Não se tratava de correspondência extraviada, o nome dele estava nos envelopes, no texto, onde ele ganhou até mesmo um apelido. Ela se lembrava dele. Ele nunca a esqueceu. 

Seu corpo formigava na sensação agradável do lacrar dos poros. O arrepio que ao passar traz um relaxamento. Estava em paz, o sol o alcançava sem algazarra. O vento não atrapalhou sua leitura, mas era uma mão a fazer afagos em sua face encantada pelas palavras de Paca. A Realidade se contorceu lá fora; ela não sabia das cartas, nem de quem eram, nem o que continham, mas percebeu que algo mudou.

No final da primeira carta ele parou. Tocou com delicadeza o papel e o cheirou. Se espreguiçou ao sol, sentado na confortável poltrona. Estava pronto para ler as próximas. A segunda era ainda mais intensa, então a conta-gotas ele a lia. Cada frase, uma dose do elixir imensurável, inominável, inesquecível. Sentia irradiar de energia em seus meridianos. Finalmente a cura, para o que não era doença.

Nem percebeu que cochilou ali mesmo na varanda. De pior os pesadelos e sonhos têm o momento em que parecem ser realidade.  Não se concebe quando acabará e assim angústia-se quem sobrevive às madornas. Enfrentando as ondas com a jangada rachada. Indo de encontro à lua. Sem notas, sem desafinar, o silêncio que conduz a alma pelos ambientes e prova da sensação de paz que é não se conectar aos padrões sociais, às vãs expectativas. Uma nova taça. Um brigadeiro de café, um pedaço de parmesão. Retornou à leitura. Cada carta lida era a certeza de sua liberdade, do novo instante que o revigora, o transforma. Paca mostrou o conhecer, mesmo no que ela nem imaginou. Ela sabia que ele não conhecia o mundo, que não cruzou tantas fronteiras; então, contou para ele de cada viagem, cada experiência, cada show de rock, cada café que provou, os sorrisos que colheu, os girassóis que viu se curvarem no horizonte em direção a ela. Tão modesta, vivia além da gravidade. Ela trazia equilíbrio ao dia, conforto a noite. Sua existência tinha bem definida e percebida vocação. Na quinta carta ela o levou à Europa.  Ele se encantou, pelas ruas de Paris à meia noite; pelos campos de vinícolas tão humanas, poéticas. Circularam por lugares especiais pela simplicidade de ser. Foi mágico.

Na sexta carta caminhou com ela em Santiago. Em silêncio. Reflexivo. Foi intensa a maneira que se integrou à ela. Casa frase um trecho. Cada palavra um passo. Cada letra um respiro. Ele compreendeu o quão profundo e irreversível é olhar para dentro.

A sétima carta ele guardou para ler depois do jantar. Ficou inspirado a voltar a cozinhar como água para chocolate. Cardápio adaptado. Alho-poró, dente de alho, pétalas de rosas, filé de salmão. Vinho tinto. Luz centralizada. Cozinha ritmada, colher de pau. O azeite na frigideira perfumou com alecrim o alho que perdia alvura e exalava um aroma encantador. O peixe. Cantava na frigideira espalhando o suspense do vir a ser; do alcançar o ponto certo. Gradativamente ele corou em camadas, mantendo suculência e elegância. Na frigideira ao lado, as pétalas e o alho-poró, uma folha de manjericão. Reduzido, encorpado, equilibrado. A frase perfeita, lançada sobre o peixe ao prato. O vinho já havia respirado, agora deu vazão a poesias. A sétima carta era a sobremesa e já avisava que outras iriam chegar.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Soro - 21ml

 

Vasto mundo de coisas belas. Ele aprendeu a destinar mais atenção, sem tensão, às belas paisagens, detalhes, sabores e sensações. Aspectos naturais que independem do ser humano. E que por diversas vezes é atrapalhado ou até mesmo extinto, pela manifestação da vontade social. Alimentados por picuinhas. Seres humanos se amontoam fazendo da insatisfação do outro o seu gozo. Ele se desvinculou por completo. Não havia mais preço. Estavam separados os hábitos de convívio social para subsistência e o que perpassa seu íntimo. Seu processo de limpeza, de elucidação, não se baseia em religião, doutrina, ou receita. Foi um processo natural.

Uma prisão. O Sol era forte e estridente o grito das expectativas. Um prisioneiro das ansiedades, das amenidades, da dependência que tinham dele. Prisioneiro calado, com frases prontas para equilibrar o convívio social. cansado. Torrava sua liberdade ao sol. Queima a pele, ofusca a visão; calor que atordoa, ilumina os poros de forma desnecessária. Aprisionado sem sinal, sem bateria, sem ter fechadas as feridas. Uma prisão, a narrativa dos outros, a vistoria que faziam nas redes sociais. Sem a devida leitura, Ele estava com a alma cansada, não o corpo. Tampouco a mente. Ele estava com a alma cansada. Uma ferida aberta; as risadas esganiçadas dos outros ecoavam pelas celas. A Realidade carcereira doutrinava sonhadores e necessidades.

As pessoas não percebem. Talvez ele perceba pois estava na sobrevida. Naquela parte que é a mais. Em que reconhece a beleza e maravilha da vida, mas não se agarra à vida, às mazelas, às vaidades, aos vitimistas como os que erguem o estandarte de tais aspectos meramentes sociais. A vida começa e termina todos os dias, em cada instante. Debruçada no orgulho, na vontade, na necessidade;com aquele hálito matinal de frustração. “Eu não sei na verdade quem eu sou” e nem isso o incomodava. A mente como um pássaro, vai longe e trás alimento. Carregava nas asas a possibilidade, e assim sobrepunha-se a mais um dia. Aconchegando-se nas maravilhas dos detalhes que as pessoas não observam.

A proporção da entrega versus a retirada não segue parâmetros; às vezes parece ter vida própria o desequilíbrio; tanta dor. Tanto vazio que nem cabe o medo. Os instantes alternam. Ele escrevia cartas. A gota. Um universo elementar condensado em uma partícula, Se lágrima, suor ou saliva. Era o corpo anunciando estar intensamente insuportável e por isso, escorreu. Não era mais possível conter.



Fizeram novamente, me entende? Acorrentaram as emoções. Dias tortuosos à beira da morte, dos outros. E diante da atrofia, certo arrepio. Novamente fizeram novamente. A censura velada do que o fazia humano; não podia pensar, não podia. Não iria respirar em outro ritmo. O rito social era extremamente cruel. Ninguém novamente sabia da saúde mental dele. Fizeram novamente e desta vez ele não gritou, nem chorou. Entretanto, a sobreposição das páginas tapava a dor, substituía o silêncio pela revelação do amor que ela nunca vá ler. Novamente fizeram e foi atordoante. Ele não era visto. Não trombaram nele A luz atravessava ele. Sem som. De repente, o equilíbrio. O lindo dia de sol, o vinho, a mandioca frita, sequinha, salgada na manteiga. O afável convívio. A esperança respira nos detalhes, pulsa. Meus anjos rodeiam-me, compreendem-me sem o saber; cuidam de mim na proporção que deles cuido. Demorei a conceber que no espelho, ele era eu. Tentando me ajudar, me privaram, duas vezes e quase três de criar o vínculo natalício com meus anjos. Tentando me ajudar, me anularam, e o pior, se regozijam de serem mais importantes e influentes, sendo que ao me ajudar, me substituíram. Percebi que com isso tornei-me outra coisa, que ainda não colocaram no dicionário, que ainda não se fala nos cultos, missas e funerais. Embrenhei-me nas possibilidades de uma maneira que tornei-me perene na memória deles, na psique. Contudo minhas feridas ninguém as vê, abertas, em uma lenta cicatrização lenta, profunda. O vinho também nestes momentos faz-se remédio para as ideias. Eu quis dizer a eles: Não anule meu amor com o seu amor. Não diminua meus abraços ao reduzir meu alcance. Não faça de sua carência motivo de se afirmar tentando me apagar, pois meu brilho é outro. Calei-me. Os anjos me conhecem além da distância e cuidam de mim na paradoxal proporção de que deles cuido. Falaria para você de mim, ouviria você, escreveríamos sobre nós dois juntos. O texto além das projeções. Afora a realidade, o que realmente existe. Cruel papel que finda, em uma madrugada de taça vazia. Leve,traga, leve; sopre, encante como canta o tempo, escorre como a lembrança; crave como a experiência, grave, forte, seja leve. E eu, a vírgula na frase, sem grandes pretensões, a vírgula.Essa trilha litoral que tortura os nossos olhos, é desdobrar montanha no cerrado, é compreender que além de nós perpetua-se o pôr do sol. Que o sorriso é mais do que parece; que o julgamento todo tolo é e sem os fundamentos que seriam necessários. Sentimentos em cova rasa florescem e sem embrenham no vento. Pode-se sentir o vento com as mãos, mas não o segurar, pode-se sentir a fumaça com as narinas, mas não a tocar. Nem a névoa, o vento, ou o tempo. Não saber o porvir já não dói. Sem se mexer, você instaura no ambiente a paz, a ternura, sem precedentes, sem responsabilizações. Você é. Agora.



Caminhou pela casa sem acender uma lâmpada sequer. Guiado pelo luar que se instalava através da janela, foi se deitar, pensando que em breve haveriam outros porta-retratos, com outros sorrisos, outros brilhos.

A Realidade não compreendeu o entusiasmo dos pássaros naquela manhã. Bem-te-vis e beija-flores. Era a anunciação. Ele tomou café, acompanhado de um brownie que comprou na padaria no dia anterior. Daquelas padarias pequenas, cativantes, especiais como um bom livro. O brownie estava especialmente preparado, com o aroma equilibrado de café, chocolate e esperança. O café, sem açúcar, intenso. Sentiu seu peito pulsar com o canto dos pássaros e o voo do beija-flor que o acompanha desde quando tudo turvo ainda era. Descalço, trocava temperatura com o chão. A grandiosidade não cabia no silêncio, não poderia ser compreendida pela Realidade. Caso estivesse alguma pessoa por perto, tampouco poderia compreender. Não porque ele era especial, mas ele estava diferente. 

A caixa de correspondência. Seus olhos percorreram o contraste da lata, com o papel. As primeiras cartas chegaram. Juntas. Como palavras que estavam emperradas na garganta. Ele as organizou por data de emissão. Não lhe ocorreu como ela conseguiu seu endereço, porém não seria difícil. Afinal ela sabia que ele existiu, mas não que o sentimento era em in natura; sem interferência da Realidade, sem parâmetros. Reconheceu no envelope a letra de Paca, que ele nunca havia lido.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Soro - 20ml

 

Ele lembrou das histórias que contou para seus filhos antes de tudo. O leão e o colibri. O peixe azul na saga em busca da bola. O leão que espantava a todos e a quem todos temia; até que o colibri chegou bem perto. Qual o motivo de todos temerem a mim? Talvez seja porque sempre está a rugir. Mas não sei falar de outra forma; e você porque não foges. Não teme? Bem perto da boca do leão diz o colibri: Aprendi a vivenciar o medo.O papagaio. Um papagaio lindo. Verde intenso. Psittaciformes com um potencial de vida imenso. Rasgava o céu com sua formosura, absorvendo do ambiente o melhor e ecoando fascinação, até que caiu nas armadilhas das palavras. Em cativeiro, desaprendeu a liberdade na confusão de assobios, sílabas, gargalhadas, ruídos na madrugada, pão molhado no café, asas cortadas no chão. Uma poesia sem sentido repetida ao vento. Na solidão de décadas. Lembrou do sorriso dos filhos ao ouvir as histórias. Isso a Realidade nunca conseguiu tirar dele, tampouco imputar sofrimento.

Razão do amanhecer. Porta-retratos brilham. Sem peso. Seguindo o ritmo dos dias, mas no meio dos minutos, o aperto no peito e a desfiguração da natureza humana diante de si, o fez piscar os olhos e perceber vazios; porta-retratos. Ele acordou com o resto do gosto de um café bem forte. Era a ressaca de quem dorme de olhos abertos. Sua moka estava sem cabo. Com as mãos nuas preparava o café, com um pano de prato surrado, mas ainda aveludado, pegava-a quente e vertia café à xícara. Era triste, em um dia tão lindo, de frescor, calor aconchegante do sol da manhã, bela paisagem e danças dos pássaros, o ser humano definhando em suas próprias mazelas comportamentais. A necessidade de hierarquizar pontos de vista, castrar o sorriso dos outros em função de certa acidez interna. Ele viu, com certo distanciamento, os ciclos da dor se renovarem. Percebeu a atrofia de entendimento dos que o circundam, e entendeu que o mundo está cada vez mais constituído de continentes daquele perfil, e que ele, assim semelhante a milhares, era mais uma ilha, sumindo no evoluir das marés. Culpar a lua? Ela não revela sua face oculta, porque só é oculta para quem se mantém à distância.

Cada parte desanimada. Impossível contextualizar os pedaços. Outrossim os anjos são a sobrevida no cansaço. Sentiu, o corpo se entregar, função após função, rumo ao abismo que alimentamos desde a infância. Distante. Distante. Distância entrou nele e se multiplicou. Percebi que ela era só Distância, dos sonhos, da sensação de prazer, da sensação de estar descansado. Ainda assim ele estava em paz. Estranhamente o colibri o seguia. Entrava pelo telhado ou pela janela e pontuava o instante com sua presença.

Intrigante, o pássaro não se limitou ao tempo, não se restringiu às fronteiras; fluiu de uma forma silenciosa, sutil, na paisagem. Chegou à esplanada, encontrou Paca, mas ela não o percebeu, não abriu a janela para ele. O colibri ficou dias, noites e luares pousado à janela de Paca. Até que no rompante despertar foi com o vento. Alto mar, profunda cachoeira; a noite dos escritores na rua da Bahia. O colibri sabia que não ainda havia palavras aptas a suportar seu texto. Então se calou de vez. Retumbante e reluzente pouso silencioso. 

As canções intensas embrenharam-se pelos poros iam além dos cílios auriculares, as ondas sonoras movimentavam dentro dele. Ele compreendeu que se tornou, antes de se libertar, uma pessoa que o deixava em desconforto, desalento. Pedia perdão sem ouvir a resposta. Acreditava que sua redenção não seria possível enquanto fosse torturado e moldado pela Realidade. Porém, agora, ela já não tinha sobre ele o poder de outrora. Ela tropeçou no fio da navalha , ele cuidou de suas feridas antes de partir. O colibri, calado, a tudo observou. Ao certo do que de perto sente e ao largo antevê, o amor sobrepunha a distância e ignorava o tempo.

Tomba e escorre pelas frestas penetra; a matéria transfigura-se além da lógica; o passo do tropeço é dança dos incautos; explicar ruminar sem precisar, um voar sem asas no asfalto quente. Tombado, selado. O sentimento lacrado na palavra soterrada por tanto cotidiano. 

Modelos matemáticos movimentando a natureza e sociedade. Toda fórmula já foi devaneio. Todo texto foi pretexto da manifestação de um sentimento que pulsa dentro de nós. Antes de calcular movimentos e interações de matéria, massa e elementos, tudo foi ideia borbulhante no caldeirão do caos, ou na calma superfície fria do equilíbrio emocional.

A mistura. Tons sabores e ruídos. Corpos. Carnes com tonalidades diferente por fora, mas por dentro do mesmo jeito. Carne, semelhante à gados, ou qualquer criação. Muda a cor da derme e o peso do bolso, mas o sangue ainda é sangue. Não se pode recalcular o passado, mas a base de dados pode ser ignorada ou reinterpretada para os cálculos presente de um futuro em efervescência. Outrossim,  enquanto muitos sofrem por estar desconectado a ela, ele de forma plena passou a transitar. Lembra do começo de sua libertação, quanto passou apenas a flertar com a Realidade. Tinha instantes de raiva, tristeza, conforto, comodismo e euforia. A Realidade não confessa, não se dobra, não parece se preocupar com ninguém, mas dele... sentia algo. Pois a maneira como ele se dissociou dela era peculiar.

Vaidades despencaram dos telhados, como uma chuva de sapos, socou a cabeça de quem estava nas ruas, nos escritórios, nas calçadas. Ele ainda respirava. A sensação bucólica de estar além, livre da frondosa estrutura de egos em um processo de canibalismo. Ele ainda se encantava com as amenidades de uma xícara de café quente, sem açúcar, com afeto.

A luz do sol atravessou a janela do carro. Não o ofuscou. Não o aqueceu, mas encantou seu olhar sobre as árvores, silhuetas das montanhas, bater de asas de pássaros, ir e vir de pessoas. A recorrência de palavras não era limitação do seu vocabulário, mas a repetição da vida ao seu redor, dentro dele.

Intercorrências do cotidiano. Tudo começa no ritmo em que as pessoas estão acostumadas, e de repente as mudanças fazem franzir testas ou desanuviar olhares; contudo, ele estava inerte. 

Se esvazia tentando se encher. O ser humano que não se contenta cria a falta do que não tem necessidade, só para alimentar a frustração.  Um penduricalho na janela dança ao vento. Barra poeira e ideias erradas. Ele ficava no horizonte inexistente o olhar. Seu lugar no mundo. Seu ponto na paisagem. Sua função da expectativa dos outros. Seu pensamento corria pelas ruas, as veias da cidade, até encontrar a terra virgem, sem marcas, sem cercas, sem traço da mão do homem. Até ver no canto um copo descartável amassado e compreender que a praga humana se entranhou em tudo, dos ambientes aos sonhos. Um parasita que quase chegou aos céus. Não resistiria tal chuva. O penduricalho na janela o lembrou de piscar.

O corpo leve caminhou ao sol, sem as amarras daqueles dias, mas no silêncio percebia toda a dor e aflição, superadas sozinho. Ele não transferiu culpa, não se vitimava com as circunstâncias, mas compreendia ser para ele, sem tornar-se epicentro de coisa alguma. O som de seus passos no chão, o cantar dos pássaros ao longe, o colibri rodeando as flores ao redor dele. Por instantes, sentiu-se como Mr. Nobody. Pensou em Paca. Difícil mensurar de forma límpida os sentimentos de outrora. O transcorrer da morte na vida. O apodrecer da matéria para ser adubo ao novo. Recompor de nutrientes o meio. As palavras erguidas como estandarte da razão serem rasgadas, usadas como arma para abafar um coração que sem regras lógicas, sem compreensão alheia, habita nas intermitências do tempo que não passa, não estaciona, apenas é. Não é o tempo que passa, mas a matéria que se consome, no conflito das energias do meio, dentro e fora. Sobram as ideias como dente de leão ao vento; esse que só é se houver o movimento. Por instantes ouviu o nome de Paca vir no vento, pensou mais uma vez em Mr. Nobody.



Não tenho gavetas. Não que precise. Não tenho o metro quadrado devido para repousar a cabeça. Tudo me é emprestado, concedido, alienado mesmo quando meu. Decidi deixar escrito para Paca um dia ler e quem sabe ficar sabendo. Mas minhas palavras não são tão evidente quanto meu puro sentimento. Tampouco os desdobramentos corresponde corretamente ao Tempo, Distância e Realidade, à luz da Expectativa (morta, petrificada ao olhar para trás). Não tenho linhagem, ou legado afetivo que não fora roubado de mim. Indivíduos ávidos por seres essenciais, necessários e insubstituíveis, fazem de sua razão de vida interferir e se apropriar da vida do outro. Tenho asas. “E este pássaro livre não se pode mudar”.



Era manhã. Um pássaro estava pousado no topo do que sobrou de uma rosa que foi botão e se despetalou. As demais rosas ainda molhadas pelas gotículas do orvalho. O Pássaro olhava para frente. Estático. Não se sabe se pensava no voo, procurava pouso, descansava ou apenas esperava, ou ainda hesitava a mover-se. Era o dia agarrando-se para não acabar? Era o ser humano tornando-se outra coisa. O pássaro nem piscou.

Mesmo sem ver o que esperava no céu, sabia que o dia estava lindo. Mesmo com as alternâncias climáticas, ele sabia apreciar o instante, embora às vezes confortavelmente entorpecido pela Realidade. Foram tempos, e metade dos tempos. Agora à frente teria outro compasso. Sem a Realidade a controlar o acontece dentro dele. Ninguém percebia, tampouco conseguiria compreender. Eram todos carne sobre ossos, uns com gordura, outros apenas pele e argumentos. Eram carne e concreto, armado pelas cifras que chicoteiam ponteiros, movimentando a sociedade. Ele não mais.