quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Soro - 11ml

 


Saiu para andar pensando nas alternâncias e repetições dos noticiários. Após as costumeiras horas na livraria, caminhou pelo centro do bairro, até chegar à praça. O jardim dos canteiros tornava o sentar nos bancos um admirável espetáculo. Sua alma deliciou-se na paz do instante em que o tempo não passa, que as palavras não ferem e que cada olhar sustenta no ar a sensação viva que não cabe em palavras. Ele ficou ali, entre as flores, jasmim gardênia, lírios, copos de leite, petúnias, beija-flores, abelhas sem ferrão e o vento catando folhas, cantando poemas indecifráveis. Ela estava ali, e ele nem precisou ver.


Pronto para voltar, ele passou na única banca de jornais e revistas que a cidade ainda tinha. O jornal do dia contava em um canto de página a história do fim da vida de um jovem; na estrada, entre as ferragens. Ele não o conhecia, mas naquele instante teve uma empatia.  O rapaz era filho de uma mãe, um pai. Provavelmente tinha dissabores na vida, mas também despertara brilho a olhares. Alguém deve ter sentido falta dele. Alguém. 


No garimpo de notícias se deparou com o caderno de cultura. Novos filmes de velhas histórias. A intermitência da morte, de Saramago, iria para as telas, bem como refilmagens ruminantes de 1984, Assassinos por natureza e Forrest Gump. Ele se perguntava qual a necessidade disso. Lembrou que necessidade, seguindo a rima social, havia sucumbido à vontade. Desta vez não levou o jornal para casa. Passou na padaria do beco, comprou pão de azeitona, queijo e chocolate amargo.


Enquanto o vinho gelava, tomou seu banho sem pressa. Ouvia os pássaros recorrentes na árvore do quintal. Pão cortado à mesa, queijo em pequenas fatias. A marca da taça deixava pequenos elipses no tampo da mesa. Estava pronto para ela.


O dia anunciou sua presença. Equilíbrio de luz e sombra no céu, sem que fizesse calor ou frio demais. A janela poderia ficar aberta e a brisa era extremamente convidativa ao gole.  Uma torra especial de café, vinda no ninho da águia, do alto das Gerais. Ele conseguiu perceber. Abriu a porta e a recebeu como há muito tempo não o fazia. A Realidade se debatia lá fora, sem poder entrar, sem compreender o que estava para acontecer.


Vinho, queijo, pão e café. Ele e Soro. Sem verbo. O afago no cabelo como caminhar tocando a relva, despertando perfume no ar. Integrando-se. Soro corria pelos seus poros, embrenhou-se além da curva dos sentimentos e lembranças, habitou mais que suas veias, fez mais do que revigorar; transformou-se.


Ele acordou cedo. Vazia, a casa fazia o pensamento ricochetear pelos cômodos provocando eco e retornando a ele transformado. Olhava para o horizonte e não via que a Realidade passou a noite à espreita, debaixo do poste. 


Saiu para caminhar, pois assim reunia as forças necessárias para mais aquele dia. Sua apatia evolui para cansaço. Não o físico, ou mental, mas o cansaço in natura. O conceito em sua essência flutuante na sociedade. Ele sabia, a Realidade nunca voltaria a tocá-lo.


Não iria adiantar o artifício do tempo para demovê-lo do rumo da trajetória escolhida. Escolhas nunca são isoladas, elas emergem de forma interdependente às escolhas dos outros, que às vezes nem têm ciência do poder de influência de pequenas ou complexas decisões diárias. Cada pincelada na paisagem carrega em si o universo da imagem que será criada, mesmo sem a mostrar à priori. Ele não apenas sabia, mas sentia isso de uma forma plena.


A forma súbita com que foi golpeado pelas circunstâncias. Era como se ele fosse uma lata de achocolatado, no meio de uma brincadeira de duas crianças, que com um taco nas mãos batiam nele com firmeza, de um lado para o outro em uma rua fria, semi-iluminada, silenciosa. O som do metal sendo golpeado rasgava o eco das risadas das duas crianças. Ele era uma das crianças, ele era o taco, ele era a lata. Seu paradoxo era compreender os instantes. Em que instante ele estaria. Um estrangeiro à situação pouco entenderia ou até mesmo poderia ajudar. Certos corações são item de museu, outros são pesos de papel, esquecidos no canto da sala. Mas os que ainda batem?

A indumentária das pessoas na rua não chamavam sua atenção; mais o despertava o cheiro de pão fresco que saía da janela dos fundos da padaria. Ele gostava de passar por ali naquele horário, pois o cheiro do pão era mais um gatilho para um bom café. Como se para ele beber café precisasse de contexto, companhia ou gatilho.

Na mesa alta do canto da padaria comia seu pão na chapa e um expresso duplo, curtíssimo. Aquelas redondas, com dois banquinhos altos, mas que só é confortável para uma pessoa. Entre mordidas e goles ela chegou. Pediu um mocha. Sentou em frente a ele. Não se precisa trocar palavras para se comunicar. Muitas vezes as palavras não suportam todo o conteúdo de uma mensagem.

Ela, embora não soubesse do ocorrido, entendia as marcas. Breve leitura conseguia fazer ao olhar para ele. Outrora um lago de águas frias, escuras; outrora uma torrencial cachoeira de piscinas límpidas abaixo de um  azul infinito e um sol furtivo na perpendicular. Ela estava disposta, mas o que não sabia ainda, era de quem teria de se afastar. Aproximar-se é afastar-se. Ações e reações alternadas por ponto de vista, por instantes.

Consegue perceber quando um dia é determinante na sua vida? [Enquanto esperava o mocha esfriar um pouquinho ela deu seu passo à frente. Perto do salto.]

Não se vive os dias. Vive-se os instantes. São deles que lembramos. Eles são o mapa da memória. Eles são o trampolim da decisão. Você vai até o fim?

Referia-se ele à xícara ou ao salto, pouco importa. Trocaram olhares e sorrisos sem chamar a atenção. Ninguém os percebia. Pagaram e foram andar juntos. Ruas de blocos, casas antigas, cheiro de umidade, sons orgânicos de uma vida doméstica. Era diferente das ruas asfaltadas com frotas de desespero e prédios mausoléus da esperança, com os sons da solidão de uma adulta vida escrava das cifras, dos pixels, do concreto armado sobre os sonhos simples.


Paradoxal, a caminhada está presente em uma série de filmes em que gostam, em diversos enredos de livros, eles iam além dos clichês, sem ter essa preocupação. Não caminhavam rumo a tempos modernos, não estavam em uma cidade mineira de fontes de água, não buscavam lugares incríveis, tampouco eram andarilhos. Não estavam de mãos dadas, mas era ainda mais intensa a ligação entre eles. Não pensavam no que teria no fim do caminho, mas quando seria. Todavia, pensavam sem dor. 


Quando o vento se intensificou, jogou seu cabelo no rosto, ela moveu com ternura os braços para o arrumar e olhou para trás. Não conseguia, e nem tentava, ver ao longe, sentada na calçada, a Realidade. A distância era tanta, que já estava próxima demais dele. Estava dentro dele, como um soro. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Soro - 10ml

 


Forma redonda, borda quebradiça. Uma quiche dourada chamava atenção no balcão. O cheiro, a cor. As possibilidades. O interesse vem pelos sentidos, pela necessidade, pelo mecanismo individual de prazer. O clichê a calma, chuva sem trovões, café quente, uma torta e um espaço vazio. Música ambiente é opcional.  

  • Ando sem paciência para o sentimentalismo alheio. Nem é falta de paciência. Assemelha-se mais a uma apatia controlada. Não sei ao certo como explicar. Pode ser algo transitório, ou uma degenerativa reação da minha mente à realidade. Encanto-me ao ver as crianças brincando na rua, em casa, nas árvores, nas poças d'água. É mágico observar como elas lidam com a realidade. Admiro o modo como os idosos se desfazem do tempo. Como transitam pelos espaços, pelas expectativas e frustrações de uma sociedade que os ignora. lembrados apenas nas datas comemorativas e em discursos corporativos. Esquecem-se todos que se não morrerem jovens, todos estão rumo ao envelhecimento; da carne. O envelhecimento do espírito depende essencialmente do que escolhemos.


Este pensamento, dito “auto” no escuro do banheiro, talvez tenha sido o que despertou a Realidade, sempre à espreita, para fazer o que fez.

Enquanto esperava o café ficar pronto, permaneceu pensativo, remexendo coisas antigas em sua mesa de canto. Era como se escondesse do presente, remexendo no passado. Assim, o futuro dificilmente poria as mãos nele. Embora o risco estivesse na Realidade.

Um monolito em contraste na paisagem escarlate. A figurinha de um chocolate. Surpresa. O registro de paisagens que talvez ele nunca fosse conhecer de perto, a não ser que aproximasse a foto bem perto ao rosto.

Ficou por instantes observando a foto. Pensou em colar no álbum. O sorriso de canto de boca era a manifestação de suas memórias empoeiradas. Sentiu o afago da lembrança da infância. O que a princípio era uma boa recordação, rapidamente tornou-se uma insípida sensação de distância. De quem um dia foi, da simplicidade que um dia teve, e da ingenuidade de se divertir com madeira, ferro contorcido, bola, fogo, avião de papel. 

Duas latas de achocolatado. Dois bastões de madeira. Duas crianças.  Cada um em uma extremidade da rua. A noite acobertou dois infantes sujos em busca de um pouco mais de diversão. Primeiro amassar as latas, depois o revezamento de bater na lata imaginando ser um jogador de baseball, de golf, ou apenas um desordeiro do Conte Comigo a exterminar caixas de correspondências. A cada batida na lata ela se deformava e voava para o outro lado da rua à espera do golpe conseguinte. Assim ambas ficaram de um lado para o outro, sofrendo golpes, deformando-se. A matéria que sofre pelo prazer de quem a domina. Imagina se fosse uma pessoa, submetida a um sofrimento em função da necessidade, ou vontade, do outro de se satisfazer com o exercício do controle. Controle. Brincadeira de criança não tem controle. Tem início, tem fim. A madeira subjugando o ferro. A natureza deformando o objeto criado. O homem criando a partir da destruição. A coisa ganhando significado. Ele não se lembra, mas na calçada, a Realidade analisava sonhos.

Guardou a foto e as lembranças. Decidiu que o expediente do dia seria outro. Subiu a serra sem pressa. Carro de vidros abertos e o som bem baixo. Se o frescor das montanhas fariam bem às ideias, isto importava menos. Ele não percebia a Realidade, mesmo se ela gritasse. Exilado em si? Parou o carro, bem estacionado, no canto da estrada. 

Andar pela trilha de terra despertava uma sensação de paz que sobrepunha a angústia e resignação do cotidiano. Escutar os sons dos atritos. Pés com a terra, borracha com madeira, com a terra, com folhas secas. O chão úmido insinuava ser região de cachoeiras. O som ao fundo confirmava e a brisa excitava os poros com as gotículas misteriosas e poderosas que uma cachoeira despeja no vento. Completamente diferente do conflito de argumentos e egos ao largo das cidades, lá embaixo.

Deitado, debaixo da queda d´água ele sentia sua mente ser lavada, sentia-se isento do passado, do presente, imune a Comma, a Realidade, mas não imaginava como Soro iria influenciar não apenas seu corpo, mas também o modo de se relacionar com a Realidade.

Antes do crepúsculo decidiu retornar. O caminho de volta, na verdade é uma nova ida. Ele estava disposto a seguir, afora os obstáculos que pudesse encontrar. Seu carro parecia conhecer o caminho de casa, pois distraído, ele dirigia de forma autômata, olhando a paisagem, dando vazão, no olhar, aos pensamentos.

O som da chuva nas folhas o acalmava. O silêncio de um ambiente sem ninguém acordado por perto era aconchegante. Era como se ele houvesse naquele instante; assim, poderia pedir perdão pelos pecados, perdoar-se, compreender, em uma leitura em braile, todas as cicatrizes emocionais. Era possível, sem expectativas, perpassar os sonhos sem a necessidade de compreender.

No escritório sua mesa permanecia com a mesma falta de pendências. Tudo em dia. No entanto, ao puxar a cadeira para sentar percebeu no assento o bilhete.

Suas pernas tremeram, seu corpo  já tinha esquecido desta reação. O bilhete era um convite. Aceitar implicaria em mudar a trajetória de seus rumos. Ele tinha ciência disso; que era um momento em que o desdobramento da escolha iria interferir em sua rotina, física, psíquica e emocional.

Chegou ao café, a mesa já estava reservada, mas não por ele. Um brownie especial. Um jornal encardido. Uma flor ressequida. Era alguém que o conhecia. 


  • Não se preocupe. Ela não virá.


Surpreso, repetiu mentalmente a frase do garçom até compreender a profundidade do impacto daquelas palavras. Atônito, demorou a tomar o café, tomou-o frio. Quase não comeria o brownie. Enquanto lentamente comia, o garçom chegou com outro café; quente.


  • Ela disse que o primeiro esfriaria.


Ela… que ela? Como conhecia tão bem meu paladar a ponto de escolher a minha mesa, o meu cardápio, o meu tipo de leitura? Ela não virá… [A cada gole uma palavra, a cada pensamento um sabor. O brownie acabou e junto da conta, que já estava paga, veio outro bilhete. Desta vez com um endereço novo. Suas pernas não tremeram, seu corpo em equilíbrio; conhecia aquela rua. Beco das livrarias.

O cheiro do mofo das paredes externas não chegava até o hall das livrarias. Leve perfume de cânfora pontua as estantes mais úmidas. Ele conhecia a posição dos livros. Sabia onde estavam os trechos prediletos. Surpreendia-se com uma sorrateira poesia sorteada em um breve devaneio do olhar sobre as páginas. Ali ele estava em paz. Até então nada, a não ser os livros, podia o alcançar naquele local.

O clichê do de repente se fez presente além da rima. O vento fez bater a janela ao fundo, ele virou para olhar e não percebeu o esbarrão da criança que saía feliz com um livro na mão. Quando se voltou para a estante deparou-se com o atendente, mas não o de sempre.


  • Ela não virá, menos ainda no vento, ou no solavanco das ideias em inércia.


Gradativamente voltou a sentir. O efeito da anestesia desfeito na brisa. O cheiro das páginas e seus sentidos além dos sentimentos e trocadilhos. Assentou-se no sofá do canto. Não na poltrona isolada, mas no sofá, onde caberia pelo menos mais uma pessoa. Não estava com fome. Já tinha lido o jornal. Nem ainda tinha dado saudade dos livros. Olhou ao redor em busca de um novo bilhete, procurando por algo que talvez o fizesse tremer novamente as pernas. Não encontrou. Era dia de ser encontrado.

A sensação era de ser observado. No entanto não viu ninguém suspeito. Como se soubesse, a este momento, o que seria uma pessoa suspeita. Todavia, a sensação não era de tensão, de opressão ou desconforto. Era a de ser observado com carinho, proteção.

Enquanto folheou as páginas do livro do desassossego, sentiu como se ao tropeçar na preposição caísse em queda livre em um universo tão introspectivo que chega a perder a sequência lógica. Com olhos vidrados, passava as páginas a ermo tendo a atenção presa no que passou em sua mente. Atônitos, assistimos à derrocada do nosso vocabulário, em contínuo processo de atrofia. Um processo inversamente proporcional ao movimento de expansão do universo. As palavras ficam repetidas, perdem visibilidade e até mesmo sentido. Abreviações dos valores, sentimentos e razões. As páginas dos livros parecem ter importância maior quando à estantande do que em nossas mentes. Cada qual rei e executor de uma verdade própria, que pouco contribui para a manutenção da vida. Somos reféns de nossos olhares, tornamo-nos insanos em função dos nossos desejos. Quando distinguimos sonhos de realidade, damos início ao processo de registro das frustrações. Surge então também uma limitação em dizer algo novo; talvez por não haver no universo das coisas criadas, o ineditismo, mas quem sabe ao menos, em determinadas circunstâncias, a limitação ter como trava um grande trauma. Daqueles tão peculiares.

Ela virá, mas nem tanto importa. As ações dela já o impactaram sem que ela estivesse presente. Aquele momento extasiado diante do livro, viajando em seus pensamentos sem filtro, sem as amarras de ter de explicar algo ou fornecer resultado numérico, alguma frase com ponto final. Ela virá.



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Soro - 9ml

 


Forma redonda, borda quebradiça. Uma quiche dourada chamava atenção no balcão. O cheiro, a cor. As possibilidades. O interesse vem pelos sentidos, pela necessidade, pelo mecanismo individual de prazer. O clichê da calma, chuva sem trovões, café quente, uma torta e um espaço vazio. Música ambiente é opcional.  


  • Ando sem paciência para o sentimentalismo alheio. Nem é falta de paciência. Assemelha-se mais a uma apatia controlada. Não sei ao certo como explicar. Pode ser algo transitório, ou uma degenerativa reação da minha mente à realidade. Encanto-me ao ver as crianças brincando na rua, em casa, nas árvores, nas poças d'água. É mágico observar como elas lidam com a realidade. Admiro o modo como os idosos se desfazem do tempo. Como transitam pelos espaços, pelas expectativas e frustrações de uma sociedade que os ignora. lembrados apenas nas datas comemorativas e em discursos corporativos. Esquecem-se todos que se não morrerem jovens, todos estão rumo ao envelhecimento; da carne. O envelhecimento do espírito depende essencialmente do que escolhemos.


Este pensamento, dito “auto” no escuro do banheiro, talvez tenha sido o que despertou a Realidade, sempre à espreita, para fazer o que fez.

Enquanto esperava o café ficar pronto, permaneceu pensativo, remexendo coisas antigas em sua mesa de canto. Era como se escondesse do presente, remexendo no passado. Assim, o futuro dificilmente poria as mãos nele. Embora o risco estivesse na Realidade.

Um monolito em contraste na paisagem escarlate. A figurinha de um chocolate. Surpresa. O registro de paisagens que talvez ele nunca fosse conhecer de perto, a não ser que aproximasse a foto bem perto ao rosto.

Ficou por instantes observando a foto. Pensou em colar no álbum. O sorriso de canto de boca era a manifestação de suas memórias empoeiradas. Sentiu o afago da lembrança da infância. O que a princípio era uma boa recordação, rapidamente tornou-se uma insípida sensação de distância. De quem um dia foi, da simplicidade que um dia teve, e da ingenuidade de se divertir com madeira, ferro contorcido, bola, fogo, avião de papel. 

Duas latas de achocolatado. Dois bastões de madeira. Duas crianças.  Cada um em uma extremidade da rua. A noite acobertou dois infantes sujos em busca de um pouco mais de diversão. Primeiro amassar as latas, depois o revezamento de bater na lata imaginando ser um jogador de baseball, de golf, ou apenas um desordeiro do Conte Comigo a exterminar caixas de correspondências. A cada batida na lata ela se deformava e voava para o outro lado da rua à espera do golpe conseguinte. Assim ambas ficaram de um lado para o outro, sofrendo golpes, deformando-se. A matéria que sofre pelo prazer de quem a domina. Imagina se fosse uma pessoa, submetida a um sofrimento em função da necessidade, ou vontade, do outro de se satisfazer com o exercício do controle. Controle. Brincadeira de criança não tem controle. Tem início, tem fim. A madeira subjugando o ferro. A natureza deformando o objeto criado. O homem criando a partir da destruição. A coisa ganhando significado. Ele não se lembra, mas na calçada, a Realidade analisava sonhos.

Guardou a foto e as lembranças. Decidiu que o expediente do dia seria outro. Subiu a serra sem pressa. Carro de vidros abertos e o som bem baixo. Se o frescor das montanhas fariam bem às ideias, isto importava menos. Ele não percebia a Realidade, mesmo se ela gritasse. Exilado em si? Parou o carro, bem estacionado, no canto da estrada. 

Andar pela trilha de terra despertava uma sensação de paz que sobrepunha a angústia e resignação do cotidiano. Escutar os sons dos atritos. Pés com a terra, borracha com madeira, com a terra, com folhas secas. O chão úmido insinuava ser região de cachoeiras. O som ao fundo confirmava e a brisa excitava os poros com as gotículas misteriosas e poderosas que uma cachoeira despeja no vento. Completamente diferente do conflito de argumentos e egos ao largo das cidades, lá embaixo.

Deitado, debaixo da queda d´água ele sentia sua mente ser lavada, sentia-se isento do passado, do presente, imune a Comma, a Realidade, mas não imaginava como Soro iria influenciar não apenas seu corpo, mas também o modo de se relacionar com a Realidade.

Antes do crepúsculo decidiu retornar. O caminho de volta, na verdade é uma nova ida. Ele estava disposto a seguir, afora os obstáculos que pudesse encontrar. Seu carro parecia conhecer o caminho de casa, pois distraído, ele dirigia de forma autômata, olhando a paisagem, dando vazão, no olhar, aos pensamentos.

O som da chuva nas folhas o acalmava. O silêncio de um ambiente sem ninguém acordado por perto era aconchegante. Era como se ele houvesse naquele instante; assim, poderia pedir perdão pelos pecados, perdoar-se, compreender, em uma leitura em braile, todas as cicatrizes emocionais. Era possível, sem expectativas, perpassar os sonhos sem a necessidade de compreender.

No escritório sua mesa permanecia com a mesma falta de pendências. Tudo em dia. No entanto, ao puxar a cadeira para sentar percebeu no assento o bilhete.

Suas pernas tremeram, seu corpo  já tinha esquecido desta reação. O bilhete era um convite. Aceitar implicaria em mudar a trajetória de seus rumos. Ele tinha ciência disso; que era um momento em que o desdobramento da escolha iria interferir em sua rotina, física, psíquica e emocional.

Chegou ao café, a mesa já estava reservada, mas não por ele. Um brownie especial. Um jornal encardido. Uma flor ressequida. Era alguém que o conhecia. 


  • Não se preocupe. Ela não virá.


Surpreso, repetiu mentalmente a frase do garçom até compreender a profundidade do impacto daquelas palavras. Atônito, demorou a tomar o café, tomou-o frio. Quase não comeria o brownie. Enquanto lentamente comia, o garçom chegou com outro café; quente.


  • Ela disse que o primeiro esfriaria.


Ela… que ela? Como conhecia tão bem meu paladar a ponto de escolher a minha mesa, o meu cardápio, o meu tipo de leitura? Ela não virá… [A cada gole uma palavra, a cada pensamento um sabor. O brownie acabou e junto da conta, que já estava paga, veio outro bilhete. Desta vez com um endereço novo. Suas pernas não tremeram, seu corpo em equilíbrio; conhecia aquela rua. Beco das livrarias.

O cheiro do mofo das paredes externas não chegava até o hall das livrarias. Leve perfume de cânfora pontua as estantes mais úmidas. Ele conhecia a posição dos livros. Sabia onde estavam os trechos prediletos. Surpreendia-se com uma sorrateira poesia sorteada em um breve devaneio do olhar sobre as páginas. Ali ele estava em paz. Até então nada, a não ser os livros, podia o alcançar naquele local.

O clichê do de repente se fez presente além da rima. O vento fez bater a janela ao fundo, ele virou para olhar e não percebeu o esbarrão da criança que saía feliz com um livro na mão. Quando se voltou para a estante deparou-se com o atendente, mas não o de sempre.


  • Ela não virá, menos ainda no vento, ou no solavanco das ideias em inércia.


Gradativamente voltou a sentir. O efeito da anestesia desfeito na brisa. O cheiro das páginas e seus sentidos além dos sentimentos e trocadilhos. Assentou-se no sofá do canto. Não na poltrona isolada, mas no sofá, onde caberia pelo menos mais uma pessoa. Não estava com fome. Já tinha lido o jornal. Nem ainda tinha dado saudade dos livros. Olhou ao redor em busca de um novo bilhete, procurando por algo que talvez o fizesse tremer novamente as pernas. Não encontrou. Era dia de ser encontrado.

A sensação era de ser observado. No entanto não viu ninguém suspeito. Como se soubesse, a este momento, o que seria uma pessoa suspeita. Todavia, a sensação não era de tensão, de opressão ou desconforto. Era a de ser observado com carinho, proteção.

Enquanto folheou as páginas do livro do desassossego, sentiu como se ao tropeçar na preposição caísse em queda livre em um universo tão introspectivo que chega a perder a sequência lógica. Com olhos vidrados, passava as páginas a ermo tendo a atenção presa no que passou em sua mente. Atônitos, assistimos à derrocada do nosso vocabulário, em contínuo processo de atrofia. Um processo inversamente proporcional ao movimento de expansão do universo. As palavras ficam repetidas, perdem visibilidade e até mesmo sentido. Abreviações dos valores, sentimentos e razões. As páginas dos livros parecem ter importância maior quando à estantande do que em nossas mentes. Cada qual rei e executor de uma verdade própria, que pouco contribui para a manutenção da vida. Somos reféns de nossos olhares, tornamo-nos insanos em função dos nossos desejos. Quando distinguimos sonhos de realidade, damos início ao processo de registro das frustrações. Surge então também uma limitação em dizer algo novo; talvez por não haver no universo das coisas criadas, o ineditismo, mas quem sabe ao menos, em determinadas circunstâncias, a limitação ter como trava um grande trauma. Daqueles tão peculiares.

Ela virá, mas nem tanto importa. As ações dela já o impactaram sem que ela estivesse presente. Aquele momento extasiado diante do livro, viajando em seus pensamentos sem filtro, sem as amarras de ter de explicar algo ou fornecer resultado numérico, alguma frase com ponto final. Ela virá.



quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Soro - 8 ml

 



  • Era um farol no final da pista de ladrilhos no dia nublado do litoral do meu amor. Estava com a estranha sensação de que o vento me manteria firme ali. 


Não sabia se era castigo, ou mais um sintoma da doença. A Realidade esbarrava nele, mas não o alterava.


  • Escondido entre as palavras, nas páginas de livros. É o melhor ambiente para se guardar de quem não gosta de ler. Pode-se assim encontrar a certeira paz. Chegar ao instante em que as pessoas ao redor, as queridas, que nos sobrecarregam, que nos desfazem daquilo que éramos, daquilo que as encantou, não podem mais nos destituir de nós mesmos. Esse pensamento esquisito tem sentido, quando no espelho já não vejo meus olhos. As páginas dos livros me acolheram, então eles são para mim e não para os outros. Muita crueldade e muita coisa bela. Vejo por todos os lados Cobogós. Ver e interagir com o outro lado sem acessar de forma plena. Ver, ouvir e até sentir, mas limitado. Além de pausas na constância, para respiro, eles são portais dentro de nós. Os poros são os cobogós do corpo.  


Não se trata de abandono. Pouco menos do que o cheiro do chão antigo, surrado pelos pés insistentes, revelava. Ele estava lá de alguma forma. E, por mais que escassas, as interações ainda existiam, mas de um modo nem mecânico, não automático, tampouco orgânico. Era a dinâmica do esforço mínimo. Tanta história sobreposta no mundo, tanto livro de história em expansão; e ele apenas buscava perpassar suas memórias, a própria história, sem expectativas, e com cada vez menos espectadores. Não era a doença. No fechar dos olhos, seja noite, dia, em casa ou na rua. No fechar dos olhos sentia ser a solução.


  • Olhe para o céu. O modo como a lua dispersa as preocupações, a maneira em que as estrelas pontuam nossa escuridão com as possibilidades de seguir direções, mas nunca se abster das escolhas.


A solução corria por suas veias, ia além das trocas gasosas, sobrepunha ao gás carbônico. Ideias oxigenadas. A solução brilhava em seus olhos, mas a Realidade não foi capaz de alcançar.


Naquele dia pôde reconhecer a dimensão do seu clichê. Os encaixes da sociedade e as arestas. O modelo alimentar da sociedade mudou. Saudáveis por todos os lados. Doentes. Bistrôs e cafés também. Acabaram as locadoras, as bancas de revistas e jornais, as livrarias sucumbiram-se aos bytes. Ele assentava-se na varanda do café da esquina, pedia o misto com manjericão. Seu café predileto vinha junto, ao lado do prato, quente. Um pequeno pedaço de cana no pires. Um brigadeiro no ramekin. Desligado da realidade, mantinha a sanidade básica para enfrentar os dias.

 

Não apareceu uma vírgula para o “resgatar”. Não teve reviravolta do amor ou explícita explicação da situação em que ele se encontra. Terminou seu café, pediu outro. Comeu o misto, abriu um livro. Anotava nas bordas pensamentos sobre a obra, mas também a completava à medida em que lia e sentia. 


Ninguém verdadeiramente se importava com ele. Apenas usufruem de seu conhecimento, suas conquistas. Todavia, ninguém estava com ele na época em que ainda chorava. Agora, quem o observa de perto ou de longe, não tem ideia do que se passa ou passou. Mas ainda assim, especulam do conforto da respectiva posição de egoísmo.


Cada vez mais imerso, ele seguiu pela rua com a sensação de que os indivíduos são tratados como massa, para assim ninguém se preocupe ou sentir falta de um… ele lia as matérias sobre as baixas de guerras, milhares e milhões mortos. Números. Massa.


Essa mania de conversar com quem não fala. Ele girou a chave duas vezes, na tranca normal, na tetra chave. Não teria como entrar. Nem iriam tentar. Desceu a rua disputando espaço com a água da enxurrada da última noite. Ele não sabia, mas a Realidade tentaria uma tática diferente para se aproximar. Ela iria usar outra pessoa.


O dia foi diferente entre os umbrais do ambiente de trabalho. Ele prestou mais que consultoria e como retorno foi mais que resultados estatísticos, isso ficou de plano de fundo.


Pés descalços. Saiu do escritório com a pressão de palavras soterradas na mente, atrofiadas à garganta. Saiu do café com a certeza de que aquele era mais um momento de ruptura. Ela conseguiu o tocar. Retirou os sapatos e foi a caminhar pelo asfalto molhado. As chaves batiam entre si dentro do bolso. As ideias dela ricocheteiam em sua cabeça, apertavam-lhe o coração. Sentiu breve calafrio enquanto andava. Olhou ao redor e o respiro de alívio foi estar sozinho na rua. Sem espectadores. Sem juízes. Embora habituado com suas condições, ele fora perturbado. Trama da Realidade. Até quando ela insistiria? Ele viu esvaziar-se os porta-retratos, instalar-se o silêncio; porém, aquele desanuviar mexeu com ele. 


No dia em que nasceu, ela não imaginou que um dia a Realidade iria usá-la para diante dele, abrir um novo rumo na paisagem que até assinada já estava.


Natimorta esperança, não seriam suficientes todas as expectativas diante do choro forte da menina que nasceu sem saber nem ao menos quem era a Realidade. Sua mãe não teve dúvidas tampouco explicações para o nome escolhido para a doce infante.


Pele inteira, sem trincas, marcas de sol, cicatrizes. Olhos pujantes, e um gesticular no ar que parecia reger toda a sabedoria ao redor, com um simples e involuntário descobrir os membros do corpo e gargalhar. Crescia então em estatura, em conhecimento, em ternura. Sua fé estava além dos dogmas humanos. Ela tinha uma conexão e modo de compreensão. 


Um mundo sem ternura é a flor sem propósito. Ela também se fazia de flor, ao olhar de quem por ela passasse. Encantamento sem desejo, admiração e cuidado. Sobreviveu aos tropeços e dedicou-se a aprimorar seu catálogo de sensações e sabores. Ela atravessou as gerações até dar-se conta da presença da Realidade. 


Sorrateira, a Realidade nunca a deixou livre. Sempre pontuou seus sonhos e escolhas. Sempre esteve presente como o vulto que pisca no canto do campo de visão. Todavia, ela nunca se assustou, tampouco menosprezou a Realidade; apenas não a fez epicentro da vida.


Foi um dia de muita chuva. Foi uma rua de asfalto que se desfaz. Foi um café amargo. Um trânsito lento, sons estridentes de obras urbanas ao fundo, e ele à sua frente. Involuntariamente foram para o mesmo lugar. 


Mesas uma de frente para a outra. Em uma mesa mocaccino, na outra mesa cheesecake de frutas vermelhas e um espresso. No pires um biscoito de banana, zero açúcar, revestido de chocolate e canela. Ao lado da xícara um poema de Neruda no guardanapo, e um copo de dose, cheio não mais de água com gás.



quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Soro - 7 ml

 


A xícara sobre a bancada da cozinha. O café de gosto intenso o despertava dos momentos de devaneio. Era uma manhã diferente. Ele, embora despertado, não estava eufórico, não se precipitou a ponto de deixar brecha para que a Realidade pudesse interferir mais uma vez em sua vida. Conseguiu se desprender dela. Se virtude, evolução ou doença,  importava menos.

O tempo fechou. Chovia opiniões alheias lá fora. Ele saiu sem guarda-chuva, nada mais o atingia. Conseguiu entender.

O traço encontra um rumo, como água, como vento, um a mais elemento da natureza de quem existe, além das rimas, quinas e esquinas. Em um café em Viena, um cappuccino em Praga; seja nas fotos, entre os animais noturnos, seja na ligação de Natal não atendida. Ele sentiu.

Curioso, pois chove. E com ela toda elegância das sonoras gotas da madrugada ressoam no dia. 

O frescor abafado do beijo silencioso da brisa, que passa ainda em contraste com o que me resta da luz que da lua vem. Ela me alcança então, sutilmente provando que não conheço mais palavras capazes de manifestar em plenitude o que vem a ser depois da chuva, enquanto chove. Persisto sentindo em cada poro o desafio de existir. Além das bandeiras sociais, consigo ver um pouco além, à frente. Consegui conceber o que há ou que algo há, afora as fronteiras. Minha cabeça então separava-se de mim, o que vejo é menos do que é mais do que sei.

Rajada lateral, o silêncio transita pontuando espaços, pensamentos e transformando sensações. Desta feita, o famigerado olhar percebe de forma diferente o derredor, rompe membranas sociais, alcança um novo aspecto, dissocia-se para habitar-se.

Percebia as diferenças, as incoerências, inconsistências, rimas das pessoas, dos instantes. A fragilidade do corpo, as doenças, dores, limitações. A carne em processo de morte, a mente liberta dos paradigmas sociais, de uma organização social que castra, para manter a imagem do equilíbrio. O distanciamento da massa, tornando-se invisível é mito. Sempre alguém o percebe. Entretanto, o distanciamento da massa por meio do desvincular-se da crítica, é sim revigorante, e duradouro. Confinar-se à amplitude de estar apenas com os amigos, sem deixar de ter ciência de onde estão os inimigos. Todavia, sem necessidade de os prejudicar. Percebia como a temperatura alterava a sensação e sabor das coisas.

A beleza do céu, das cores e cheiros, dos movimentos espontâneos da vida, sincronizados, encantadoramente simples, em uma trama complexa; a vida evoluiu, com mais sabor e paz. Com mais sabor e sentimento. Com mais vida.

Afora os clichês, a naturalidade de ser, sentir, vivenciar a textura dos instantes sendo em si um mesmo, diferente. Ele não havia se decidido sobre sair de casa hoje.

Volúvel como o clima. Distante sem medidas. Inerte; perpasso minha vida pelo divã dos meus sentimentos e minha razão. Intenso como o tempo, transformo-me e tenho adaptado o olhar além das cercas vivas, das palavras mumificadas e dos padrões que acorrentam corações, escondendo a paz. Seu som descendo pelas minhas ideias. Escorre chuvisco matinal de uma manhã deliciosamente aconchegante, refrescante. O gosto de café e seu aromapoesia. A sensação de pertencer ao instante e não estar preso no voo, mas liberto no pensamento.

Doce trajeto de um singelo voo. Asas destino a dedilhar o olhar no vento. Aconchego do repouso das palavras que florescem sentimento. Sempre há o algoz sobre as cabeças a tentar conter a todos em aquários, coleiras, estábulos, estantes.

Trovões no amanhecer não assustam. Relâmpagos na curva do horizonte tampouco iluminam mais que o sol a contraponto. Saiu. Contudo, foi o rompante do porvir que o fez voltar. Estava à mercê do tempo que não mais passa, quando o vento subverteu a paleta de cores da paisagem e com a chuva mudou novamente. A mesa para o vinho, o banco para sentar-se e ter a vista. O cão no quintal, sem pelo alto, sem grandes peripécias, mas com lealdade. Una, a escrita sem hostilidade, sem ser desinteressante e sem despertar o interesse em função da dor. As dobras, as rimas; o ser humano desvinculado, descolado da membrana social que a aprisiona, pune e brinda a ideologia da dor. Lembrou da definição de andarilho. O andarilho de Nietzsche.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Soro - 6 ml


 O corpo pesado, o sorriso dificilmente reluzia em sua face, pois a maneira como as pessoas ao redor o tratavam foi pouco a pouco sufocando-o, ferindo-o no silêncio dos dias comuns. As lembranças batiam nas paredes e só depois de o ferir, desfazem-se como bolhas de sabão.


  • Hoje a tristeza me alcançou. Cansa. A insistência das pessoas em manter abertas as feridas dos outros, simplesmente para estampar um falso sorriso social. Tanto sentimento conturbado, tanta sensação que precisa de freio, de silêncio, de tempo; mas esse já não passa. Parece ter sido enterrado.


A terra desmorona, escorre como leite com achocolatado. Desfaz a fina malha asfáltica, desce com sonhos, frustrações, dívidas, suor, concreto armado. Desfaz o que parecia ser duradouro, abre uma cratera na percepção da realidade, na consciência da vulnerabilidade da vida, das posses, dos status. Desmorona a terra e a chuva não para. Ele observou a paisagem mudar de longe. Ali, perto, tudo permanecia; até mesmo a chuva.

Sua tristeza não era compaixão, tampouco desdém. Ele se desdobrou durante anos, dispersando no universo uma energia para tornar o ambiente mais sereno. No entanto, agora, ele apenas seguia a canção, como tantos dizem. Entretanto, ninguém fala sobre o que fica e o que vem, quando a canção acaba.


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Soro - 5 ml

 


O controle ineficaz do corpo à madrugada.

Nem sono, nem sonho. Nem liberdade, nem prisão. A tecedura de uma rotina de esmurrar o vento, no pensamento, buscando paz. Pingava a gota no equipo. Uma caiu do teto, em sua testa. Outra emergiu de seus poros. Uma derradeira escorreu pela janela do quarto. O ato de observar funcionava como um ponteiro. Era como se o tempo passasse, em inércia, dentro de um gota que não trouxe cura, nem alívio. Ela o observava de longe, esgueirando à porta; a Realidade. Ele nem mais a ignorava, nem a percebia. Talvez fosse a doença, pensava ela.


Papel hario v60, alvo, à espera da água. Noventa e dois graus sobre o pó moído minutos atrás. Eram grãos colhidos nas Gerais. Ele preparou uma bela xícara, foi até o quintal para tomar seu café. No pires, biscoitos de nata recheados com goiabada. A sensação da grama aos pés descalços, o aroma do café, o sabor do biscoito e os pensamentos que giravam em carrossel em sua mente cansada.


Não tinha como saber a maneira que trascorreriam suas lágrimas depois que partiam do coração, preciptavam pelos olhos e desciam pelo rosto rumo ao chão. Se densa, infiltra no solo, nutre raízes e ainda assim penetra os lençóis freáticos e flui pelas entrelinhas. Se leve, ainda na superfície evapora, não desaparece, muda de forma.


Anuviado céu das expectativas e correria urbana. Com o sopro de uma ideia se desfaz a tempestade, embora fique aquele vento.


Ele se levantou; pronto; caminhou até o trabalho. As ruas apresentavam uma paleta de cores emocionais, o embate delas ao invés de formar um arco-íris, causava confusão. Ele estava cansado. Chegou ao trabalho e com a mesma intensidade de todos os dias foi assertivo e ciente dos riscos e dos resultados. Não ficou nenhuma pendência. Ela se espantava.


Apenas ela sabia da doença. A Realidade. Talvez por ter percebido ele se afastar dela, não por loucura, desespero, mas outra coisa, que ela entendeu ser uma doença. Ele não se importava com ela, dissociou-se.


Ela deixou de fazer sentido no seu dia a dia, ele nem a percebia mais; não a via. Ele observou a borboleta errante, certa de si, voando de forma a pincelar no céu cores de encanto e esperança. No fundo o azul céu e a certeza de que os rumos mudaram. Ele ainda podia sentir. Talvez tamanha fosse a intensidade dos seus sentimentos, que o dia a dia ali naquele escritório fosse percebido de forma diferente.


Com sorriso nos olhos, perpassou a brisa rumo à cafeteria dos fins de tarde. O cheiro de livros junto aos aromas de café eram seu predileto clichê. Ela o perseguiu até a porta, mas não entrou, não se sabia se era por causa da doença dele.


O expediente terminou e ele se permitiu a caminhos diferentes. Subiu a rua que fazia arder a panturrilha. Desviou-se dos ombros na estreita calçada. Escolheu um caminho diferente.


A chuva vinha sempre do mesmo lado do céu. Dos montes verdes, ao longe, atrás da sua casa. Ele sempre gostou de observar a formação das nuvens e esperar pela precipitação após os ventos. Era este sempre um momento de contemplação, de acessar lembranças e de esvaziar-se. Neste dia lembrou de como a conheceu. Passava de carro pela rua em horário tranquilo quando a viu desfilando na calçada. Ela, de pele alva, ou era jambo, de cabelos loiros ou morena flor, passava despercebida pelos beija-flores. Ele chegou bem perto com o carro, diminuiu a velocidade, abriu o vidro de foi categórico:


  • Bom Dia! Entre. Venha ser a co-piloto de todos os meus dias, permitindo a mim ser o seu. Você será a flor que em si é o próprio jardim, o elixir do sentimento que mantém a vida, a esperança, a paz.



Ela olhou com estranhamento. Ele possivelmente diz a todas, pensou. E se com o passar do tempo, diante das aparas de um relacionamento ele o mesmo fizer em outra rua qualquer? Ela titubeou. Entretanto, quanta sinceridade no olhar, ela se encantou. Ele insistiu. Ela entrou.


A maneira como ela saiu o marcou de uma forma tão peculiar, a ponto de não ser percebido pelos tantos personagens do seu dia a dia. Ele sabia das mudanças, pois sabia olhar pela janela. Acontece que pouco a pouco ele perdeu a prática de voar no olhar, de pousar no pensamento. Talvez fosse a doença; entretanto apenas a Realidade parecia saber.


Ele às vezes tinha espasmos de recordação de sensações de outrora. Seus dedos transformando a massa, sua mente se desvencilhando de qualquer pensamento que causasse dor. Ali, de pé na cozinha, enquanto de forma calma manejava a faca, cortava a massa já temperada, formando pequenos travesseiros. Via-os emergir da fervente água e os dava um choque na água gelada. Ponderadamente, dispunha a massa no refratário e por cima colocava o molho, temperado com parcimônia. Comeu à mesa, sozinho, olhando para o gramado lá de fora. Anotações perdidas iam com o vento pelo chão. Nem se importava mais em colocar no papel tudo o que pela cabeça passava. Não que não visse propósito, mas que já não tinha o mesmo sabor.


Os dias de trabalho eram mais uma das tantas contagens regressivas. Ele terminava o serviço diário mais uma vez sem deixar pendências. Saiu sem perceber ambas.


Comma. Invariável. O poder dos lábios dela sobre o vento ao balbuciar algo em direção a ele. Entretanto as palavras de Comma já não passavam pelos ouvidos dele. De longe, impiedosa, a Realidade observava o esmaecer da expectativa, mas a persistência de um sentimento. 


O toque involuntário de seus corpos em um corredor, no disputar desatento por uma folha na máquina de fotocópia, por um copo descartável na copa, por um lugar no elevador. Era mais do que o esbarrar, eram lampejos de esperança. Entretanto, ele não alimentou. Talvez fosse a doença, e só a Realidade percebia.


A Realidade a afasta dele. O escritório era uma sucursal de uma dimensão onde a humanidade era sensível, vulnerável, desesperadamente carente e cruel.


  • Ninguém me vê. Não me sentem ou me conhecem. Não se trata de fama, ou máscara, é outro reconhecimento. Ninguém vê a ninguém. Quando precisamos de nos agarrar em algo, quando lançamos o olhar em busca de um afago que nos proporcione respiro, muitas vezes desfalecemos dentro do crescente poço dentro de nós. [Comma encontrou um ponto final]


Ele não se tocou. Não percebia os sentimentos que orbitavam sua pele, tampouco tinha ciência das lágrimas que ainda corriam de seus olhos à noite. Ele não conseguia nem mesmo se sentir. Paulatinamente perdeu o contato consigo mesmo. O que poderia o retirar do automatismo modo de abster-se? Nem mesmo a Realidade o alcançava. A doença beirava seu estágio final.


Doença? Seria a apatia controlada um sintoma? Desprender-se da realidade de forma a nada, intensamente, fazer algum sentido, sentimento, importunar, pressionar ou encantar. Ele, exilado de si e do outro, seguia na silenciosa e sem lamúria marcação de versos, dia, noite, tardes, manhãs e madrugadas. A Realidade não concebia como normal alguém se dissociar dela; seja de perto ou longe. Rotulando anomalias, transformando-as em doenças. Contudo, a ele nada mais tinha assim tanta importância. Era como se ele não estivesse fora, mas completamente dentro e sem amarras.



quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Soro - 4 ml

 


A expectativa. Poderia ser o título daquele dia.

Ele saiu de casa, mas já na esquina teve de retornar, esqueceu de algo sem saber o que era. Tocou os bolsos, como todos o fazem, não sentiu falta de nada, mas sabia que faltava algo. Dentro de casa percorreu os cômodos à procura do que não sabia. Comeu maçã, bebeu suco, coçou a cabeça, olhou tudo e foi para o quintal. Lá no fundo, sentou-se no banco de madeira, daqueles de praça, mas confortáveis. Estava em uma posição privilegiada, no aclive. Encontrou. Era a paz. Gostava de sentar ali e observar a paisagem, ouvir as poesias gritadas pelas suas lembranças. Retendo momentaneamente o tempo que não mais passa. Os pés descalços trocavam energia com o solo. Às vezes, o piscar dos olhos nos apresenta tudo em um timelapse especial, tão particular, que só faz sentido enquanto os olhos estão fechados. E este universo, em expansão, é inacessível até mesmo para si, quando as pálpebras se recolhem. Seus olhos brilhavam regendo o silêncio. Saiu de casa novamente. Todavia, o piscar de olhos a conta-gotas, permeia todos os seus instantes.


A pasta feita de papel pardo às mãos quase pendia ao chão. Seus passos firmes sempre paravam nos setenta e sete degraus. Ele habitava aquela estação de trabalho durante a semana. 


Os poetas na estante não o avisaram, tampouco o prepararam. Hoje ela estava diferente. Arredia, traiçoeira, firme, às vezes afável, outrora cruel; a Realidade fazia questão de o lembrar do que ele não esquecia. 


Sem tropeços ou soluços ele foi assertivo em cumprir todas as atividades daquele dia. Nenhuma pendência ficou para outro tempo. Sem deflagrar dos poros suor, sem ter a derme rasgada por mais uma ruga, ele planava pelo dia.


Comma, este era o nome dela. Sempre o recebia com um olhar de ternura. 


  • Difícil a tentativa de dar conta do universo de realização de alguém. Tão complexo e complicado. Quase não tenho a capacidade de cuidar do meu universo, das minhas coisas. Enquanto no rádio escuto “everybody is gonna learn sometimes”; no umbral o pássaro negro repete “never more”. Fico entre os silêncios, o eco, a canção e o retrato.

  • Não se prenda.


Embaraçada nos conceitos, distanciando-se dos clichês, compreendeu não de imediato, sobre o que ele a disse. Ela se via nos olhos dele. Sentia paz na respiração dele tão perto de seu rosto, o calor de suas mãos quando as tocava despretensiosamente, a maneira dele beber café, o modo como escrevia nos livros e deixava-os para ela ler. Ele ampliava as obras. Contudo não sabia ela que se tratava de um testamento. Ele não falava da doença, ninguém a percebia. A gota do soro pingava como uma maçaneta de bumbo, soava dentro dele a dança do tempo com a esperança. Enquanto o enquadramento de como ele via o gotejar lembrava um filme de Ritchie, a trilha sonora tinha o som de Tom Yorke e Bjork, tendo ao fundo as risadas de uma mulher de branco, batom vermelho, estilo Almodóvar.

 

Se breve delírio, ou o quadro real, o silêncio acobertava a certeza, e ele a carregava todos os dias, indo trabalhar sem transparecer, ou falar sobre a doença. Se solução, se espontânea estratégia, se peripécia do destino, ou livre desatino, importa menos do que as interrelações que ele passou naqueles dias.


Nem mesmo seus passos tinham ciência de sua caminhada solitária, cheio de animais e pessoas ao redor, repleto de emoções, pensamentos e silêncio dentro. As tardes em seu fim sempre tinham algo diferente no vento, nas cores do céu e no cheiro do ar. Há tempos foi acolhido. O filhote amadureceu. Chopin vinha com suas patas, como se no chão tocasse piano. Era o nobre escudeiro, acompanharia ele durante toda a doença e além dela. Madrugadas de luar e sem luar, sentado em seu universo particular, com o escudeiro ao lado, com o caderno nas mãos. Seu renovar estava fora dos padrões, seu anseio por reconhecimento não seguia o clichê. Talvez fosse a doença.


Quando o dia estava para dar vírgula; quando suas pálpebras pesaram; ela ligou. Ele não entendeu. Estava tão perto. Os diálogos passaram a ser apenas bites e bytes. Vocalizar era fruto de garimpo, ainda assim, ele se levantou e foi, mas nunca chegou. Talvez fosse a doença.


Ela não entendia como ele insistia em viver sozinho naquela casa vazia. Não compreendia a energia dele para trabalhar sem deixar pendências, sem fazer laços, sem estender o expediente, sem reclamar, sem falar das lembranças, sem amontoar bitucas no corredor. Ela não sabia, mas talvez fosse a doença.