quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Soro - 19ml

 

Quão suave a sensação de um peso ser retirado de seus ombros. De suas costas; e você desconhecer o peso, mas ter fé de que quem o retirou, o fez para seu bem. Ele amanheceu com mais ternura no olhar. Em lentos instantes intensos ele percebia. O peso reduzia ainda mais. Era bom respirar o ar fresco das manhãs. Leve, era possível perpassar lugares, versos, escalar estrofes, montanhas, contornos, curvas, poros. Cobogós da alma. Passaporte na estante, documentos na mala.


Suas viagens tornaram-se algo mais que um passeio. Ele nunca havia estado ali. Lembrou-se de um restaurante à beira da estrada, com seus decks sobre lagos, mas aquilo ali era diferente. Longínqua extensão de madeira sobre um lago, contando ao meio a paisagem de bosques, brejos e água, muita água. O sol não apressava seus passos, tampouco o vento o freava. Com parcimônia atravessou, sem fazer fotos, sem dar vazão às lembranças. Era passo e sentimento. Endla estava ainda mais natural. Afora a névoa das manhãs. O frio, a distância o aproximava. As ideias às vezes se organizam como uma floresta. Caminhar por ela é assumir uma pequenez, vulnerabilidade e falta do senso de direção, de visão a respeito de onde começa e onde termina. Atravessou campos sem montanhas, cidades modernas e povoados pacatos. Cruzou o mar rumo ao seu continente, pois o seu retorno era a continuação da ida. Duas poltronas à janela. Vinho e torradas. 


Varreu silenciosamente os cômodos da casa retirando mais do que poeira. Não estava cansado, mas de certa forma sentia estar próximo de algum acontecimento. Não sabia se seria destes que marcam a trajetória, ou se era daqueles que a interrompe. Se alegre, rumo à paz e felicidade, ou se entregaria ao desespero suas preces. Ele não se preocupou. Sentia cada vez mais leve. Cada vez mais, menos peso. Não pensou nela. Sua xícara de café gerava muito mais do que epigenética. Transportava suas ideias no silêncio de um dia que começou frio. A paralaxe dos argumentos movimenta a sociedade e alimenta seus conflitos sem as pessoas perceberem.


Era versátil, sempre foi. Aprendeu na prática o funcionalismo do mimetismo, dos automatismos e da quebra de paradigmas. Não precisa utilizar as máscaras sociais que abafam não a respiração, mas a essência. Ele era pura essência. Em esperança, em paz. A melancolia fora lançada sobre a Realidade, e esta não mais podia o tocar.


A sensação de leveza o trazia aconchego. Algo aconteceria. Embora não soubesse o quê, tinha a certeza de que bom ou ruim era o que deveria acontecer. No entanto a paz em seu espírito indicava que seria algo bom, pleno. A serenidade se apoderou dele com uma maturidade. Isto não significa que sua irritabilidade desapareceu, mas que ele a controlava, nem que fosse mordendo maçãs. Sobre a mesa de centro, a bola de metal contorcido era o elo com quem um dia ele foi.


Um passo não é maior do que as pernas. O pulo às vezes o é. O pulo envolve entrega. A ousadia de tirar os pés de um lado sem ter nada mais que o vislumbre do firmamento da queda. Repouso dos pés. O passo é razão, o pulo é um passo de fé. Se tudo o que é sólido se desmancha no ar de Karl, tudo o que está no ar, em algum momento há de entrar por nossas narinas. E o que será então de nossas (tão nossas quanto dos outros) ideias? A pureza das intenções e a rispidez das ações. A morte da inércia e seu renascimento. Teimosia não é persistência e muito menos perseverança. Perdas e Danos. Clichês. Dionaea muscipula. A inércia é rompida. Lágrimas teimam em escorrer. Para obter a beleza das flores, fere-se a terra, trata-se do ferimento com matéria orgânica em decomposição. Mata-se a vegetação competitiva. Para despertar sorrisos, arrancam-se flores. Se deixadas ligadas ao solo, em breve murcham, fechando o ciclo. Mais matéria orgânica. Ciclos fechados não possibilitam transcender, e a Realidade sabia disso, sem saber um modo eficiente de torná-los perenes. Ele estava livre dos ciclos. Pulou.


Mesa para dois. Sentado no canto do bar, estilo pub, quase uma taberna. Pediu primeiro um café, para abrir as ideias antes de fechar os sentimentos. Observou que do outro lado, um idoso de brilho nos olhos sorria timidamente ao acaso. A pele cansada de apanhar da realidade, os lábios ressecados, após tanto pender palavras, esvaziando-se diante da profundidade das pessoas rasas. A ponto de desistir. A realidade o sustentava pelo cruel fio de vida, forçando-o a vivenciar todas aquelas mazelas, geração por geração. Pensou em chamar o velho para um trago, porém o fardo já estava selado. Acenou, como se o reconhecesse, e saiu levando as rugas e o silêncio. Café terminado, sua caipivodka chegou acompanhada de uma mini tábua de frios, e mandioca na manteiga.


Contemplar não era a única ação dele naquela noite. Todavia, o instante não havia chegado. Neste ínterim, contemplava os casais e os suspiros clichês dos olhares e feromônios. Os embates das gerações, os conflitos de relacionamentos em crise à silenciosa mesa. O casal dançando no centro do salão. Corpo no corpo, o balanço do verso à meia luz. O senhor respeitoso, a senhora aconchegada no movimento do corpo do marido. Era bonito ver como diferentes águas se encontram formando o mar. A música os balançava semelhante às ondas. Ninguém assistia. Ele contemplava a todos como quem vê o próprio corpo no espelho, submetido aos argumentos da Realidade. A desilusão pode alimentar processos criativos conforme pode afundar as pessoas em um processo melancólico de distanciamento e ruína. Não era o que acontecia ali. Ele podia sentir o chão e ainda assim não perceber peso algum. Ele podia sentir seu corpo, sem ter nos ombros nada; nem patente, nem correntes.


O cheiro de canela vinha da madeira do balcão. O perfume agradável, que o pescou, vinha da altiva, porém momentaneamente cabisbaixa, mulher de lábios vivos. Ela lia um livro cuja capa ele não conseguiu identificar. Quem leria à meia luz de um pub? O que leria?


Seus ombros não estavam pesados, mas suas pálpebras o traiam. Não correspondiam à vontade de se aproximar, de estar acordado. Ele insistiu. Precisava mais do que compreender, mas se envolver com aquela mulher tão especial, ainda sendo desconhecida, ele sabia o que sentia, e engano não tinha poder algum ali. Era mais que desejo, era o encaixe perfeito, a integração entre sonho, possibilidade e circunstância. Chegou perto dela, a ponto de ver intimamente a tatuagem com a face e poesias de Dali, o contraste na costela. Quando percebeu que ela o olhava profundamente, tropeçou em si e caiu dentro do livro, afogando-se nas páginas. Não compreendia como tantas palavras surgiam o distanciando do significado. Letras e letras em quilômetros, abarrotando metros cúbicos de sílabas. Acordou atônito. O cheiro de canela emanava do café à mesa. Duas xícaras e um livro.


Era o pássaro. Lutando contra o vento. Batia as asas tentando o movimento e encontrando apenas a resistência. Ele observava, era o que mais gostava de fazer, agora que vivia fora do alcance da Realidade. O céu anunciou a chuva. Seus lábios ainda ardiam. Mordidas sinceras o interessam. Explicações não cabiam. Ele rompeu não apenas a força do vento, mas conseguia transitar pelo pub sem tropeçar, sem se censurar. Era o pássaro cravado em sua pele. “Um pássaro livre que não poderia mudar”.


Um pombo no telhado. Apenas um pombo. A silhueta de um homem no alto de uma construção o chamou a atenção. Era mais uma moradia rumo ao céu. O pombo o distraiu, e contra a luz do sol ele corria para espantar o columba livia que teimava em marcar a massa fresca. Ver de longe aquele baile era a diversão das manhãs de forte sol. Ele estava sóbrio. Decidiu ir à feira, pois ao escritório não iria mais. Com uma sacola feita de lona, saiu a pé em direção à praça, dobrando a esquina, rumo à feira. Chegou sem saber como. Foi direto à barraca de frutas em busca do que poderia harmonizar com sua noite de filé, pimenta, manjericão, vinho e risadas. Abacaxi.  


Faca afiada gerando fatias, cubos e pequenos pedaços. Panela no fogo, molho borbulhando e forno aquecido. Nina Simone cantando para acalmá-lo. Manteiga derretida, lâminas de alho perfumando a cozinha. O instante correto de entrar com cada ingrediente. Não uma receita, mas um sentimento. Pimenta do reino moída na hora, colher de pau, pano de prato surrado, mas limpo. O alimento brilha no prato limpo. A textura forma uma paisagem na louça. O cheiro perfuma toda a cozinha e a copa, abrindo o piloro, trazendo os corpos à mesa. Os sons, como a famigerada cena de Hair, ou a canção Panis et circenses. Talheres apenas, palavras depois. Olhares nas entrelinhas. Plano e contraplano com ela. Ficar calado deixou de ser a opção, pois ela não iria sair dali.




Extensa carga cultural atravessa a maneira como a sociedade se organiza. Não pára mais para comer assim; cozinhar então? Transição de comportamentos, tecnologias e interpretação da vida. Soterrar sonhos, pisotear os jardins das individualidades calçados de ego. Viver não é para amadores e isso muita gente diz. Pode-se passar ingenuamente pela vida, mas não pode ignorar as implicações de se estar vivo. E não existem amadores.


Fácil falar quando se está na sua posição.


Acontece que não a escolhi, tampouco penso a respeito de escolher se estar onde se está. Todavia não renego o que sou.


Não é suficiente.


Quando é?


Não delegue ao tempo tamanha responsabilidade. Ele nem sabe se passa. Tampouco pense em envolver a distância como argumento. Você se esquiva.


Você sempre me superestimou.


Não sabe o que fala.


Já se ouviu?


Já viu além do que você representa?




Não havia hostilidade nas falas, embora ela entoasse certo desconforto e desespero. Ele permanecia sóbrio, elegante e satisfeito com os sabores à mesa. A sobremesa era o próximo passo. Entretanto não seria à mesa. Foram para a varanda, lá do alto, perto do muro limítrofe. Portais de madeira, cortinas brancas nas laterais, um balanço à frente. Confortáveis poltronas de palha de bambu. Marrom e branco. Trouxe junto da sobremesa uma manta para aquecer. Um bolo compacto, chocolate, de densidade e consistência intensas, sem pesar o estômago. Brownie. Trouxe o tabuleiro, com o potinho de sorvete de doce de leite, com pedaços, sem muito açúcar. Lamber os dedos e o pingo que foge ao queixo. Iluminação que gera aconchego.




A paisagem que atenua seus pecados diariamente é corrompida com seus pedidos de perdão. O frescor que toca sua pele dificilmente alcança sua alma. Embora seus ombros estejam leves, há certo peso no seu olhar, a certa profundidade nas pegadas que deixa por onde passa.


Inevitável deixar marcas. Pois até mesmo quando penso que não; estou a fazê-las. No entanto em você nada fiz. Ouvi sua tosse, senti sua pele, seu perfume, sua risada. Seu olhar no relicário me trouxe a certeza do que sentia, do que eu sinto. A espontaneidade de sorrir e não se importar, mesmo que tenham talhado o molho de queijo gorgonzola. O que comemos naquele dia foi pano de fundo para as trocas. Uma conversa íntima, a primeira, e foi como se nos conhecêssemos além do que o tempo. [Tocou seus cabelos vendo os dedos sumirem, inclinou a cabeça para cheirar seu pescoço, sua nuca, torre de marfim. Paladares se misturam. Expectativas são vaga-lumes rondando a copa da árvore.]


Está me confundindo.


Eu sei que Paca não é Realidade. Eu sei quem é você.


A ressaca da memória dos dias tristes o impedia muitas vezes de compreender que o momento era outro. Como escrever palavras belas com os dedos sangrando, com o coração e a mente cheios de uma dor atemporal? A morena de olhos de ressaca o observou no mercado. Fermento biológico. Quem compra fermento biológico à noite? Fermento e queijo defumado. Ela deu o troco sem contar as moedas. Sua atenção estava no que ele levava dentro da sacola. Ele não se importava se as pessoas se interessavam ou avaliavam suas combinações. Nem toda sobremesa deve ser apreciada depois do jantar. Algumas cabem bem como entrada, e um espresso. Assim as palavras. Algumas não devem ser deixadas à mesa, nem no final. Devem vir logo de entrada. Ele as entregou para Paca, de primeira, no relicário. A Realidade interviu. Ele sofreu. Resignado em sua insignificância. 


Queijo defumado, mel, pão caseiro, merlot na taça. O formigamento que domou seu corpo, poro por poro, o repousou na rede, com vistas para as estrelas.


Deliciosa a sensação de estar cada dia mais leve. Com direito a espasmos infantis de sorrisos espontâneos logo pela manhã. As canções tinham um movimento diferente no corpo dele. Não temia a Realidade, não mais estava submetido a ela. Percebeu que a intensidade mudou, talvez o amadurecimento com a idade; mas não. Era outra coisa e sabia que não era doença. 


Clichês derramados no mataborrão da vida. Cada luz com uma história, cada solidão um silêncio e nele um texto, cada escuridão a ansiedade da sensação, das sensações. O entendimento assim como o sentido, extrapolam as lógicas de uma sociedade contemporânea. A mancha da xícara diz mais que teu olhar a rondar meus pensamentos. As construções têm mais que tijolo e massa. Significado. Café para dois.




O mundo está cheio de lugares que nunca conhecerei, pessoas que nem saberei que existiram, o que fizeram, por onde passaram. Há lugares dentro de minha casa que ainda nem coloquei meu olhar, anos se passaram. Díspares arredores, não posso me render. Mantenho-me distante da Realidade, enquanto ela me rodeia, a sufocar-me com arredores díspares de olhos fixados, alienados na rede social e vida de terceiros; e eu sigo em meu isolamento, protegendo-me com minha membrana, tensão superficial. Sutilmente, meus anjos, em compasso os corações, recebi a paz, intangível, que você realidade não pode tocar. Díspares arredores ruidosos de um amor calado, de uma convivência usurpada. Descalço, integro-me ao jardim; desapareço na noite até que o orvalho me amanhece.




Sublime olhar. Cativante semblante. Ela é um anjo com todas as perfeições e imperfeições. Não uma santa, mas um anjo. Inspiração das belas telas de Dali, dos poemas de Pessoa, das mais especiais canções, dos inexprimíveis acordes. Ela despertava nele o que existe após as expectativas; a certeza.


Díspares arredores; olhares arredios. Altivez de arqueadas sobrancelhas; a lógica da psicopatia social, silenciada pela chuva, fossilizada na pele no voo de um colibri. Girondino café em uma tarde entre cortinas. Ela juntava-se a todas; juntas em um só ser. Ele ficou de olhar fixado na imagem dela.


Seu sorriso era capaz de iluminar o dia e aquecer a noite em aconchego, e transportá-lo para a vida. Contudo, a distância, juntamente com a Realidade a conduziu aos braços de estereótipos da cultura, da intelectualidade, e ele ficou resignado à possibilidade do que nunca foi. Tantos planos; tantas canções e suspiros. Ele mudou. Mas quando o café está frio na xícara, não adianta coar novamente. Quiz acreditar em um amor coldbrew que venceria a distância e o tempo. Cruel, a realidade ria alto, esganiçada, mal criada. A Realidade usava máscaras para esconder a falsidade e a fragilidade; para conter e filtrar as palavras. 


A seringa translúcida anestesiava o corpo depois de queimar as veias. O amargo do remédio chegava até a boca. Ele não queria mais as enfermeiras da verdade, embaralhando prontuários, distribuindo seringas sobre receitas. Ele não foi para se curar. A Realidade sabia.




Tudo tão branco. A sala de espera. Não percebemos que estamos nela enquanto nos imaginamos livres. Esquecer é uma benção para quem esquece, mas um fardo para aqueles que se lembram.




Ele não tinha esse privilégio. Persistia atento, sensível. Mesmo que ninguém o compreenda. Ainda que sua arte fosse vã e apenas relevante para um pequeno grupo. Ele sabia que a sinceridade não era soberana, que melindrosa na massa, funcionava melhor em grupos pequenos. Quem tem escolha? Quê? Cada um em compasso próprio. Rebeldia dos impacientes; aflição dos imediatistas. O ser humano perambulava diante dele, cada um na pura versão, egoísta.


Ele não tentava entender, mas respeitava. Era pouco remédio para tanta dor. Muita canção para poucos ouvidos. Pouca liberdade para tanta escravidão. Muita tentativa para pouco pódio. Desespero de corpo. Crueldade da rima. A Realidade achava-se soberana. Transfigurava-se à medida em que tudo mudava. Estava em seus últimos recursos, não havia margem para outra tentativa com ele. Ela sabia. Ele recostou a cabeça na poltrona enquanto imaginava.


Tantas tonturas, tantas texturas. Quando ela saiu, ele não a reconheceu. Era outra. Tanto contexto e tão pouco respiro. Outrossim, Paca estava viva dentro dele. Não uma lembrança, ou prisioneira, tampouco um devaneio, possessão ou premonição. Ele sentia a conexão. Paca estava viva dentro dele. Embora ela não sentisse o mesmo. A Realidade pensou em humilhá-lo. Embora ela não fugisse dela, mas sobrevivesse.


A Realidade não o acessava mais. Nem para humilhá-lo. Ele preparou o café com parcimônia e comeu acompanhado de um queijo meia cura. Manhã e tarde. O balanço da rede e sono intermitente. Malbec e queijo curado. Sorvete de amendoim com chocolate. Sabores suaves. Crocância histórica. Nada acentuado. Equilibrado, o ambiente antevia seus gestos. Concentrado. Ele estava entregue e nunca mais a Realidade iria o subjugar. Não sentia o aperto no peito. Não sentia o gosto da mágoa. Não encontrou porta de saída. Apenas soube não estar mais lá.




Caminhei pelo salão vazio daquele lugar. Corredores escuros ou mal iluminados de um porcelanato hospitalar. Outrora estive nas ruas, escuras, unidas. Ouvindo de longe o grito dos feirantes. Ruminavam. Ela cortinou de luz e depois fechou meu céu. Meu cansado coração pesou. Eu a vi desaparecer diante de meus olhos. Primeiro suplicando misericórdia, com marejados olhos avermelhando-se no canto. Depois, indo.... esmaecendo .... partindo e deixando pra mim um olhar vazio. Eu não mais a reconheci. O tempo nos engana enquanto nos movemos. Como a lua nos persegue no céu. Sem ao menos se aproximar. O beija-flor, atravessou o cobogó, pousou no fio, sob a chuva branda. Olhou para mim, até que eu o reconhecesse. Voou ao meu encontro, e foi além do meu horizonte. Minha costela ardeu.




Caminhar de olhos abertos. Sentir o vento, o frescor e leve rubor. Aquecer o corpo no atrito. Experimentar os antônimos de todas as mazelas e dores. Num instante, no voo certeiro do colibri. Por instantes pensou como seria envelhecer longe dali. Catas Altas, Alto Caparaó, aeroportos. Um dia em Vieste, tranquilo, percebendo o anoitecer em uma taça de vinho, tendo a vista do Adriático como refúgio de suas lembranças. Melhorar, mas não alterar os sabores básicos. Pratos brancos gastos, forros surrados mas limpos, feitos à mão. As viagens eram eternos retornos aos paradoxos que criou enquanto envelhecia. Desde o nascimento, até o auge dos movimentos limitados. Mover a carne cansado ao vento tornou-se um exercício não mais automático. Movimentos pensados no paraíso da Puglia. 


A Realidade e seu compasso descabido. O desejo de controle, de brincar com as realizações e anseios alheios, de colocar freio em potenciais e sobrecarregar talentos para desfazê-los. Uma briga de egos em escalada; não percebem que junto com os corpos, muito mais cai.


Cada um diminui o sofrimento do outro. Tornar a dor em amenidades permite que cada qual mantenha a luz de palco em si. Quando se tem saúde, é o que desejam tirar de você. Quando sorri com leveza e facilidade, é isto que tiram de você. Quando se tem dinheiro, retirar de você via tributos, boletos e interesses escusos de quem o circunda.


Lapso do tempo ter possibilitado envelhecimento à distância que assim perdeu sua elasticidade e então permitiu uma experiência outra; que a Realidade não consegue perceber, tampouco compreender. Ele sentia o seu lugar na história, mas isso não enchia seu coração, todavia o deixava sozinho dentro de si. 


Vago, perdido na distância e insuficiência. Tinha distância mas não havia espaço. Abriu a boca e sentiu a pressão nos ouvidos. Engoliu a saliva e voltou a ouvir novamente. Era como se o ambiente se adequasse aos pensamentos e sua mente orquestrasse tudo. 


Uma rachadura na tela dos contrastes. Um limiar diferente dos que os livros prometeram. Uma canção que completa os poemas de uma madrugada longa. Jorravam ao redor e dentro os efeitos... ele soube, mais uma vez, tudo estaria diferente.  Escorreu pela janela a gota concisa dos seus argumentos, os sonhos, a esperança, a vitalidade de suportar a gravidade. Gravidade. Épico dia de levezas pueris, a seriedade da vida diluída em um equipo. Um coração de cicatrizes, à leitura em braille, só se encontra amor; mesmo tendo dor nas entrelinhas; encontra-se apenas amor.


Belas curvas da carne na roupa. Tons variados, perfumes diversos. O magnetismo dos reflexos. O sol estava lindo com sua contendeu calor sobre os objetos. Certa beleza e paz vinha do desfile da luz sobre as árvores, através dos vidros, pelo granito do corredor. Ele sabia que o som de seus passo tinham o peso do seu cansaço. Urgências coletivas são bandeiras. As efetivas são individuais. E as pessoas lidam com elas no âmbito coletivo, mas o viés final sempre é individual.  Que tarde de adjetivos e onomatopeias! Ele por um mínimo instante até pensou que tudo mudará. A dança que não anuncia o próximo passo, o clima que muda repentinamente e fez de nuvens um teto acolchoado. Choveu intensamente. Setenta e sete minutos. A mudança de um dos três pólos da terra. Ele sentiu. Mudanças irreversíveis; estavam na prateleira de cima, mas ele sempre tropeçou nelas ao chão. Os ponteiros não davam conta do tempo. 


A névoa desceu a montanha silenciosamente. Ele via de longe, sem saber que ela chegaria até ele. Estava preparado. Sem intercorrências, seus pensamentos consonantes aos sentimentos e às sensações. Enquanto transpunha as ruas, na janela lateral do carro percebia a névoa continuar a descer, cobrindo estruturas e emoções. Ela veio com densa, com um frio e frescor, permitindo um calorzinho vindo com a luz do sol. Ela veio úmida. Cada gota um sorriso. Um modo diferente de vivenciar a natureza, o movimento da vida. Saiu dos caminhos conhecidos, se desconectou do último fio. Parou o carro na ponta da estrada. Não havia porteira ou cerca. Penetrou a mata virgem, guiado pelos sons.


Quando o sol atravessou as nuvens naquela manhã encontrou seu corpo estendido. Sua pele sobre a pedra levemente aquecida pela manhã. Seu corpo em contornos, como os relógios da persistência da memória. As formigas respeitavam a distância, os insetos não chegavam perto. Leve, a brisa balançava as flores, violetas, azuis, vermelhas, lírios, flores selvagens, amarelas e laranja. O corpo dele permanecia imóvel. Do alto da árvore o colibri o fitava. No mergulho do voo, passou perto de seus ouvidos, como quem conta um segredo. Ele abriu os olhos. 


A gramínea fria da manhã, o som solitário mas ensurdecedor da cachoeira. Lavou o rosto na margem. Bebeu daquela água cristalina. Os ruídos tinham a mesma intensidade. Equilibrada. Nada destoava do que se esperava que fosse. Se o comportamento da sociedade refletisse aquele instante, talvez haveria lugar para a Realidade em sua vida. O som das muitas águas. O brilho das pedras molhadas. Ele se permitiu a entrar naquelas gélidas águas. Sentiu o peso da água sobre seus ombros, o protegendo, limpando-o das mazelas sociais, dos rótulos e expectativas. Tirando de sua mente todo sofrimento, iluminando suas ideias e o fazendo concentrar em sua respiração; embora tão automática e espontânea, carregava a complexidade da existência. Asas de borboleta e tempestade. O cheiro de café ainda forte nas narinas.


Conseguia a ver perto dele. Ela tinha a pele suave. O sol exitava em tocar com firmeza, então ele perpassa cada poro com elegância e certa comoção. O vento freava, e paulatinamente acariciava cada curva daquele monumento de beleza que encanta pela leveza sustentável de ser. Ela plena em seu momento yoga. Ela caminhou ao sol, fez carinho nas flores e tinha um encanto de sorrir com os olhos, que era capaz de suspender o tempo e revirar a Realidade. Ele conseguia vê-la, mas não tocar.


O agradável calor da manhã remetia a um abraço. O sutil balançar dos galhos era dança, era afago. Suspiro era poesia diante do céu límpido, de poucas nuvens, fazendo silhuetas à luz do sol e a lua bem ao canto, ainda à vista, os pássaros voando sem grandes pretensões; viuvinhas, bem-te-vis, e perpassando os pensamentos, o rasante voo do colibri.


Cheiro de canela. Casca solta no chão, formigas nas rosas selvagens. Percebeu a vida. Improvisou um fogareiro, lenha estala, água quase ferve, café com canela. A paz tinha cheiro naquele jardim sem dono.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Soro - 18ml

 


Eram várias as solidões. A solidão da criatividade, autoconhecimento e introspecção. A solidão da sobrecarga, cheia de gente por perto. A solidão do abandono.

Eles estavam criando uma geração que não podia sentir dor. Os espasmos aprendendo a controlar os músculos da face controlar os músculos do abdômen o intestino ninguém queria que ele sentisse dor. A dor da distância a dor de entender que o outro sente dor e por isso tem que se afastar. As pessoas queriam evitar que as gerações mais novas sentissem dor. “Quem é  dor”? Perguntavam as crianças. Ele não soube responder.

No dia do seu aniversário Paca não ligou. Não questionou porquê dele não ter sido ainda mais óbvio. Não cobrou dele experiências de viajar o mundo e conhecer diversas culturas diversos sabores. Não jogou na cara dele a limitação que ele tinha em relação a paleta de cores dos ambientes e dos horizontes que o mundo havia guardado. Paca não ligou cobrando dele saber tocar um instrumento musical, recitar grandes poemas, compreender de questões metafísicas quânticas filosóficas; ela não ligou. Não se frustrou em saber que ele não conhecia o mundo e seus sabores. Ela não tinha interesse no conhecimento dele em trocar fraldas, cuidar de um infante febril, deixar em ordem uma casa. Não ficou cansada de saber que ele não havia ido a grandes shows de rock e que não se lembrava muito das histórias e canções das bandas que ambos gostavam. Ela não respondeu a mensagem. Ela não ligou. Se ao menos ele tivesse a chance. A chance.

Assistir os episódios antigos de Friends não apenas o conectava-o às lembranças da adolescência, onde sorrisos espontâneos eram seu refrigério na solidão. Com o passar dos anos, cada vez que assistia era um momento ingenuamente especial, pois estranhamente os conectava através da distância, embora ela não soubesse. O sorriso despretensioso aliviava a tensão dos dias, mas durava menos que qualquer princípio ativo dos remédios.

No sofá, percebeu o céu escuro da madrugada dar espaço a um amanhecer tão belo, daqueles sem cobrança, que proporciona paz e frescor. Era bom estar ali sozinho, mas se pudesse ter a leve companhia, seria ainda melhor. Contudo, ele entendia, era aquele instante sua melhor chance. Aconchegou-se no sofá. Amanheceu com sol, sem calor. O cheiro de café era palpável.

O que satisfaz? Uma recorrente pergunta retroalimentada a cada conquista ou frustração. Seja o âmbito que for. Acúmulo de bens, de experiências, de rótulos, sabores e sensações. Os instantes recorrentes de satisfação traduzidos em felicidade. A intermitente rotina de lutar para subsistir, desfrutar dos resultados. Renovar ciclos. Ser algoz, às vezes sem perceber, ser vítima. A instabilidade emocional que evoca o Narciso dentro do poço do abismo que há dentro de cada um, como justificativa para decisões de autopreservação. As pessoas desistem umas das outras. Trancafiando uns aos outros em solidões. O som úmido da voz dela no vento, comentando sobre a vida, o gesto sutil de arrumar o cabelo que coça a face.


Queijo provolone, picado. Mel jogado em cima. Um vinho generoso. As mesmas páginas de um livro recorrente. Ali no balcão, da cozinha de casa, lia como se relacionasse com uma pessoa. Tinha respeito pelo livro. A audácia do escritor em lançar palavras organizadas sobre o papel, sem imaginar a profundidade dos desdobramentos das páginas ao longo do tempo. Longo, tempo. A brasa estalou lá fora. O peixe já estava temperado. O filé também. Geleia de abacaxi com pimenta reservada. Manteiga com alecrim no ramekin. Atravessou o gramado, saindo da cozinha. A grama fria massageou seus pés. O piso de madeira. Sentou-se na varanda. Porção para dois.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Soro - 17ml

 

Acordar era inevitável. Ele nem se importava. Conduzia seu corpo para o banheiro, depois para a cozinha. Foi para a varanda ler seu livro. Recostado na poltrona, olhava tudo com certa tranquilidade, lia em paz, saboreando seu café. Até que de repente. De repente, nada aconteceu. O silêncio. Sem reviravoltas, sem surpresas e metáforas, a inércia. Decidiu fazer uma viagem. No entanto não seria daquelas redentoras, mas apenas para colocar o pingo no lugar devido.

No caminho, pessoas. Sofrimento e irreverência continuam como moedas sociais. Na mesa de discussão da agenda reflexiva, as memórias reais da sociedade são substituídas por ideologias de palavras e espasmos de uma puberdade tecnológica, onde a ponta dos dedos ordena ações às telas, mas as palavras à cabeça não provocam mudança nos comportamentos. O espelho que anda diante de nossas palavras reflete nossos pensamentos. Encenar a espontaneidade é respirar. Frustração é consequência de visão limitada [embebida em paixão], entendimento raso. Diante dos desafios, o talento traz a confiança, mas apenas a sabedoria a mantém. Apesar de tudo o que cansa no humano, os poros escondem mais do que pelos; o suspiro e as palavras muito mais do que significados.

A felicidade está em encontrar a plenitude da vida no gerúndio, no significante. Chocolates e olhares. A amargura o distingue, realça a ternura de seu sabor, delineia o espanto, o medo de se envolver; a vontade e a energia. Tudo em uma mordida silenciosa, seguida de uma intensa e vagarosa dança da língua. Amelie ou Angelique. Poulain ou Delange. O som de degustar um chocolate. Caminhar na chuva emotivamente anônimo meia noite em paris; texas. Inocente, ingênuo e intenso, o amor se faz em um chocolate e impregna-nos ao se desfazer na língua. O pensamento, o sentimento, nela.

Ele iria mais uma vez à cidade do concreto armado, das pessoas paradoxais, o epicentro do girassol. Desafiaria a distância, sabendo que mesmo ao se aproximar, permaneceria à distância, pois o que a alimentava não era o instante, as circunstâncias, mas coisa outra. As escolhas e seus desdobramentos. O tempo não permitia alterações, tampouco aguardava, ele ia… até ser enterrado.

Não olhava mais a distância. Pois era ver tornar-se miragem o que tocassem os olhos. Manteve o foco na proximidade. O mais correto, funcional, covarde ou íntegro a se fazer. Na proximidade estava seu primeiro impacto, a primeira onda, sua responsabilidade. A cada passo, a distância se renova, mas a proximidade também.

Os corpos. Carne com nervos e sangue. As pessoas são mais que os corpos. E os sorrisos são muito mais do que mostrar os dentes. Quando sinceros, são pontos de acesso à alma.  Esse metro quadrado. Resignado a rodear de um lado até a porta e voltar. Não sair, por opção. Não sair, para não aumentar a distância, para não se perder às proximidades de outro contexto, aquele onde poderia escolher novamente, sem peso ou memórias. Sem julgamentos. Naquele metro quadrado, ele podia pensar mas não agir. Podia refletir, mentalmente ir além das circunstâncias. Porém, quando a fome chegava, interrompia o pensamento e se voltava à rotina daquele metro quadrado. Os dramas brotavam como ervas daninhas. Era o último dia. Seu coração saiu do peito e percorreu cada canto, cada centímetro cúbico, quadrado. Voltou para o peito cansado. Até onde ele chegaria? O caminho só era longo se olhasse para o futuro. Ele não mais o fazia. Estranho, mas em silêncio, quieto, ele se integrava ao ambiente à medida em que o observava. Deixou de se explicar há muito tempo. Parou de se cobrar.

Transpor a imperceptível lâmina d'água da realidade e misturar-se ao outro. a justaposição de Eiseinstein e a liberdade de Bazin. O epicentro da vanguarda em algo que se revela não como novo, mas como alternativa ao fluxo da modernidade. A reflexão sobre o que é o dia, a vida e um no outro.

- Essa tua ruminança não é genialidade. É uma coceira do ego, da vontade de dominar. A alternativa então é ser cafona e sumir na massa, para que você me conte nua; me continua na curva da cintura desse nosso devaneio. Quando a palavra silêncio preenche toda a minha boca você surge. Contempla sentada ao meu lado. Ah, a tipografia orgânica desse seu olhar;

Diante de tantas feridas, para estabilizar-se, o indivíduo anseia ferir e controlar o processo de ferir até saciar sua vontade em não sentir mais dor. Todavia, ao atingir este nível de compreensão dos desejos (e feridas), o ser verifica que o próximo passo é não ferir. Amadurece e então, cai uma pétala. Automatismos e mimetismos: muito mais do que uma loja, um encontro, um café ou livraria; uma via. 

Desde cantares a tudo o que se comporta nos ares apaixonados. Nas rimas, nos olhares, anseios. As histórias de amor admiradas, buscadas, acreditadas e desacreditadas. O Humano deseja a saciedade e pujança que o amor proporciona dentro de si, não apenas no coração, mas em todo o corpo, perfazendo em eletricidade uma sensação de êxtase. Cada tentativa clama por materializar os mais infantes desejos de se lambuzar na sensação de felicidade e entorpecência do amor. 

Seres humanos são fábricas de miragens. Alguns dizem que a busca pela miragem é o que move a sociedade e possibilita sua evolução. O foco na busca contínua, e não no alcançar. Entretanto, esse processo alimenta ferimentos e cicatrizes permitem a leitura em braile de nossas fragilidades; reféns de sonhos in natura. Há quem diga que se materializarmos aspectos da miragem na realidade que se apresenta palpável e perceptível (longe de ser concreta) conseguimos estruturar um efeito placebo para vivenciar os dias com mais leveza. Ele se perdia nos pensamentos. Dormiu antes de continuar. Ele aprendeu a liberdade que o perdão traz. Aprendeu que por mais que tentasse, não havia quebrado seus anjos, mas revelado a eles sua fraqueza, sua incapacidade, sua necessidade de amadurecer. Assim, ficou ainda mais ligado a eles, mas a Realidade usava da distância para o afastar também deles. 

Era tanta diferença que tornava igual a todos. Gemidos, suspiros e o modelo mental de julgar. Julgar e às vezes executar. Tanto ódio pelas ruas, mas sacadas e nas redes, que ele tinha ainda mais certeza de se desconectar. Tudo muito polarizado em um mundo globalizado. Sentimentos reducionistas erguendo muros, daqueles com cacos de vidro em cima. Ele não. Precisava se afastar cada vez mais, mesmo sem sair do lugar.

A ampola esvaziar-se-á ao instante preciso da queda do verso. A estrofe instável, volúvel como a gota, despenca lá de cima, e extrapola o corpo. Oco, o abismo cansado nem olha de volta. Era intocável a tristeza, mas extremamente visível. Planava no ar como as poeiras ao sol, em suspensão. Ele soprou a tristeza; mania de limpeza. Ergueu-se com a inquietude do seguir em frente. 

Conseguia ainda visualizar, a pele macia, o efeito da luz do sol ao tocá-la sem pretensões, o ritmo da respiração, o balanço da rede no compasso da música. Era o encanto sem dimensões, mas a distância era cruel com ele. A Realidade foi sorrateira, entrou ar no equipo. Ele não esperou, precisava chegar até ela.

A oportunidade não veio com o nome dele, tampouco ele o colocou lá. No entanto, soube a vivenciar à medida em que ela se revelou a ele. Sentia-se vivo de uma maneira diferente.

Uma maturidade perpassa seus poros, mantendo-o vivo, aperfeiçoado além das circunstâncias. Com a paz de ter feito as possíveis escolhas nos instantes apropriados e que seria capaz de lidar com todos os desdobramentos. Ele não estava em fuga, mas seguia em frente. O próximo passo, sempre foi o mais importante. Pois o próximo passo é que pode mudar ou manter o rumo. Ele deixou de ser displicente na caminhada, e parou também de se cobrar tanto. 

Caminhou descalço pelo gramado selvagem. O restaurante ficava perto de uma das grandes cachoeiras. O céu estava um manto azul de paz. As pessoas acomodadas em cadeiras de metal e madeira. Sem pressa. O garçom anotava os pedidos mas não os nomes ou números das mesas (que não tinham número). Quando pronto o pedido, andavam pelo gramado procurando quem pediu, e até mesmo gritando o nome do prato. Nunca esfriava. 

No momento de pagar, outra peculiaridade: ele perguntava o que o cliente havia consumido, e só então dava o preço. Funcional. Nunca teve quebra de caixa. Ele ficou alinhar horas. Mesmo tendo já comido, ficou olhando as pessoas, a relva, o céu. Ouvia ao longe o vozeirão da cachoeira. Iria até ela antes de continuar. 

Na área próxima ao balcão, uma espécie de museu. Máquinas velhas de tecelagem, de escrever, de fotografar, de pedalar, de caçar. Distraiu seu olhar com as telas na parede do fundo, as reproduções de rostos conhecidos do rock, da literatura e das artes plásticas. Pensou na sutileza de quem cria e na inocência de quem ignora, enquanto isso descia em direção à queda d’água.

A água gelada parecia lavar sua alma. Tão gelada que ele sentia um silêncio, um isolamento, uma intensidade anestesiante. Ficou quieto na água, colocando as ideias em ordem. Confirmando escolhas e se preparando para continuar. A força da água em suas costas era o carinho que ele precisava para se sentir vivo. 

Telas com cheiro de tinta. Gramados vastos pontuados de concreto. Alças confusas para agilizar o trânsito. Gente estranha fazendo encontros esquisitos, rede terno ou impessoal, imprimindo sempre irreverência. Ele estava lá. Não precisaria procurar por Paca. Sabia onde ela estava. Sem rodeios e devaneios chegou. Contudo, ela não o percebeu. Talvez fosse a distância. Talvez a doença. Quem sabe até a Realidade. Ele ficou parado, estava diferente. Não imaginou o que encontraria no futuro, pois nem mais o olhava. Seguiu.

Relevância. Ácidos argumentos, imagens que impactam, pela ternura, pela irreverência, pelo que desperta. Ávidos por relevância, os indivíduos seguem fluxos de despertamento da atenção e reconhecimento do outro. Seja pelas redes sociais, pelos produtos e conteúdos criados, pela postura nos almoços que não são mais domingo, pelas atitudes nos encontros. Relevância. Buscam obter já pensando ter. Assim, não raro observar a arrogância flamejante nos olhares. 

Ele se esvaziou da relevância. Doía nada o julgamento dos outros. Anestesia? Não. Liberdade. A Realidade não compreendia como não conseguia mais manipular os pensamentos dele como antes. Impulsionar ações precipitadas para escancarar a atrofia dele diante dos problemas criados pelos desdobramentos das escolhas. A Realidade se debatia enquanto ele seguia em frente.

Atos mesquinhos desfazem a virtude do ser humano em ser bom. Com um potencial de fazer maravilhas, o ser humano gera encantamento quando escolhe não fazer o mal. 

O contraste. Pessoas morrendo, indo aos poucos com uma doença, indignando-se com a Realidade, com o tratamento recebido, com a impossibilidade de reagir; outros indo subitamente, sem aviso, sem sinal, sem rastro. Pessoas também renovando-se; vencendo enfermidades e assumindo o compromisso de viver bem, seja o que isso representar. Nas entrelinhas das experiências, os profissionais da saúde transitando entre a felicidade e a melancolia, os eufóricos e os apáticos. Sobrevivendo, servindo, cuidando; guardando e registrando em si todos os sentimentos possíveis, a cada girada de turno. O corpo. Carne, sangue, nervos, bactérias. Não há remédio para toda dor. O contraste.  Ele não ficou lá por muito tempo desta vez.

A carne estava resfriada apenas. Fez cortes generosos. Sal, pimenta do reino moída na hora. Um pouco de manteiga de garrafa sobre. Azeite na panela. Alho em lâminas, o cheiro avisou o momento de entrar com o queijo, padrão. Vinho branco, ocasião. Gorgonzola. Sal, uma gota de mel. A textura e a temperatura revelando o ponto. A carne suculenta aguarda o banho. No prato, carne, molho, castanhas-de-caju quebradas e salpicadas. À taça Malbec. Ele estava com aquele olhar intenso, aparentemente em direção ao nada, contudo o nada não caberia a pujança que dentro dele extrapola os poros. Dois pratos à mesa.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Soro - 16ml

 

A manhã varreu a sala com a luz do sol, revelando uma carta de versos pueris, traços crus de um amor verdadeiro. Texto sem paradeiro, manchado de vinho no topo, com borra de café no verso. Ele nunca enviaria a carta. Estava cansado demais. Não a carne, que envelhece, atrofia e se perde. A carta era mais que desabafo ou declaração, era o mais próximo que as palavras chegaram do sentimento. 


O acumulado do orvalho descia lentamente pelo beiral. Gota a gota batiam sobre o metal esquecido no canto do muro. Se o calor da luz do sol pela janela, ou se o barulho das gotas, pouco importa o motivo de ter acordado. O sonho acabou com o sono. Não estava assustado, de ressaca ou deprimido. Alcançou uma apatia sem dor pela existência, no entanto, com um encantamento tão sutil por tudo o que seu olhar tocava, e sua mente sentia. Cada vez mais liberto dos demônios que o faziam ser o lobo do homem, e o corrompido pelo meio. Não mais estava na alcatéia, e o ambiente não podia mais o tocar. 


A Realidade, desesperada, havia tentado de tudo. Concedeu a ele voos, quedas, semi afogamentos para grandes respiros. Apresentou-lhe Paca, mas restringiu a ação do tempo. Fez seus olhos brilharem para em seguida o ofuscar. Apresentou o passado no presente, selando a perspectiva de um futuro, mas tornou turva a imagem e rompeu a linha do horizonte. Ainda assim, ele não cedeu. Quando à noite repousou a cabeça na rede, olhando as estrelas sem pretensões e filosofias, recaiu o olhar a lua cheia, erguendo-se rapidamente. Marias lunares. 


Ferida a lua se escondeu diante de tamanha dor. Um coração que bate no compasso da distância machuca o ser que ama, que não mais espera, mas apenas segue os dias. Pé ante pé, entregando as demandas dos outros recheadas de soluções, embrulhadas em um "nunca mais", amarrado com a fitinha do "até quando". Após o expediente e além dele, caminhou na rua sem pretensões de ver um rosto conhecido. Tudo o que percebia eram faces reféns de algoritmos, guiadas pelas cócegas no ego, pela sensação de pertencimento, pelo gozo momentâneo de controlar algo, nem que fosse a direção dos passos. Nenhuma preocupação lhe parecia absoluta, rima alguma assemelhava-se a um desfecho. Era tudo tão... um despropósito de estar em movimento. Não havia naquela multidão um sequer rosto de refrigério. Um bloco homogêneo, travestido de diversidade e vanguarda. Quando ele deixou de fazer parte, saboreou o isolamento da liberdade, mas o preço... 


Seu braço foi projetado para a frente, tamanha a topada, cheirosos fios de cabelo bateram em seu rosto, e seguiram no contrafluxo como se estivesse atrasada. Ele não viu seu rosto, mas sentiu. Seus pés petrificados não permitiram que ele a seguisse, um desespero, cada órgão se retraindo internamente, perdendo calor, brilho, fluência; semelhante a planta que resseca. Ainda atônito, chegou ao carro, quase se queimou com o café. Seguiu pelas ruas, sem se lembrar do caminho. Confiou no automatismo.   


Parecia uma farda. Camisa de manga longa, verde bem escuro. Calça preta, sapato gasto. Pele preta, do peito do pé aos fios da cabeça. Determinado, com passos firmes atravessou a rua e arguiu o vendedor de panos. Do carro ele observou os dois sem conseguir entender, se era uma reclamação por uma compra, uma peleja antiga, ou apenas devaneios urbanos de indivíduos em overdose social, viabilizada pela Realidade. O sinal abriu antes que ele pudesse se distrair mais.


Os cantos de suas unhas estavam machucados. Ficar por um tempo em um ambiente em que paira doença é exaustivo. Todas as energias boas do indivíduo são sugadas pelo ambiente que até no silêncios, nos bips e espasmos, chegam a ser aterrorizantes. Não de assustar, mas de proporcionar um lento terror, que corrói o que de bom há na pessoa. Ele não habituou a fazer estas visitas. Gota a gota, seus argumentos, grandes elucubrações sobre a existência, tudo desanuviava, quando a canção Smile, de Gilmour, ocupava todo o espaço da sala, desinfetando e higienizando. Ele podia partir. Contudo, a possibilidade não determina a ação. A escolha é constituída de mais do que oportunidade, coragem e vontade. Ainda assim, pouco importava para ele. Desejava apenas um café quente, sem açúcar, com trocadilho e talvez afeto. No balcão, uma xícara, uma tortinha de frango, um brigadeiro e um convite amassado. Percebeu o quanto estava sozinho, e dessa vez pesou de forma diferente.


Deixou de pensar no futuro naquele dia. As vergonhas ao espelho abandonou, a fúria cotidiana domou, as dores do passado, dessas ficaram apenas as marcas. Laços possíveis. A visão das pernas dela bem acomodadas à rede que levemente balança sob um céu azul lindo. O sorriso dela é um enigma do universo, belo e atemporal, intenso na simplicidade de ser um meigo, cativante sorriso. Ele poderia mergulhar naquele sorriso por todo o sempre; embora talvez ela não soubesse. Paca era tão sutil. Até mesmo tossindo, no cinema, sob a gravidade, era encantadora. Porém, a distância o fez prisioneiro. 


Como um pássaro livre, ele se movimentava pelas canções, no ar, de forma tão pujante que não havia horizonte em que não fosse além. Mas as canções muitas vezes se perdem em refrões, em repetições de notas e marcações de um compasso que interrompe o voo. Enquanto ele voava, a mesma canção ressoava na mente de Paca, que sem saber, estava conectada a ele, sem a pretensão de controle do tempo, mas sucumbidos à distância; esse último atributo da Realidade.


Quando a música acabou ele acordou. Cansado. Sozinho. A imagem no espelho, as palavras pouco usadas do dicionário, as emoções embebidas em neoplasia maligna, copos descartáveis pelo chão, textos com muitas palavras e pouca informação, ingenuidade de gente velha e infantilidade no lidar com as orientações e os propósitos divinos. A verdade, a mentira. O manuseio ressignifica, os desdobramentos podem ser atordoantes.


O demasiado humano ser ao tentar andar sobre as águas de seus valores, suas ideias e seus argumentos, acaba por atolar os pés e os joelhos em um lamaçal de vaidade, superficialidade e confusão. Ele não estava mais nesse grupo. Estava sozinho. Não da maneira apresentada em filmes apocalípticos ou pós-apocalípticos. 


Destituído; uma ilha cercada de pessoas por todos os lados. Um mar de íris. “Vislumbro em mim cada vez menos eu e mais Você. Isso me faz tão bem”. As coisas envelhecem. O tempo ainda é o mesmo. As ideias envelhecem, a carne se desgasta, as palavras re-arranjadas, repetidas. Flores aparecem, brilham e morrem. A água faz seu ciclo. Traços. Ritmos. Nos deslumbramos com o confete cotidiano. Condicionamos a fé ao nosso sistema de vida, existência e relevância. Desejos a serem realizados aqui. Errantes.


Erguemos bandeiras do desespero. Firmadas pelo suor dos hormônios que prendemos entre os dentes, entre os sonhos, entre as palavras. Entre. Nos permitimos ser ponteiros tontos de uma bússola desmagnetizada. Apontada para o ego. Quem vomita mais conhecimento? Posicionar as palavras como flores em um vaso: ornamentadas, para agradar, para seduzir. Cuidado com a finalidade; e com os espinhos.


Abelhas, pássaros e muita presunção. Lagartas e pulgões, além das mil interpretações da intelectual xepa que foi parida e cresceu. Modernos. Pós-modernos. Soberbos. Religiosos. Políticos. Humanos.


Exaustores de ideias e discursos esvaziados. Todos querem o protagonismo. Sempre. Primeiro passo para a libertação é reconhecer a atual posição, a natureza hipócrita das ações e preocupações. Deixe-as. Saia. Mesmo que não conheça o caminho para Shell Beach, saia da cidade. Sway. Cinema. Comida apimentada desce à garganta de forma agradável. Andar na chuva com a cabeça erguida. Plantar, assistir e ser vida. Até que o abraço do tempo seja de plena liberdade.


Após a livraria, o cinema, a praça; retornou para casa. Seu corpo cansado se desligou à cama. Dormir era sua chance de não pensar nela.



A mesma cor de cabelo. Quando loiras e quando morenas. Ele sabia que era amor.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Soro - 15ml

 


Precisou sair da cidade por alguns dias para um trabalho simples. Levou consigo a paz, livros e vinhos. Seriam dias breves. Uma construção de pedras bem arquitetadas. Cor creme, eco moderado. Pelas paredes conduz-se o vento frio mesmo em dias de forte sol. Atravessava-se uma ponte, também de pedra, encontrava então um úmido jardim, pista de pouso de borboletas, e ao final uma praça rústica, em que era possível assentar-se e assistir as pessoas, os pássaros, o tempo, quando esse passava. Quando ele passou por ali, teve ainda mais certeza da sua pequenez diante das grandiosidades construídas, das maravilhas constituídas, e da encantadora natureza. 

Vasto mundo. Estruturas turísticas comerciais, emocionais, espirituais; espaços de moradia e transição. Tanto a se conhecer, e vivenciar. Cada qual com sua porção acostumada da vida, do que é possível conhecer, chegar e ir além. Alguns, mochileiros em essência, outros, residentes do mesmo metro quadrado. Todos habitantes do agora. Entrou naquelas padarias típicas em que de tudo um pouco se encontrava; de componentes eletrônicos para celulares a arcaicos instrumentos domésticos. O essencial muitas das vezes está no fundo. Café forte, biscoito de nata no ponto em que derrete rapidamente na língua.

Tudo costumava fazer mais sentido. Se fosse para ser óbvio, ele seria uma bula, com todo o rigor da técnica. O quadro dentro do quadro. Ele sabia transitar, mas até quando iria querer? 

Lives sobre lives. Artigos sobre isolamentos, fronteiras extrapoladas e discursos ocos de uma mente embriagada pela Realidade. Precisava cuidar da sanidade, pois ao seu redor as pessoas doentes alimentavam a doença no sorriso, tentavam contaminar os outros, ao deixar o ambiente todo com a lente da doença. Não o vírus, mas seu hospedeiro o verdadeiro perigo.

Folha 54, livro 45; ele estava habilitado a trabalhar onde estivesse. Mas agora era diferente. Seu ambiente era outro. No quarto escuro, deitado à cama, com fone de ouvido, música alta e pensamento distante. Era ele. Todas as canções pareciam retratar suas experiências ou anseios. Em uma nova dimensão, ele conhecia amores, perfumes e tencionava a lógica, sentindo tudo ao mesmo tempo, naquele agora. Há anos, esta era a única ação dele para isolar a Realidade. Agora não precisava mais do fone, e nem mesmo da música alta. Naquele tempo, ele apenas desejava experimentar das sensações que estava além do agora. Tolo, antecipou rugas, dores e uma percepção da vida que castrou sua capacidade de alienação. No instante em que o tempo não passa, ele então compreendeu o artifício da espera. Junto à espera, a sobreposição das inércias sociais como estratégia de perpassar os núcleos de convívio, visualizar a mobilidade do epicentro do padrão cultural.

O trânsito e o vendedor de pano. O semáforo fecha, é o tempo que muitos precisam. Para conferir mensagens no celular, pra enviar mensagens, conferir o espelho. Respirar. Para outros a angústia na ponta do acelerador. Para eles parar era um atraso de vida, para o vendedor de panos, a oportunidade. Enquanto uns olhavam para o sinal e acelerando, torcendo para o verde não ficar amarelo; outros não viam a hora do vermelho dar passagem a possibilidade de ganhar o pão de cada dia. O vendedor de pano o ensinou mais sobre espera e pressa. Parado, com o carro na fila, observou o ritmo do vendedor, e a receptividade dos motoristas. As cores e sons e o conflito das intenções, concebidas pelo famigerados pré-conceitos. Ele nem os tocava, seguia conforme possível era. Comprou 5 panos de prato, um pano de chão; já não entornava muito as coisas, mas precisava manter limpas as mãos.

O processo. A ladainha dos pormenores, o encanto dos detalhes frutos do esforço. Melhor resultado é o processo, pois o desfecho é tão volúvel, instável, e perecível. O processo fica marcado. Ele atravessou o processo como quem ultrapassa a densa fumaça sem respirar, sem parar, sem enxergar.

Chegou em casa sem pressa. Subiu para descansar, renovando o vinho, o livro, o caderno de anotações e um pedaço de pão. A corrente de ar parecia trazer algo mais no oco do vento úmido, mas o que ocorria era o despertar de pensamentos por associação de sensações de outras experiências. Cada detalhe ao redor despertava nele a lembrança. Cada gesto dele acrescentava ao passado mais significado, mas não projetava para o futuro. A pedra fria da pia, farinha de trigo e vinho. A levedura, o cheiro, o calor, a espera. O provolone sendo cortado lentamente, os barulhos ao redor sumindo de sua cabeça, as imagens ficando estáticas, desfocadas e distantes, ele cada instante ainda mais dentro de si. Viu isso, e era bom.

Azeite e palavra. Temperatura, tempero e silêncio. Ele dosava tudo no olhar e na intensidade das mãos preparou o pão. Sentou-se na varanda para esperar ficar pronto. Enquanto isso, pegou o livro surrado que comprou no sebo, em uma barraca que funcionava dentro de uma feira. Capa cansada, bordas com sinal de muito manuseio, páginas dobradas, marcações; um total desassossego naquele desarranjo temporal. Era seu autor predileto. Lia pausadamente, enquanto o vinho percorria sua garganta, descia pelo esôfago até o estômago. 

As moléculas de etanol absorvidas entram no sangue e outras vão para o intestino, onde absorvidas também se integram à corrente sanguínea. A viagem do vinho dentro dele era intensa e rápida. Pelo sangue, percorria todos os tecidos do corpo; fígado, rins, cérebro e coração. Dilatação de vasos, restrição de filtros mentais. O álcool. Parte vertia do corpo pelos poros, atrelados ao suor que interrompe aquela fala para ser limpo. Um pouco era exalado na respiração, como o suspiro do poema que dói. O que não sai pela urina, vira o andarilho de Nietzsche rumo ao eterno retorno. No fim, gás carbônico, água e mágoa. Até que o fígado consiga eliminar o álcool e seus poros despejarem o que não cabia nele. A mágoa, no entanto, era afogada. A bebida era o gatilho do pensamento encadeado de sentimentos. O cheiro da rolha marcando as esperas da maturação; o rótulo escondendo a história entre as eiras da vinícola. Como a fila de dominós a cair, o vinho era a primeira peça à mente. Corpo em reação, mente transubstanciação. Ele permanecia em paz.

Ele olhou ao redor, quieto. Era como se algum sentido fosse saltar das coisas. Das capas dos livros, das receitas mal anotadas dentro de um livro, dos antigos pertences, das lembranças e suspiros. Não é que ele supervaloriza os sabores, cores, sensações e desdobramentos; mas trata-se de não depositar toda a energia e relevância em um instante que nem ainda existe.

Sentiu mudar a pressão do ar. Tinha ciência de que fora dele, todos se submetiam à Realidade, de uma forma ou de outra. No entanto, como ele, ninguém. seu pensamento ultrapassou fronteiras, até chegar a ela. Encontrou-a ouvindo Weder, enquanto alcançava Bhujangasana, tendo passado por Padmasana, da pinça ao camelo, até terminar na pose de criança. A distância era só um fundo desfocado. Seja de frente, ou de perfil, Paca tinha o olhar penetrante. Ela não fugia com o olhar. Apontava-o diretamente. Bailava no ar, com gestos, hábitos e um jeito tão verdadeiro de ser. Ele se encantou desde a primeira vez. Escreveria para ela naquela noite. Embora talvez ela nunca fosse ler.

A sutileza dela dormir não cabe num poema. Muitas experiências não podem ser representadas por um texto. Há alguns lugares que acolhem a mente, mas são indescritíveis. Principalmente quando estamos diante de uma situação sufocante; a distância. Que nos desfaz em cada detalhe, cada sobrepeso de responsabilidade, cada frustração que brota no chão. Como caminhar descalço sobre os rasos corais em uma praia em que a profundidade é sempre a mesma. Ele percebia. Não imaginou o que viria. Dias de sol sem poder caminhar, dias nublados sem poder assistir um filme e roçar nos pés dela. Talvez Paca tenha se tornado a Dulcinéia, ou o Santo Graal. Ou a esperança de felicidade de uma linha temporal alternativa, que ele sabe da existência, mas nunca iria acessar. Sua salvação no encontro. Sua perdição na busca. Sua paz no sonho. A distância então o golpeou, como o pássaro que ataca o reflexo na janela em um voo suicida.

Um amontoado de livros isolava do mundo o que ele pensava alto às vezes. Por horas cheirando as páginas antigas em busca de uma novidade, que breve como emerge o sentido da palavra lida, o salvasse do impasse da vida que tinha. Uma série de tosse em meio ao cheiro de cânfora revelava que até ambientes novos podem atacar as mais brandas rinites. Seu corpo o distraía das questões elementares interrompendo automatismos. Engasgou com a vírgula de suas escolhas. Não era o espelho ou o universo a confrontá-lo todas as manhãs. Ele aprendeu à sua maneira. Desenvolveu seu traço, mas não ficaram rastros brilhantes, apenas aqueles que se confundem com o dos outros, tornando cansativa e desinteressante a jornada atrás deles. Preparou para si um café bem forte. Com um gole inundou seus sonhos.


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Soro - 14ml

 

Passar pela praça era visitar uma galeria de arte. Obras imóveis, obras orgânicas. Pessoas abstratas, sentimentos concretos. Infraestrutura revista, novos usos e ocupações. Sem curadoria. A céu aberto. Corpos sincronizados com o caos. Barulho e movimento. Disputas. Sem início, fim ou um propósito. Passar pela praça era o caminho mais próximo para chegar em casa. No alto da palmeira imperial um casal de maritacas gritava. Ele lembrou de Paca, seu amor pelos animais e do episódio da visita das maritacas na casa dela. Percebeu ter lembranças que não viveu; apropriou-se só de ouvir falar, ou ver em rede social. O telefone agora ficava dentro da gaveta, descarregado. 


Marcante no céu à noite, os vagalumes saiam da árvore lateral e pontuavam a esperança na janela dele. Hipnotizado pela magia da biologia, ficou na cama olhando o céu mudar de cor, o beija-flor pousar no fio de energia, os vaga-lumes darem mais contraste ao ambiente.


A bondade sem medidas. Pessoas usadas para que o bem fosse feito por meio delas sem perceberem. Um brigadeiro, um beijinho. Aumentam não apenas a glicose no sangue, mas fundamentalmente a sensação de paz, acolhimento, em tempos tão hostis. Um bolo Romeu e Julieta. Base de fubá, creme de queijo, goiabada em calda por cima. Doce sem ser enjoativo. Belo sem ser insosso.  


O contraste. Esta instância que nos arrasta entre as escolhas, nos aprisiona em ambientes, narrativas e intermitências de comportamento, padrão de interpretação da realidade, intensidade de relacionamento. O grupo social exige uma posição polarizada estática. Não admite a mudança, a alternância de pontos de vista e argumentos é vista com resistência e tornam simplória a escolha por posicionamentos. Falta visão de paisagem.




Não posso escolher uma cor favorita, um som predileto, um sabor definitivo, uma imagem plena neste paraíso de desespero. Esta configuração social não sabe vivenciar o contraste a não ser com a política da punição do outro. Um sempre é o outro de alguém. Assim talvez seja este o motivo que uso para permitir-me desconectar dos rótulos, das pautas, do padrão de preocupação. Longe disso, eu ser único. Apenas sei ser mais um na massa. A tranquilidade de deitar no gramado sem o incômodo das formigas, das abelhas. Esta paz que inunda meus poros não se detém ao meu corpo e perpassa todos os pistilos do jardim. Desfaço-me no vento que apenas "é vento e passa"; porém não vou com ele. Caio ao chão e torno-me outra criatura, sem corpo, sem mente, apenas a mesma alma, traduzida em um sinal de pontuação. Reticências. Belo nome para a florada de uma planta chamada realidade. E qual seria o fruto das reticências? Não posso escolher, tampouco me preocupo.




Os vaga-lumes sumiram. Não resistiu. Pegou o telefone na gaveta e procurou por algum rastro digital de Paca. Encontrou a formosura, sabedoria e leveza de uma idosa a dançar na sala "Another brick in the wall"; era um vídeo da avó de Paca. A cena descreve uma manhã, dentro de um apartamento, na sala. A sutil senhora com elegância e naturalidade se movimentava pela sala, no compasso do refrão. Quanta luz. Ele se maravilhou. A noção do corpo, do potencial da carne, seu ritmo através do tempo, seu peso, suas marcas, toda uma história oculta no doce semblante. A partir dos gestos daquela vovó, conseguiu entender um pouco da genialidade que perpassa as gerações até encontrar Paca. Por instantes não sentiu a distância. Pudera ser ela relativizada. Dormiu.


Não se tornou uma vida solitária. Era intensa em si. Desmedida na resignação sentimental. Apropriada para o que ele era capaz de suportar depois de tudo o que aconteceu entre ele e a Realidade. Ele se concentrava na beleza das coisas aparentemente simples, como as cores da paisagem, os sons, os sabores e as texturas. Uma xícara de café tinha bem mais do que cafeína. Era o suporte para vivenciar a dimensão da sobriedade sem obrigações.


O senso estético da grande casta soberana sobrecarregava a rede com “lives” de cera. A soberba dos que herdam estruturas prontas seja de trabalho ou de patrimônio era ensurdecedora. Era fácil se desvencilhar agora das coleiras sociais. Não é que doesse cada vez menos, mas é que ele não sentia aquela dor.  No início, foi difícil perceber o que fizeram de seu legado social. Depois compreendeu que seu legado não permanecia à mercê das mãos dos outros. Embora alguns dele usufruíssem, não o dominavam. Seu legado não estaria em livros de história, mas facilitou a vida de milhares. Ele sabia, mas não se preocupava, não se importou em seguir em frente. Não se tratava de uma vida solitária, mas de uma vida livre.


Não se lembra de ter ido ao escritório. Não sabia como era a voz dos que ao lado dele trabalhavam. O perfume das rosas se confundiu ao dos lírios; passou a usar as escadas, para não instigar a rinite. Não lembra se cumprimentou as pessoas na esquina, ou se apenas pensou em fazê-lo. Não sabia se a luz do poste estava acesa porque estava tarde, ou se ainda era cedo, porém escuro. Dias nublados são a estrofe em suspensão. Sem cansaço. Sabia que estava em casa, como há muito não estivera.


Paco de Lucia tocando na moderna vitrola de MP3. O merlot aberto na bancada da cozinha. Noite especial. Ele passou a tarde misturando e sovando a massa. Pela primeira vez decidiu medir as doses. Mas não anotou. Cada item com sua medida. Cada ingrediente no seu momento certo. Trigo, água morna, fermento biológico, azeite e olivas. Sal e tempo. Ele precisava do tempo. O cheiro da fermentação, o ar na massa, a mão que sova a esperança. Enquanto o forno estala ele sonha acordado.




Nadei incessantemente um mar imenso para morrer na praia.




Pelo menos chegou à praia. Ou o objeto de nadar o mar era nele permanecer? Sentir a maresia corroer seus olhos, o sal inundar seus poros, o movimento das ondas questionar suas intenções, e até mesmo sua direção; ter o sol a desidratar suas possibilidades, e a lua cegar você e depois abandoná-lo na escuridão à deriva. Com o ensurdecedor som da arrebentação, e o melancólico barulhinho do mover da água na calmaria.  É isso que esperava? Na praia, morrer é cumprir o objetivo em parte. Erguer-se será transcender e deixar pra trás toda a salmoura, seguir. [Ela brilhava uma sabedoria sem soberba].




Não consigo parar de escrever.  Despejo traços incompletos por onde ando. Escrevo. Mesmo quando não manchei de tinta o papel ou de bytes a tela, estou a escrever; com os olhos na paisagem, ou fechados, dentro de mim. Cravadas experiências e sensações, traços que nem sei se lido será ou se compreendido possível é. Arthur Schopenhauer disse que o estilo é a fisionomia do espírito. Passei a conceber melhor o que sou no dia em que li. 




Uma carroça cheia de discursos passou na rua. Ninguém queria mais aquele amontoado de palavras. O carroceiro procurava um lugar para despejá-los. Todavia, depositar aquela carga classe 4 em qualquer lugar poderia se desdobrar em uma catástrofe. Sábio, o carroceiro seguiu a procurar, mas quando passou em frente aquela casa, não pôde deixar de viajar no dedilhado de Paco. Entendeu que não deveria ficar ali parado. Levou para longe a carroça dos discursos. Cambaleava a carroça cheida dos achismos técnicos, políticos e espirituais. Lá no fundo, soterrados, poemas de amor envelopados, sem abrir. Dejetos não são bem vistos, lixo não traz o nome do dono. Silenciosa batata quente empurrada de mão em mão até chegar à carroça. Cheiro de palavras velhas. O nariz coçava e o espirro era como uma trovoada. As rodas o levaram a seu destino. A carroça voltou leve do aterro. O carroceiro assobiava “entre dos aguas”. 


Não se pode alcançar o cume do olhar dele pela janela. Uma hipérbole que atravessou fronteiras até encontrar lá, além da distância, a razão do eterno retorno. Seu piscar sonolentos olhos selou toda uma era de sonhos e esperança. Ele voltou para a cozinha. Calado, sem canções, sem poemas, cortou dentes de alho, queijo provolone, dourou no azeite, despejou sobre a massa fresca. Comeu sem pensamentos, acompanhado de um vinho libertador.  Pensou seriamente em ir ... mas a lembrança do conta-gotas tirou sua atenção. O silêncio do hospital, a luz impessoal das placas de sinalização interna. Nenhuma que o indicasse o caminho desejado. Perdeu o acesso, ou a bolsa acabou. Importa pouco, pois era então o momento de sair dali. 


A plataforma o esperava. Um faixa laranja no chão marcava onde deveria esperar. Alta noite, ninguém com os pés na água. Chovia lá fora, sem grandes estardalhaços. Chovia e ponto. Os poucos corpos se movimentaram pelo salão sem empatia, sem envolvimento. Tinha no ar um suave cheiro de lêvedo. Uma padaria o convidava para o café. Ele atravessou o corredor determinado a escrever para Paca.


Ele andava vagarosamente, como se tivesse uma trava no corpo. A trava do tempo?, pensou ele efusivo. Caminharia assim, com ela de braços dados, reencontrando-a no outro giro da vida, quando a rotação atinge outra percepção. Iria ela o reconhecer?  Ela tinha um amor pelos animais que ele tentou alcançar. Uma vez ela ajudou um pintinho sair da casca. Com um colher e o cabo de uma faca de cozinha ela o ajudou a nascer. Depois, em uma espécie de frigideira de madeira, o colocou sobre um caixote, bem embaixo de um foco de luz amarela, aquecendo-o. Ele via todo esse carinho com ternura. Embora admirasse os animais, ele ainda não havia alcançado tanto amor assim, a ponto de ser espontâneo, o amor pelos animais. E não o somos todos?  Já não se contava tanto. Bastava o por do sol magnífico que conseguia ver mudar as cores do céu e o contraste com a montanha na curva do horizonte.  Minas foi seu berço, Minas era seu refúgio. 


Toda dor, das renúncias e frustrações. Do corpo tentando cicatrizar cortes tão profundos, era inominável. Parecia que nunca iria acabar. É assim com todos, não havia nada des especial, até começar a fazer falta. O argumento de ser vítima, de se isolar, de estar à parte no pandemônio urbano onde casamento sabe o que fazer de melhor na vida do outro. A dor possibilitava até então esconder no semblante os sentimentos e verdadeiros pensamentos, as limitações de ser pleno no convívio social. A dor era o placebo, mas também era física. O que fariam quando ela acabasse? Ele não sabia. A estranha sensação se apoderava dele às vezes. Era um ir sem distanciar-se, acabando. Sumindo esquecido na cena. 


Afastou seu filho para que não visse o pai adoecer. Enquanto seu pai desfalecia, eles cresciam. À medida em que pai deixava de abrir portas, escrever cartas, fazer jantares, sorrir, ter o semblante leve; ao redor os algozes não percebiam o que estavam fazendo e o culpavam por mudar. Ele se deixou ser morto, por um amor estranho, ou por um cansaço de se debater sem saber nadar, de estar no meio do salão sem saber dançar, de gritar na sala dos surdos, sendo considerado o único cego. Ele que nunca havia desistido,  naquele momento era tomado de uma tristeza tão densa que podia ser tocada. Como algodão doce. Amarga como açúcar queimado, a Realidade o colocou na prensa, espremia ele entre as consequências das escolhas próprias e das que os outros tinham para ele. Naquela carta ele ficou entre se apresentar, contar uma trajetória que deixasse evidente quem ele era, como via a vida, o que sentia. Atravessou florestas de lágrimas em busca do romantismo e amor tão belo e salvador que tinha por ela, mas talvez ela não conseguisse interpretar aquelas linhas, molhadas, borradas do grito da alma. Fez breve desabafo, permitindo que mesmo no escuro a distância fosse tocada, compreendida. Relatou gozos e feridas e terminou a carta com um convite.


Quem era o jovem cidadão a cruzar a rima e deixar aberto o portão? Há muito não recebia uma visita daquelas. Não eram enciclopédias, acesso ao paraíso ou crédito fácil, o jovem queria se apresentar como o futuro representante local na política. Contudo, depois de ouvir sobre saneamento básico, ensino residencial, pró-labore, segurança pública firme, religião controlada;  assustou-se com a proposta da morte da Diversidade, a começar pelas prateleiras das bibliotecas. Interrompeu a conversa, ofereceu água, fechou o portão vendo ir para a casa ao lado aquele que parecia jovem, levar um velho discurso em prol de um cidadão que não existe. 


De volta à mesa, dobrou a carta com cuidado. Com amor fechou o envelope, encerrado dentro do seu peito. Na esperança de que voltasse a pulsar.  


Sempre foi reconfortante as sinceras conversas. Aquelas sem interesse de vitória, de conquista, de ferir o outro. Eram conversas sobre os mais variados assuntos, eram papos que transpassaram as madrugadas, até cadeiras irem pra cima das mesas, até o bocejo ser o convite para última taça, o abraço. 


Lá fora, uma multidão de “lives” adestrava milhões de espectadores, que presos à tela, e escravos da Realidade, esqueceram-se do que um dia estava ao lado, vivo.  Ele foi dormir. Tentou silenciar as ideias. Calou sua dor na madrugada. Sabia muito bem que era apenas mais um dos 7 bilhões vivos, e dos incontáveis que já passaram pela vida. Milhões ilhados em celulares, ou conectados por meio deles. Por mais que se chore e muito se declare. Quase ninguém se ama, se toca, se ama além das imagens postadas em redes sociais. O clichê da miséria social e falência do que se conhece  como grupo, seladas nas entrelinhas tecnológicas, boa suspiros cibernéticos soterrados na enorme, fria, onda; sem limitação de caracteres ou segundos. Finalmente. Ele dormiu.


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Soro - 13ml

 

A vergonha não pode domar o coração. O arrependimento não pode ser uma placa de ferro com a eterna sentença amarrada ao pescoço. Nem toda tragédia é punição. Às vezes é apenas chuva. Ele remoía os pensamentos enquanto tentava se desvencilhar da multidão entre o hall e as escadas. Não iria perdurar naquela rotina. Uma liberdade despontava no porvir, embora nem ele, nem a Realidade percebessem. A diferença é que ele não mais esperava por isso, e a Realidade temia.


As retaliações promovidas na surdina são as piores. O olhar da serpente. O hipnotizante atributo antes do bote. Enquanto uns se fascinam, outros acordam tarde demais, tendo corpo e mente esmagados pela metáfora rastejante. 


Venceu o mar de ombros e olhares. Estava na rua novamente. Era música o eco de seus passos, era encantamento sumir na paisagem. Percebeu no caminho que os espaços públicos perderam a configuração.


Praças cercadas, lacradas, inutilizadas com fita zebrada. O equipamento social de convergência dos fluxos para integração das pessoas, atrofiado, impossibilidade de sua atividade fim. A sociedade se esconde, a sociedade é exilada de si, por prevenção, para maturação, por resistência, por comodidade. O individualismo exacerbado de um ser criado para ser social. 


Na esquina, o cômodo comercial de uma estreita porta de aço escondia uma floricultura. Um beco úmido levava até os fundos onde abria-se um pátio com diversas mudas em diferentes estados de desenvolvimento. Ele se permitiu perpassar os corredores verdes, não ver além das cores das flores e não escutar mais que os pássaros livres.


Ele se acostumou a sentir as metáforas aflorar das coisas. Naquele jardim escondido, em que nada tinha preço, lembrou-se de filmes e livros em que as metáforas fazem do palco a paisagem, do sopro a tempestade e do carrinho de bebê o fio condutor entre eras, entre estilos, intocáveis encouraçados à deriva da realidade.


Ela o observou desde a entrada. Nunca o viu antes. Entretanto a presença dele iniciou uma reação em cadeia, primeiro um formigamento no couro cabeludo, depois um tremor nas pernas e um calafrio na barriga. Era ele. [Ela pensou]. Ele saiu sem comprar, sem tocar, sem precisar. Ela aquietou-se de uma vez por todas, pois percebeu que ele não a ignorou, mas ele estava em uma outra dimensão, a da lembrança. Seu olhar estava distante dentro de si. Dificilmente ultrapassou a retina e tocou as cores das flores. Seu olhar estava dentro. 


Paca. Ele chegou ao relicário com o coração agitado de uma estranha paz. Não sentiu isso antes. Sua tia já havia falado muito dela. Na livraria, havia conhecido a irmã. Na casa da tia, também teve seus momentos de conversa e troca com a irmã. Percebeu como a família é especial. No entanto, apenas a conhecia por fotos e tinha falado por telefone uma vez. Isso até aquela noite no relicário. Não havia distrações, não havia cardápio, nada além dos olhos, sorriso e voz dela. Ele não soube o que fazer mas fez. Aquele momento abriu sua mente, remexeu na paisagem de uma forma encantadora. Dias depois, encontraram-se à mesa novamente de um lounge, impressiona como eles faziam juntos tanto sentido. Talvez só ele pensasse isso. Na terceira vez que se entraram, lado a lado na mesa. Suas mãos de forma involuntária chegaram a se tocar. Ele ficou com aquilo marcado no coração.


Em um trecho da conversa deles, ela comentou sobre o nascer e pôr do sol da cidade em que ela morava. Ele se lembrou. Dias depois, decidiu enviar uma mensagem convite em código usando aquela história do pôr do sol. A resposta dela seria o crucial para que ele fosse até ela, que mudasse os rumos, mas não. Ela não respondeu. Ela não respondeu. A vida de ambos seguiu por outras pessoas e isso não significa que foram mais ou menos felizes, apenas foi diferente do que poderia ter sido. 


Anos depois. Encontraram-se novamente, na cidade dela; ele, ela e sua irmã. O melhor passeio. Os olhos dela, a maneira de olhar. Seu perfume. O mundo interrompeu a dinâmica cruel, a malha do tempo se abriu para um café, para um tour diferente, para a Gravidade. A tosse dela era elegante, a conversa extremamente agradável, no entanto ele pode ter soado distante, pois seu telefone não parava de chegar mensagens, de quem não o queria perder para aquela nova dimensão. No silêncio ele era apresentado ao que poderia ter sido, no telefone era lembrado do que era. Castrado em seus sentimentos, ele lamentou em uma lágrima na câmara escura, vendo a gravidade. “Tonight you belong to me”.


Por toda a plataforma, as silhuetas de concreto, as intermitências dos olhares; no tour, aprendeu do que as músicas falavam, quando citavam atributos daquela cidade. Ele entendeu melhor o rock nacional e se fascinou ainda mais, como as palavras e silêncios dela se encaixavam aos seus. Talvez só ele percebesse. Ele a amava. No entanto, naquele instante, não era para ele ficar. A distância os levou novamente para dimensões diferentes. Não a alcançou novamente; Paca, em sua exuberância de ser plena em tudo o que faz, vivenciou o mundo, países, sabores, aromas e sons. Vozes da experiência, vozes de paixões e ilusões. Ela transcende os sonhos e sonha mais; tão especial. Quem a conhece se maravilha como pode existir alguém assim. O amor que ela demonstra pela família, pelas crianças, pelas artes, pela natureza é uma atmosfera leve de paz, e a bela inquietação de se estar vivo. 


Ele chorou sem lágrimas, e quando a música começou a tocar, ele se fez riacho pela face abaixo.


Qual o propósito da música? Para ouvir, sentir. Lembrou da canção de Arnaldo. Tem música para todo instante. As canções carregam a instância de um sentimento, traduzem em cifras sensações que mexem como a alma.




Meus anjos. São três. Movimentam minhas escolhas, amparam-me na dor e na sutileza de ver a vida. Eles não conseguem interpretar, mas sentem como eu estou. Sempre. Como a reação mágica entre gêmeos, ou melhor, entre almas gêmeas. Eles sentem em si, as alterações que a vida faz em mim. percebo que minha sanidade se estaciona no brilho da existência deles. São três, mas poderiam ser quatro. Mas… as covinhas escondem o gatilho do encanto. Quando surgem espontaneamente elas desanuviam o ambiente com uma leveza. Despertavam-me para a consequência de minhas escolhas e meus passos; pontuam as distâncias. Ela mandou que que ressignificasse. Inacessível, apenas sorriu. Distante, ela era o esplendor do amor que nunca iluminou por tanto tempo meu coração.




Todos os anos o calendário apresenta doze meses. Na mesma data sempre. Ele era o mais original o possível, o mais verdadeiro. Era o ápice de sua transparência naquela volta da terra. Era o aniversário dela. Elas respondia e ele reagia calado. Daquela forma, talvez apenas ele sentisse.


Quando fechava os olhos, ouvindo uma boa música, consegui visualizar ela dançando, com vestes leves, sorriso solto, sem pretensões, limites e julgamentos. Ele quase sentia aquela felicidade. Pensou em escrever um livro em homenagem a ela, colocando tudo o que sentia no papel, e lançar ao universo para quem sabe um dia esbarrar nela. Como uma bela história de filme. Na capa seria óbvio, escreveria “Paca”. Todavia, ele não conseguia. Diante do papel branco, sentado à máquina de escrever, ou debaixo da árvore de seu quintal, com o caderno e caneta nas mãos, ele não conseguia. iniciava a escrita e parava olhando fixamente no limiar, como se a buscasse no olhar, mas ela não vinha além da lembrança. Possivelmente ela tinha seus risos estre outras pessoas, e só ele sentisse a distância entre eles. 


A Realidade assistia perplexa, não intervinha. Será que foi por isso que ele se afastou dela? Não. Apenas isso não. Pele, papel carbono, tempo mão forte da vida, essa rima repetida, perdida, sentida no piscar dos olhos. 




Aleatoriamente, enquanto mexia no telefone celular, em uma rede social, viu a foto de Paca reluzir. Clicar foi se aproximar de uma vitrine sem ser visto pelo outro lado. Ele a ouvia, tentava falar, mas apenas assistia, não era visto, tampouco ouvido. Qual o propósito de tanto sentimento? Educar a frustração? Manter viva a sensação de certo porvir ou reforçar as consequências de suas escolha.


Acertou-o como uma onda do oceano. Bem no peito. Ele acordou, mesmo que não estivesse dormindo. O ambiente ao redor fazia cada vez menos sentido, tinha cada vez menos intensidade as cores os sabores, os ciclos de tragédias, altruísmo, solidariedade, complacência, arrogância e esquecimento. A sociedade ruminante. Ele já não era parte dela.


A terra tinha um cheiro novo naquela manhã fria. O vento anunciava que mais tarde traria a chuva. Ele se reclinou à rede, balançava bem pouco. Olhava para o céu azul, que se enchia de nuvens, preparando-se para a chuva.


Ali perto, um jovem de óculos tentava equilibrar suas emoções na bicicleta. Carregava sonhos para vender nas proximidades. Ruas inclinadas, cabeças suspensas, faltaria sonhos para tanta demanda. Ele não tinha buzina, mas a bicicleta rangia anunciando sua passagem. Da rede ouviu a bicicleta dos sonhos, ficou quieto até que ela passasse.


De olhos fechados se lembrava dos seus anjos. O semblante de um anjo encanta e traz paz. Talvez pela maneira leve com que interage com a Realidade, como não se deixa afetar por ela, embora quando submetido à dinâmica do tempo com a realidade, estes anjos tornam-se adultos tão carentes de uma salvação, tão dependentes de um amor, que não encontram onde procuram. Paca fora um anjo de outrora, mas permanecia angelical. Intocável, porém acessível, enigmática, todavia tão verdadeira, pujante, sincera. O brilho do olhar dela possuía algo que não se podia colocar em uma frase. 




Ele sabia, ela iria ultrapassar o tempo, não seria nunca sucumbida à Realidade. O sentimento é leve, belo. No entanto, a distância entre eles era mais do que enredo de série, filme, novela ou livro. Estava mais para o silêncio entre cenas no teatro. O palco escuro, com luzes quentes ao fundo. O chão de madeira, com um som de veludo. Aquele momento em que os atores respiram, mas permanecem intensamente na cena, e você não percebe, e de fato nem se preocupa, quais as membranas separam o ator, o personagem, o indivíduo. Este instante denso, intenso, representa melhor a distância entre eles. Talvez ela não visse dessa forma.




Quando você me transformou... Não percebeu a maneira que dentro de mim passou a habitar. Trouxe à paisagem uma nova dimensão, uma específica paleta de cores. Fez de mim, meio, mensagem, instrumento e alento. Ressignificando meus gestos, traços, pensamentos, os conceitos que pensei conhecer. Uma novilíngua era extinta no piscar dos olhos. Eu não estava preso, mas de forma inédita, livre. Fui então obrigado a te extraditar. Tornei-me verdadeiro por demasia, expus meu sentimento à flor da pele, frágil a ponto de machucar-me com a gota d’água. Irremediável senso de autopreservação. Perdi o timing, você também. A distância ocupou um espaço que era nosso. Demos brecha para o Tempo e a Realidade. Enterrado, não mais passa o tempo, a realidade... 




A Realidade sabia que ele falava ao vento, mas não mais o podia ouvir. Sentia que algo especial acontecia ali. Que o vento carregava mais do ar. Que o “Guardador de rebanhos”, tão lido por ele, escondia nas entrelinhas a diversidade dos sentidos. Porém, ela estava à margem.


Raio rasga o céu. Luz que rima com a lágrima que precipita aos olhos. Ele saiu da rede. Disposto na grama, o clichê da chuva. Leve devaneio, este de subir aos céus enquanto caem as gotas. Ser o significado a contrafluxo. Ser além da frase, afora o verso, transcendendo o gesto e sobe, muda o estado físico. Vivenciar-se, conhecer a si como os sábios deflagraram. Perceber os riscos e sentindo os desdobramentos das escolas. Passos em poças paradas, jorrando gotas à chuva. Lábios trêmulos, rubro, depois roxos. O turbilhão de gotas. O som ao tocar o chão, o metal, o barro, as folhas, os poros. Cada gota entrava pelos poros, começando a inundá-lo. O excesso saía pelos olhos. Não era sintomas de saudade. Nenhuma canção se encaixava. Escorria. Pelo rosto, pelo chão, pelas plantas do jardim. 


Tantos números, tanta cobrança. Tão pouco reconhecimento. Gritos pela sobrevivência. Almas arranham a realidade em busca de alimentar a carne, para permanecer no ritmo, no fluxo social. Cifras, índices, estatísticas, códigos, senhas, marcações de espaço, propriedade, tempo, posse, ganhos e perdas. Rótulos. Não mais o afetam e era estranho se alguém pudesse aproximar-se para compreender. Nem era tanto o poder de interferência que não havia, mas não importavam mais. Ele transitava por eles, até os operava, sem envolver-se; mas a chuva não. Essa ainda conseguia atingi-lo. Integrava-se a ele, mudando seu olhar, irrigando sensações a descontrole, resignando-o a esperar que passasse. Seu semblante não pesava,embora intenso não se tratava de um momento ruim, mas estranhamente de renovação. Ele também chovia. Integrado às gotas, subia uma a uma, chegando às nuvens, precipitava. 


Marcado o chão molhado da casa. Rastro perfumado de um banho quente. Repouso na poltrona à janela, café quente, cobertor. Assistiu o resto de chuva. Rabiscou no caderno os traços de um resto. Seus chinelos molhados chiavam no caminho até a padaria. Na fila, estereótipos. Ele apenas pensava na chuva.


Gargalhadas rasgavam o ambiente com a frivolidade da sobreposição dos rótulos. Construção de reflexos, era o que faziam. Não arquitetaram uma imagem, mas o reflexo dela, para embutir nas retinas sociais, nas vitrines e espelhos a expectativa; para alimentar os números e fazer cócegas ao ego. Espelhos quebrados que já não cortam ninguém. Ele nem os olhava, nem os via. Comprou do pão de azeite, o de sublime sabor de azeitona. O vinho estava em casa ao lado do livro. Nem precisava afiar as palavras. Parecia redundância, todavia, era o extrapolar dos sentidos. Voltou a chover.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Soro - 12ml

 

No dia em que tentaram me matar trataram-me como uma erva daninha, esquecendo-se que me plantaram, podaram e fertilizaram. Fizeram-me de um vinho de sabor ralo, sem nem ao menos beber-me, sabendo ainda assim meu sabor peculiar, para descartarem-me catalogaram minhas qualidades como a escória do que se pode ter na prateleira. Venderam a própria alma e pagaram com a minha. todavia, desconheciam o fato de minha alma não pertencer a mim. Pensaram que eu seria meu nome. Então, jogaram sobre ele todas as pragas conhecidas, subestimando a morada das virtudes silenciosas. Eles erraram. Não serei eu o agente punidor. Não verei eu a vingança ou justiça sobre a atrocidade que tentaram fazer. Sopraram ao vento uma riqueza e já não podem mais alcançar. Quando foi que eu permiti estacionar em meu coração aquela que me expulsou de mim mesmo? Nos dias em que me entristeço amadureço. Neste momento em que o desespero usa do vento para sondar minha janela, meus anjos sorriem e me salvam sem perceber que têm o timing perfeito. Eles não desistem. Com uma sensibilidade sobre humana. Demorei para perceber. Tarde demais? Quando o tempo não passa mais, o silêncio de senta ao lado da paz.

 

Ruidosos olhares pelas ruas rasgadas de silêncio e dor. Ruas que em significante tinham incrustados o suor das corridas matinais, os gritos de uma madrugada de desespero e solidão. Quando o peito quase explode na tentativa de conter no corpo um sentimento de dor, de angústia, da extremidade do amor. O chão negro, asfalto gasto incapaz de refletir as estrelas. Esquinas sem verso, com um poste apagado. Delinquentes sem coragem de mexer com aqueles olhos negros, com aquele semblante supernova. Vapores baratos de bueiros antigos. Fornos persistentes de padeiros cansados. Ruas que se interligam como as veias do corpo. A brisa corria as ruas feito soro nas veias. Ruas amargas com as cores de uma vida em que o legado é a calvice, as rugas e as palavras não lidas, e quando lidas não compreendidas, não por genialidade, mas por falta de entrega do leitor. Ele não estava na mesma dimensão delas. Tampouco estacionara em encruzilhadas. Sua rima rangia pelas ruas. Ruas insípidas, frígidas, mudas. Ruas por onde um coração desanuviou e decidiu transcender.

 

Depois da chuva, depois das luzes dos postes chegarem a ponto de evaporar as últimas gotas. Ele, frente a frente com a Realidade. Teve a oportunidade de desfazê-la, de enterrá-la, ou a subverter. No entanto, virou-se, escolheu se distanciar. A Realidade nunca havia passado por aquilo. Não soube então lidar com a lacuna. Distanciar-se é se aproximar.

 

Quando a última gota cai. O recipiente vazio é a interrogação do porvir. Reposição ou alta? Quando a chuva começa; quando da nuvem desprende a transformação da primeira gota, ou quando a primogênita cai ao solo, sendo instantaneamente absorvida, ou sobre a ponta de um nariz, sendo retirada com as mãos, ou quando se confunde à lágrima, ou quando evapora no ar deixando a incógnita do que poderia ter sido? Não é a resposta que irá contribuir com a paisagem, tampouco a enxurrada de perguntas.

 

Conta-gotas sem gotas. O olhar sem argumento, sem arrogância, sem expectativas ilusórias, mas a esperança de um instante de paz. Desde que o tempo fora enterrado, era o que ele tinha. Paz; e agora ela percebia o que viria junto com sua escolha.

 

Ele achava curioso como ela lavava a louça; sempre começando pelos talheres. Era simplesmente um encanto a espuma, o metal e a água nas mãos tão delicadas e cheias de história. Ela se admirava como ele cozinhava; sempre começando pela escolha do vinho ou do café. A taça como o prumo dos versos, a faca sem pressa, embora ágil, para picar e arrumar; as mãos como a de um regente. Sabores que valiam um poema. Os ciclos eram renovados sem a cobrança da Realidade, sem as marcações do Tempo.

 

As ruas não estrangulavam seus passos. Quantas cidades coexistem dentro de uma? Marco Polo teria se fascinado com as ruas dentro das ruas do olhar de quem habita o ambiente por outro viés que não o convencional. Eles sabiam que não estava esta aventura nos livros, pois aquele acesso, era o acesso deles e de ninguém mais.

 

A Realidade falhou mais uma vez. E neste ponto do enredo compreendeu que não era doença. Teria de escolher outra pessoa para tentar se aproximar dele, deles? A Realidade se debatia em si, com o olhar vidrado nos vitrais da casa em que nunca mais entraria.